Como devemos tributar serviços de escala global como a Netflix?

Segundo economistas, é preciso criar imposto de base ampla que incida no local onde se dá o consumo

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Rodrigo O. Orair Sérgio W. Gobetti

[RESUMO] Proliferação de serviços digitais que atuam em escala global, como Netflix, demanda criação de um imposto de base ampla, que incida nos locais em que se dá o consumo, de modo a evitar assimetrias tributárias que abalam a competitividade.

A proposta de recriação da CPMF parece ter sido retirada da agenda de reformas do governo, mas muitos políticos e cidadãos comuns continuam acreditando, de modo equivocado, que um imposto sobre transações financeiras seria uma alternativa melhor do que o modelo de tributação do consumo consagrado internacionalmente, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA). 

Uma das razões do equívoco, verbalizado por especialistas em tributação, deriva-se de uma confusão na interpretação do debate internacional em torno da tributação da economia digital. Por isso, o assunto merece ser esclarecido a fim de evitar que a opinião pública compre “gato por lebre”.

O tema é árido e cheio de tecnicidades. Por isso, simplificaremos a exposição com alguns exemplos. Imaginemos duas empresas concorrentes: uma sediada no país que provê um serviço de TV a cabo (como a NET) e outra fornecedora digital de streaming de vídeos via internet (como a Netflix). 

A empresa doméstica recolhe inúmeros impostos nacionais sobre consumo e lucro. Não necessariamente o mesmo ocorre com o fornecedor estrangeiro —suas atividades não se enquadram nas legislações tributárias usuais e, por conta disso, ele desfruta de uma grande vantagem sobre seus concorrentes.

Para resolver parte desse problema, os países desenvolvidos entraram em acordo nos fóruns do G20 e da OCDE sobre um conjunto de mecanismos para viabilizar a cobrança de IVA dos serviços digitais. Acordou-se que os fornecedores estrangeiros devem registrar e recolher o imposto no país onde o consumidor possui sua residência, cabendo aos fiscos nacionais implementar regimes simplificados por plataformas online que facilitem o cumprimento das obrigações tributárias.

No nosso exemplo, a maneira de eliminar a assimetria tributária entre os dois concorrentes passa por instituir um imposto do tipo IVA, não cumulativo e com base ampla, ou seja, que incida sobre todos os bens e serviços, inclusive intangíveis. Esse caminho está sendo trilhado pela maioria dos países da União Europeia, além de Austrália, Coreia, Japão e Nova Zelândia, por exemplo.

O caso australiano é paradigmático. Em 1999, o país promoveu uma reforma que instituiu um imposto sobre bens e serviços nos moldes do IVA, em substituição a um conjunto de tributos com bases estreitas, inclusive um que incidia sobre transações bancárias, como a nossa CPMF. 

Em 2015, uma nova reforma ampliou a base de incidência do IVA para alcançar serviços digitais intangíveis (inclusive aplicativos que usam moeda virtual), tornando a Austrália pioneira na cobrança desse tipo de imposto sobre a economia digital.

A solução para equalizar impostos sobre o consumo, porém, não resolve o problema do diferencial de tributação do lucro entre empresas como a NET e a Netflix. O fornecedor convencional possui um estabelecimento permanente no país e recolhe Imposto sobre Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), enquanto o fornecedor digital nem sequer tem presença física no país e não está sujeito ao tributo doméstico.

Além disso, o fornecedor digital atua em escala global e com extrema mobilidade de capital, dada a intensidade de fatores intangíveis, como os direitos de propriedade, que viabilizam o fatiamento das suas atividades entre inúmeros países (inclusive paraísos fiscais), sem praticamente arcar com imposto de renda em nenhum deles. 

A concorrência segue desleal e os fóruns internacionais ainda não chegaram a um consenso sobre como resolver o problema.

Outro impasse diz respeito ao papel dos dados dos usuários na geração de lucros de negócios digitais. O principal exemplo são os serviços publicitários de anúncios personalizados online, prestados por empresas proprietárias de navegadores, sites de redes sociais ou de compartilhamento de vídeos pela internet. 

Na versão digital deste artigo, provavelmente haverá um anúncio personalizado na tela do computador ou celular do leitor. Como funciona a geração de valor econômico nesse tipo de negócio digital? 

Os usuários fornecem dados às empresas quando utilizam ferramentas de busca na internet, compartilham informações em fóruns de mídia social, interagem com outros usuários e visualizam vídeos. As empresas digitais, por sua vez, usam seus algoritmos de análise avançada de dados para identificar os consumidores-alvo e vender o serviço de publicidade para outras empresas.

Quem gerou o valor econômico e onde isso se deu? Uma primeira corrente de especialistas entende que o insumo de dados dos usuários é central para o processo de geração de valor econômico. Logo, parte do direito de tributação dos lucros deveria ser dado ao país onde estão os consumidores-alvo dos anúncios personalizados. 

Essa visão é contraposta por outra, que defende que os dados não possuem qualquer valor até serem colocados em uso pela empresa digital. Daí a justificativa para que o direito de tributação do lucro seja apenas do país-sede das empresas digitais.

O pano de fundo desse debate são os interesses comerciais e políticos dos países. Por um lado, governos europeus pressionam por soluções que atribuam parte do direito de tributar o lucro aos países onde estão os consumidores dos serviços digitais, mas enfrentam oposição dos Estados Unidos, o país-sede da maioria das grandes empresas da economia digital. O resultado é um impasse técnico e político nos fóruns globais.

Nesse ínterim, Itália, Reino Unido e França estão unilateralmente introduzindo impostos sobre a receita das grandes empresas digitais, premidos pela necessidade de agir mais rapidamente. Tais iniciativas não podem ser confundidas com a defesa generalizada de tributos cumulativos. Todos esses países admitem se tratar de uma medida pontual sobre segmentos da economia digital, de caráter imperfeito e temporário, com previsão de que os impostos serão extintos assim que se alcance um acordo internacional.

O que o IVA tem com isso? Muito pouco. Esse é um debate sobre a tributação dos lucros dos negócios digitais, e as propostas em voga passam, inclusive, por aproximar o IRPJ de um IVA ao prever a tributação dos lucros no país de destino dos serviços online, pelo simples fato de que é muito mais fácil identificar o local onde está o consumidor do que onde foi originado o lucro. Há até uma corrente propondo transformar o IRPJ num imposto sobre fluxo de caixa das empresas baseado no destino.

Essas ideias não podem ser confundidas com um imposto sobre transações financeiras, como a CPMF. O objetivo é transformar o IRPJ em um imposto não cumulativo que incida inteiramente no destino. Uma espécie de IVA ampliado, que gera créditos pelo pagamento da folha de salários das empresas, além dos insumos usuais. Ou seja, o debate sobre a tributação do futuro está caminhando na direção de mais (e não menos) IVA.

Voltando ao nosso exemplo, suponhamos que se instituísse um imposto sobre transações bancárias, tal qual a CPMF, como solução para os desafios da economia digital. 

A empresa convencional efetua inúmeras transações com seus fornecedores, funcionários e consumidores, faz amplo uso da rede bancária nacional para administrar seus fluxos de caixa e pagará CPMF em todas as movimentações. Já o fornecedor digital estrangeiro, que não tem presença física no país, apenas recebe os pagamentos do consumidor final e dispõe de um enorme arsenal de instrumentos não bancários para efetuar todas as suas transações.

Recentemente, nosso ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que a “nova CPMF pegaria até Netflix e Uber”. É uma meia verdade. O novo imposto incidiria em algum grau sobre as vendas dessas empresas digitais, mas o ônus sobre os fornecedores convencionais seria muito maior. 

Logo, a CPMF ampliaria o diferencial de tributação entre fornecedor nacional e estrangeiro e, por sua cobrança em cascata, introduziria distorções e abalaria a competitividade de nossa economia como um todo.

Não por acaso, a Austrália promoveu há uma década uma ampla discussão sobre o futuro de seu sistema tributário e repeliu a opção de recriar um imposto sobre transações bancárias, conhecido no país pelo acrônimo BAD (Bank Account Debits Tax). Hoje o país é uma referência em matéria tributária, por ter banido experimentos exóticos e instituído um IVA de base ampla, que o capacitou a enfrentar os desafios da economia digital.

Aqui no Brasil, ao contrário, seguimos com uma tributação fragmentada entre inúmeros impostos indiretos, critérios antiquados e conflitos de competência entre entes federados que nos tornam reféns da economia digital.

E alguns especialistas, talvez por desconhecerem a literatura e as experiências internacionais, insistem em propor soluções equivocadas, como a reintrodução de um imposto sobre transações financeiras, seja sob a alcunha de CP, e-TAX ou BAD, como na Austrália. Este acrônimo resume a discussão: “it is a bad solution to a real problem”. 


Rodrigo O. Orair é mestre em economia pela Unicamp e pesquisador do Ipea.

Sérgio W. Gobetti é doutor em economia pela UnB e pesquisador do Ipea.

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