Descrição de chapéu Perspectivas

Livros adotam ponto de vista animal para discutir a ética humana

Da perspectiva dos bichos, escritores debatem problemas ecológicos que assolam o planeta

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Maria Esther Maciel

Numa das passagens do livro “A Vida dos Animais”, de 1999, o sul-africano J. M. Coetzee lança, pela voz de uma fictícia escritora australiana chamada Elizabeth Costello, uma frase contundente: “As pessoas dizem que tratamos os animais como objetos, mas na verdade tratamos os animais como prisioneiros de guerra”.

Referindo-se, aí, não apenas à condição dos bichos nos zoológicos e matadouros, mas também a todas as práticas cruéis de confinamento, exploração e sacrifício desses outros não humanos que conosco compartilham o que chamamos de vida, a personagem —que atua como uma espécie de alter ego do autor— abre terreno para que tal discussão passe a incidir, de maneira incisiva, na literatura do século 21.

Hoje, mais do que nunca, escritores de diferentes partes do mundo têm se ocupado da questão dos animais, levando para o espaço da ficção o debate sobre os problemas éticos que envolvem nossas relações com esses outros viventes e, por extensão, buscando reconfigurar, fora dos limites do antropocentrismo, o próprio conceito de humano.

Isso sem se furtarem também a uma reflexão, por vias criativas, acerca dos problemas éticos, políticos e ecológicos que assolam nosso planeta em nome do progresso econômico e de um suposto bem estar da humanidade.

No que tange a esses temas, o recente romance da escritora japonesa Yoko Tawada, “Memórias de um Urso-Polar” (Todavia), pode ser considerado exemplar. Nele, além de dar voz a três gerações de ursos-polares submetidos à exploração em circos e zoológicos europeus, a autora discute as deploráveis consequências do aquecimento global para a vida do planeta, ao mesmo tempo que confere aos viventes não humanos o estatuto de sujeitos singulares, dotados de inteligência, sentimentos e linguagens próprias.

Num viés afim, embora distinto, o franco-congolês Alain Mabanckou também se destaca no cenário da literatura atual como um autor que, trespassando as fronteiras de sua própria espécie, entra na esfera subjetiva de um animal para compor um provocativo e bem-humorado thriller a respeito das relações entre homens e seus duplos animais, a que deu o título de “Memórias de um Porco-Espinho” (Malê). 

Reinvenção irônica de uma lenda africana, o romance explora os contágios recíprocos entre as espécies e, sob o ponto de vista de um porco-espinho que relata os seus infortúnios, pondo em xeque a pretensa superioridade dos humanos em relação aos demais viventes. 

Não à toa, Mabanckou insere, ao final do livro, uma pergunta que Jacques Derrida também discutiu, por vias teóricas, em “La Bête et le Souverain” (a besta e o soberano): “Quem entre o homem e o animal é verdadeiramente uma besta?”. 

mabanckou
O escritor Alain Mabanckou na Flip 2018 - Walter Craveiro/Flip/Divulgação

Outro romance a tratar dessa questão é “Dog Boy”, publicado no Brasil em 2010 sob o título “A Hora entre o Cão e o Lobo”. Nele, a escritora australiana Eva Hornung traz para o espaço da ficção a história verídica de um menino russo que, aos quatro anos, é abandonado pelos pais e adotado por cães selvagens que vivem nos arredores de Moscou. 

Nos dois anos que passa junto da matilha, ele cria um surpreendente vínculo afetivo com os animais, que o protegem contra a violência do mundo e lhe ensinam formas de sobreviver nas ruas de uma cidade cheia de perigos. Nessa condição híbrida de menino-cachorro, o personagem enfrenta a crueldade humana e resiste, dolorosamente, a ser reintegrado ao mundo dos homens. 

Assim como Tawada e Mabanckou, Hornung debate os saberes legitimados sobre o mundo animal e, por extensão, nos leva a pensar sobre os limites de nossa própria humanidade. O que se dá ver, também, nos contos do livro “Alguns Humanos” (Tinta da China), do antropólogo e diplomata Gustavo Pacheco, publicado em 2018.

Ao misturar saberes etnográficos com os poderes imaginativos da ficção, o autor traz à tona uma visão irônica do humanismo antropocêntrico do Ocidente, mostrando como contribuiu não apenas para alimentar uma relação predatória dos homens com os animais como também para estabelecer hierarquias e práticas de violência nas relações dos humanos com os próprios humanos. 

Todos esses autores —aos quais poderiam ser acrescidos diversos outros que vêm contribuindo para esse debate no cenário cultural do presente— inventam, cada um à sua maneira, formas de acesso ao outro lado da fronteira que nos separa do animal e da animalidade. 

Evidenciam, com isso, a potencialidade que a literatura tem de revirar nossas certezas por meio da imaginação, além de assumirem a desafiante tarefa de pôr em prática em seus escritos o que o poeta português Herberto Helder resumiu em um verso: “Pensar com delicadeza e imaginar com ferocidade”.

Uma tarefa mais do que necessária nos dias atuais, sobretudo se levarmos em conta —e aqui penso, sobretudo, no Brasil— os crimes impetrados contra a natureza, a dizimação das comunidades indígenas e a invasão de suas terras, a disseminação descontrolada de agrotóxicos e o tratamento cruel dispensado aos animais nas granjas e fazendas industriais, entre muitos outros problemas que vêm convertendo nosso país —e por extensão, o mundo— numa terra desolada.


Maria Esther Maciel, escritora e professora de literatura na UFMG, publicou, entre outros, o livro “Literatura e Animalidade” (Civilização Brasileira).

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