Descrição de chapéu Memorabilia

Sérgio Mamberti conta o que ouviu de Jean Genet após fazer peça do francês

Escritor veio ao Brasil assistir à montagem de 'O Balcão' que o ator fez há 50 anos

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Sérgio Mamberti

“O Balcão”, de Jean Genet, foi extremamente marcante para mim. Genet era uma figura lendária para minha geração. Pelas posições políticas, mas também por sua marginalidade. Prisioneiro, ele foi abraçado por um grupo de intelectuais franceses que viram qualidade em sua obra, permitindo que fosse libertado.

Um desses pensadores era Sartre, outra figura muito importante para a formação filosófica da minha geração. O existencialismo como um processo de construção do seu modo de viver; a ideia de que você determina sua trajetória pelo conjunto de suas escolhas. 

Eu vim da Escola de Arte Dramática e tinha uma formação bem tradicional de teatro. Foram quatro anos de escola moldada nos padrões do Conservatório Dramático francês, muito rigorosa. Trazia os diretores internacionais que vieram para o TBC, mas também os uspianos, como Décio de Almeida Prado.

Então estávamos muito impregnados dessa qualidade do teatro de ser um reflexo da vida pública do país. Hoje a figura do ator ficou associada ao marketing, houve uma certa padronização da celebridade. Mas eu sempre procurei ser fiel à responsabilidade social do ator. Nunca separei minha vida política da vida cultural.

Isso vem desde os primórdios da minha formação. Nasci em Santos e era cinéfilo de frequentar clube; com uns 14 anos conheci e fiquei amigo da Pagu, que na época tinha cerca de 50, sem saber quem ela era. Nós éramos vizinhos e acabamos nos aproximando —ela estava muito apaixonada por teatro nessa época. 

Quando vim para São Paulo, convivi muito com os reflexos do modernismo na perspectiva histórica de reconstrução do país após a ditadura de Vargas, com a possibilidade de fazer reformas de base. O teatro tinha adquirido uma aura muito especial a partir do trabalho do TBC. Os grandes diretores que vieram da Itália moldaram gerações de atores. Tudo isso estava muito presente quando cheguei.

Ali em 1968, Victor García tinha vindo da Argentina fazer “Cemitério de Automóveis” e passou a frequentar minha casa, perto do teatro de Ruth Escobar, onde eu fazia o “Romeu e Julieta” dirigido pelo Jô Soares, com a Regina Duarte. Ficamos muito amigos.

Foi no meio dessa convivência que Ruth começou a desmontar o teatro para fazer a cenografia do “Balcão”, montagem que sempre tinha sido o sonho do Victor. Era um cenário histórico. Ela construiu um cone invertido, uma estrutura de ferro monumental. E o espaço cênico era o vazio do cone, algo vertical, fora do padrão de qualquer teatro.

As peças do Genet costumavam falar sobre a estrutura da sociedade. “O Balcão”, por exemplo, é um bordel. Tinha o bispo, que seria Raul Cortez, o general, de Dionísio Azevedo, e o juiz, que seria Sérgio Britto.

Os ensaios da montagem se prolongaram tanto que Sérgio começou a achá-la faraônica, que poderia não se concretizar. Então voltou para sua vida no Rio. E Victor se viu sem um dos principais personagens. 

Eu me ofereci a ele, que respondeu: “Não, querido, o juiz é um senhor. Precisaria ter no mínimo o dobro da sua idade”. Eu lia Genet desde os 15 anos e era absolutamente apaixonado. Disse ao Victor que conhecia aquele universo e queria a chance. Não era à toa que Sérgio Britto tinha ido embora, eu dizia. “Yo 
quiero un viejito”, ele respondia. 

Mas ele não conseguia achar o ator em nenhum teste e, quando todo o resto da produção já estava pronto, se convenceu de que tinha que me testar. Deu uma semana para decorar o texto e apresentar o trabalho no cenário, com marcações. Quando o teste terminou, ele aplaudiu e disse, enfim, que eu tinha razão. 

Foi um papel muito marcante. Era um tour de force do ponto de vista corporal, sobe aqui, desce ali. Entrávamos sem roupa e éramos vestidos em cena; era todo ritualístico. Foi um acontecimento mundial.

A crítica destacou meu trabalho como o que mais realizava a estética da peça; o Raul, que era mais experiente, ficou chateado e, um mês depois, acabou saindo do espetáculo. Ele era vaidoso, era feito criança. 

Até que, com um ano de peça, Ruth conseguiu trazer o próprio Genet para vê-la. Ele assistiu ao espetáculo de vários lugares diferentes e não falou nada conosco quando acabou. Ruth deu um jantar para apresentá-lo ao elenco, durante o qual ele ficou recolhido numa sala de lado. Uma hora, ele me chamou.

Falou assim: “Essa peça tem uma relação forte com meu passado e, do ponto de vista teatral, foi muito importante na minha vida. Eu fazia política no teatro tradicional. Hoje, faço nas ruas com os Panteras Negras. A peça faz parte de um passado que não renego, mas que não se conecta com o que faço hoje. Mas o personagem do juiz é um que adoro. Vi várias montagens ao redor do mundo e não podia deixar de dizer que quem criou o juiz como eu o imaginei foi você”.

Completou dizendo que tinha gostado muito da peça e pedindo, gentilmente, que eu não falasse aquilo para ninguém, para não magoar os atores. Então fiquei com isso dentro de mim por muito tempo. 


Sérgio Mamberti, ator e diretor, já venceu os prêmios APCA e Molière por papéis no teatro.

Depoimento a Walter Porto

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