'Coringa' usa ressentimento para justificar violência, diz psicanalista

Ponto forte do filme é emancipação do personagem, que transcende sua condição para parecer livre e anárquico

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Pedro de Santi

“I have a condition” (eu tenho um problema). Assim se justifica Arthur Fleck diante das pessoas, quando se vê atravessado por uma incontrolável e inadequada gargalhada. Algo nele se impõe, sem que uma reação seja possível.

Disso derivam muitas das cenas de bullying e agressão. Essa impossibilidade de se sentir sujeito da própria vida, de se sentir como alguém que realmente exista, perpassa aquele que irá encontrar uma identidade como o Coringa.

Na última semana, foi lançado o aguardado filme dirigido por Todd Phillips. Todos os comentários que o antecederam davam conta de uma atuação estupenda de Joaquin Phoenix. E de fato, o centro do filme é a atuação visceral do protagonista. Suas expressões facial e corporal são incríveis. O corpo de Phoenix ora dança com extrema leveza, ora se contorce como se os ossos estivessem todos quebrados e fora do lugar.

O filme funciona muito bem. Para um psicanalista, porém, são as dimensões subjetivas do personagem que se destacam.

Encontramos uma composição de características de psicose e uma dinâmica de relações pessoais e sociais extremamente rude e violenta. A caracterização de Phoenix da experiência psicótica é verossímil, mas o filme corre o risco de simplificar a dimensão psicológica para tentar justificar sua condição: abandono, abuso, relação fusional e mortífera com a mãe, o enigma sobre o pai ausente.

A cisão estabelecida entre as risadas de Arthur Fleck e a tragicidade de sua situação é um dos pontos mais agoniantes do filme: sofremos com o personagem ao vê-lo tentar se conter quando cria problemas.

Ao dizer que aquelas risadas são uma condição, Fleck expressa sua dimensão de sintoma, algo que parece irracional e incontrolável ao sujeito, que o envergonha e perturba a imagem identitária que ele gostaria de sustentar. 

Embora o sintoma pareça sem sentido para a pessoa, ele expressa algo que traz em seu inconsciente e acaba por vazar de forma disruptiva, atrapalhando sua vida. E as gargalhadas —aparentando uma felicidade que torna invisível aos outros (e à própria mãe) o que ele realmente sente— faz com que Fleck manifeste um sintoma social, em tempos de tecnologia da felicidade.

O filme é pleno de cisões —a cisão do personagem consigo, assim como a cisão social entre o que a voz das pessoas reclama e o que o poder instituído ignora, ocupado com sua própria agenda. A falta de comunicação e de reconhecimento, a forma rude como os indivíduos se tratam, as mentiras e a indiferença entre uns e outros: tudo isso compõe o quadro vivido pelo Coringa.

No filme, evoca-se um mito clássico: o palhaço que —como na ópera "Pagliacci", de Ruggero Leoncavallo, ou em tantas cenas de Charles Chaplin—  ri no desenho de sua máscara enquanto, no fundo, chora e sofre.

Nesta versão do Coringa, a presença de Robert De Niro como um apresentador de TV, que serve como escada para a história, é emblemática e irônica. Arthur Fleck, o humorista fracassado, ressentido e pronto a transgredir para ter sua oportunidade de ser visível, remete a "O Rei da Comédia" (1982), clássico dirigido por Martin Scorsese, no qual De Niro fazia um também desajustado e incômodo aspirante a comediante.

O ponto fraco do filme talvez resida no ressentimento e na vitimização diante de um mundo cruel, como forma de justificar sua violência. O ponto forte é a emancipação que acaba acontecendo, de modo que o personagem transcende sua condição anterior e começa a parecer livre e anárquico.

É então que surge um sentido de potência e leveza. Aquele que passava a vida invisível como palhaço ou como cidadão dependente do serviço público precário finalmente conquista reconhecimento, rompe com sua condição oprimida e passa a ser visto e amado.

Movimento ambivalente: de um lado, Fleck passa a existir, ainda que seja como destruidor; de outro, ele sucumbe definitivamente ao Coringa, que se impõe em glória.

O filme alça o Coringa a símbolo de uma insatisfação geral, de chute no balde das pessoas que se cansaram de jogar o jogo social e partem para a desordem. Então ele se torna o vilão-herói, com o qual nos identificamos. Algumas cenas evocam nossas manifestações de 2013. Naquele momento, nenhuma bandeira partidária era hasteada, mas se difundiu a máscara de outro "joker": a de "V de Vingança".

O Coringa de Todd Phillips vem gerando críticas e preocupações. Uma delas: a de que sirva como justificativa para atiradores que invadem escolas e cinemas, matam muitos e se matam ao final. Outra: a de que o personagem encarnado por Joaquin Phoenix se transforme num líder de uma estética da violência, que vaze para o ambiente real. Foi o que aconteceu, para a tristeza de seus diretores, com filmes como "Laranja Mecânica" (1971), de Stanley Kubrick, e "Clube da Luta" (1999), de David Fincher.

A violência produzida por frustração, ressentimento e cansaço com a ordem geral pode explodir nas ruas. Mas pode acontecer coisa pior: ela pode chegar ao poder pelo voto, como demanda popular.


Pedro de Santi é psicanalista e professor da ESPM-SP.

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