Humanos têm fortíssima propensão a cooperar, diz professor

José Eli da Veiga argumenta que a natureza não induz apenas à violência

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José Eli da Veiga

[RESUMO] Em resposta a artigo publicado na Ilustríssima, professor argumenta que a natureza não induz apenas à violência. A cooperação é um instinto evidente no ser humano, diz ele, sem o qual não existiria a civilização como a conhecemos.

Foi espantoso, para dizer o mínimo, o artigo “Democracia é para os deuses”, publicado na Ilustríssima no domingo passado, dia 15. Impressão reforçada pelo fato de o texto ter sido publicado originalmente no jornal New York Times e ser assinado por um dos editores da ótima revista Los Angeles Review of Books. 

A razão do espanto: é totalmente falsa a ideia de que a natureza só induza os humanos a se colocar contra os outros, subjugá-los, derrubá-los e até mesmo esmagá-los, como pontifica o pesquisador Costica Bradatan, professor da Texas Tech University.

O artigo já seria inepto simplesmente por afirmar que a natureza humana comporta uma única propensão social, seja ela qual for. Tal tese não seria aceitável sequer em redação de alunos de graduação. Afinal, para discutir a relação entre a natureza humana e a democracia, está fora de cogitação qualquer tipo de raciocínio simplista e unívoco. 

Por mais precárias que sejam introduções às ciências ministradas em nossas universidades, os alunos logo são incitados a assimilar a ideia de que o concreto sempre é a síntese de múltiplas determinações. 

Imediatamente desconfiariam, portanto, de qualquer raciocínio sobre a natureza humana que começasse por rejeitar a conjectura de que são diversas as propensões que se combinam e, contraditoriamente, se nutrem entre si, fazendo com que o complexo desafio das humanidades seja, por isso, a interpretação das resultantes.

Em segundo lugar, se o artigo em questão fosse submetido a qualquer pessoa com mínima formação em história geral, o mais provável é que ela se fizesse a seguinte pergunta: como foi possível, então, que nos últimos 11 milênios tenha surgido e se consolidado o “processo civilizador”, tão bem estudado por Norbert Elias? 

Se a única propensão dos humanos fosse a realçada por Bradatan, não existiria civilização, e a democracia nem sequer teria emergido.

O pior, contudo, é o total desconhecimento a respeito de avanços científicos sobre o outro lado da moeda: nossa fortíssima propensão a cooperar. 

casal de mãos dadas na neve
Casal se apoia para caminhar à beira do lago Michigan, durante forte queda de temperatura em janeiro - AFP

Um gigantesco passo havia sido dado, em 1981, com a tese proposta pelo cientista político Robert Axelrod, da Universidade de Michigan, que, três anos depois, lançou o livro “A Evolução da Cooperação” (ed. Leopardo), hoje um clássico. 

A proeza de Axelrod foi executar inéditas simulações computacionais que confirmaram hipóteses formuladas na década anterior por biólogos evolutivos: nepotismo e reciprocidade seriam os dois fatores determinantes da cooperação. Na ausência do primeiro, ela dependeria de um padrão comportamental em que cada ator repetiria o movimento do outro, reagindo positivamente a atitudes cooperativas e negativamente a atitudes hostis.

Ainda em plena Guerra Fria, quando a iminência de catástrofe nuclear exigia a cooperação bipolar entre EUA e URSS, o que poderia fazer mais sucesso que essa orientação apelidada de “tit-for-tat”, título de uma das populares comédias da dupla o Gordo e o Magro? Embora chegue a ser traduzida por “olho por olho, dente por dente”, a expressão está mais próxima do “toma lá, dá cá”, por ser uma tática que exige prévio arranque cooperativo.

No entanto, como sempre ocorre na ciência, uma boa resposta a uma difícil questão faz com que pipoquem novas dúvidas. Exemplo: se por mera razão acidental um dos atores falhar em fazer o esperado movimento positivo, isso por si só impediria a continuidade da cooperação? E o que ocorreria quando o esquema de cooperação envolvesse mais do que dois agentes? 

Foram questões desse tipo que promoveram o fulgurante avanço da biologia matemática nos últimos 20  anos. O padrão “toma lá, dá cá” não passa, hoje, de uma das três modalidades de uma das cinco dinâmicas de cooperação descobertas.

O “tit-for-tat” é manifestação rudimentar do que passou a ser chamado de “reciprocidade direta”. Novas simulações, realizadas sobretudo em Harvard pelo vienense Martin Nowak, indicaram que eventual passo em falso pode engendrar uma segunda chance, em estratégia apelidada de “toma lá, dá cá generoso”, a origem evolutiva do perdão. 

E desdobramentos ainda mais sofisticados revelaram um terceiro modo de reciprocidade direta, na qual o agente inverte sua atitude anterior ao notar que as coisas vão mal, mas logo depois volta a cooperar. Algo que já era bem conhecido na etologia como o comportamento “win-stay, lose-shift”, bem comum entre pombos, macacos, ratos e camundongos.

O segundo vetor da cooperação, chamado de “reciprocidade indireta”, decisivo para a evolução da linguagem e para o próprio desenvolvimento do cérebro humano, se baseia na reputação. Aqui, o que condiciona as atitudes são comportamentos anteriores em relações com terceiros. A cooperação avança quando a chance de um agente se inteirar sobre a confiabilidade do outro compensa o custo/benefício do ato altruísta.

Os demais determinantes da cooperação são as três formas em que se dá a chamada “seleção natural”, pois, além da já mencionada nepotista (de parentesco), ela não opera apenas entre indivíduos, mas também entre grupos (multinível) e mesmo em redes (espacial). 

Tudo isso, e muito mais, está bem explicado nas publicações de Nowak, com destaque para o excelente livro de divulgação científica “SuperCooperators: Altruism, Evolution and Why We Need Each Other to Succeed” (supercooperadores: altruísmo, evolução e por que precisamos uns dos outros para ter sucesso, 2011), redigido com a preciosa ajuda do notável jornalista britânico Roger Highfield.

Mesmo que este resumo seja apenas um aperitivo das descobertas da biologia matemática no âmbito da dinâmica evolutiva, dá e sobra para mostrar que o materialismo darwiniano aponta tanto para luta quanto para acomodação. O que certamente confirma a interpretação da obra de Darwin proposta pelo príncipe russo Piotr Kropotkin, em 1881, diametralmente inversa à simplória crença do jovem Costica Bradatan. 


José Eli da Veiga, professor-sênior do IEE-USP, em transição para o IEA-USP, é autor de "Amor à Ciência - Ensaios sobre o Materialismo Darwiniano" (ed. Senac) 

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