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Conceição Evaristo foi farol que me deixou mais sensível, diz Lia Rodrigues

Coreógrafa fala sobre como literatura da escritora a fez entrar em estado de poesia

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Lia Rodrigues, em depoimento a Walter Porto

Eu parto sempre da literatura para o meu trabalho. Preciso ler muito para estar num estado de criação, num estado de poesia. 

Faz alguns anos que senti uma falha na minha formação: conhecia muito pouco de literatura africana e afro-brasileira. Então me dediquei a estudar, para mim mesma, para me desenvolver melhor como ser humano, como brasileira e como artista.

Tenho feito grandes descobertas. Ana Maria Gonçalves, “Um Defeito de Cor”: todo brasileiro devia ler.

Eu já tenho 64 anos, sabe? E é tão maravilhoso pensar que há tanta coisa a ser descoberta, que pode me ajudar a pensar diferente e a falar diferente para aqueles que estão ao meu redor. A literatura faz isso comigo.

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A escritora mineira Conceição Evaristo - Richner Allan/Divulgação

Mas gostaria de falar sobre duas mulheres cujo trabalho eu descobri bem tardiamente, mas que possuem uma sensibilidade que me tocou de forma profunda: Conceição Evaristo e Rosana Paulino.

Foram impulsos muito vigorosos no meu jeito de pensar. Meu trabalho é olhar para o mundo como ele é, nesse Brasil tão terrivelmente racista e desigual, do qual eu sou parte da elite —como uma mulher branca de classe média, estou num lugar de muito privilégio.

Nós temos que estar mais do que atentos, acordados para a desigualdade e o racismo no Brasil. Quando passam helicópteros atirando na favela, de que cor são as crianças que morrem? E de que cor é a mulher que chora a morte delas?

Que isso nos ajude a tentar modificar o lugar que a gente ocupa na estrutura do país, que é dura com a população negra, principalmente com a mulher negra. O Brasil tem uma dívida com essa população. 

E não adianta só ficar triste com essa estrutura, é preciso achar um jeito, dentro daquilo que você faz, de contribuir para destruí-la. Não acho que a arte precise falar sobre isso, pode-se falar ou não sobre esses assuntos. Mas eu, como cidadã, não posso fugir ao meu dever.

Essas duas artistas, Conceição e Rosana, foram faróis que me ajudaram a ficar mais sensível. Não só pelo aspecto social, mas pela qualidade poética do trabalho de cada uma. 

Li quase todos os livros que pude encontrar da Conceição, de poesia a contos. Sua escrita é de um refinamento, de uma sobriedade.

Ela fez uma exposição no Centro de Artes da Maré (RJ), que criei há dez anos junto com a Eliana Souza Silva, da Redes da Maré. Dali floresceu uma escola de dança e o centro de artes, que é a nossa casa, onde criamos nossos trabalhos.

A obra da Conceição ficou um tempo exposta lá. Como eu vou àquele lugar todos os dias, entrei na exposição todos os dias. 

Mais do que isso, os alunos da escola de dança fizeram uma performance em torno da mostra em exibição. Montaram um grande mural com trechos, fragmentos e imagens, e improvisaram bastante em cima do trabalho dela.

Tem um texto em que Conceição fala sobre fazer moldes com o barro, por exemplo. Uma das bailarinas escolheu esse trecho e criou uma performance com as mãos. 

Mais recentemente, tive também uma experiência forte com a obra da Rosana Paulino. Tocou-me profundamente sua sensibilidade, sua capacidade de nos transportar para outros lugares e outros mundos de forma tão contundente. 

Vi uma exposição sua no Museu de Arte do Rio, mas já a pesquisava antes. Também usamos imagens da obra dela para nos inspirar. 

Mesmo que sua linha de trabalho seja tão dolorosa, ela traz um caminho que acende uma luz. Você se permite ir além. É inacreditável a maneira como ela faz você visitar o passado, sentir tudo no presente e vislumbrar um outro futuro.

É algo que nos deixou muito vivos e nos inspirou a criar outra coisa a partir daquilo. O trabalho de um grande artista —e se o meu fizesse isso com outros, eu ficaria feliz— nos impulsiona a continuar criando. 
De alguma forma nós nos apropriamos, devoramos esses trabalhos antropofagicamente, e eles estão aí, espero que como um jeito de homenagear essas artistas.

Nosso trabalho é como um livro de imagens, feito de um jeito bastante livre. A liberdade é uma coisa muito bela —falo essa palavra em um tempo tão sombrio, de censura, de desmanche, de desmantelamento da cultura e da educação—, uma obra de arte que nos dá liberdade e ativa nossa poesia, tão necessária, é algo magnífico. Mas depende muito do artista estar aberto a receber tudo isso. 


Lia Rodrigues é coreógrafa; sua companhia de dança apresenta o espetáculo “Fúria” no Sesc Consolação até dia 27/10.

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