Descrição de chapéu Perspectivas

Fatos são negociáveis em um texto literário de não ficção?

Livro retrata embates entre um escritor e um checador de informações na produção de ensaio

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Irinêo Baptista Netto

Em 2003, a revista Harper’s encomendou um texto a John D’Agata sobre o fato de Las Vegas (EUA), ser a cidade, naquela ocasião, com o maior número de suicídios no país. 

O escritor decidiu abordar o assunto a partir da morte de um adolescente de 16 anos, Levi Presley, que saltou do topo de um arranha-céu com 350 metros de altura. 

A Harper’s, entretanto, considerou que o texto continha imprecisões factuais e desistiu de publicá-lo. D’Agata levou o relato para outra revista, The Believer. Antes de publicar a história, os editores submeteram o material a uma checagem rigorosa, a cargo de Jim Fingal.

máquina escrever
Modelo raro de máquina de escrever conservada - Rubens Cavallari/Folhapress

Com persistência, Fingal dissecou o trabalho de D’Agata e apontou os problemas do texto numa série de e-mails trocados entre 2003 e 2010, quando a Believer enfim publicou o texto, com correções, sob o título “What happens there” (“o que acontece lá”, uma referência ao famoso lema da cidade, “o que acontece em Vegas fica em Vegas”). 

O livro “The Lifespan of a Fact” (“a vida útil de um fato”, inédito no Brasil), de 2012, publica o ensaio recusado pela Harper’s em fragmentos pequenos no centro de cada página, emoldurados pela correspondência entre o escritor e o checador. O texto fica vermelho quando há conflito entre o que afirma D’Agata e o que conseguiu apurar Fingal. 

Uma questão fundamental do trabalho é: o quão negociável é um fato dentro de um texto de não ficção? Para complicar um pouco mais —uma complicação que não pretendemos enfrentar neste texto—, D’Agata rebate várias correções do checador, dizendo que não é jornalista e que não tem a pretensão de escrever um texto jornalístico. Diz ter escrito um ensaio, e vale-se desse argumento mais de uma vez. 

É um debate complexo, pois parte do pressuposto de que o ensaio esteja na categoria de não ficção, mas seria algo diferente do jornalismo literário ou do texto científico. Nos termos de D’Agata, um ensaio é não ficção, mas não necessariamente se atém aos fatos. 

O trabalho de um checador respeita algumas regras elementares, como transparência das fontes e da metodologia usada, segundo a International Fact-Checking Network. Além dessas, as publicações são livres para estabelecer regras próprias.

No episódio envolvendo o ensaio sobre Las Vegas, a Harper’s optou por não publicar o texto, mas a Believer o fez anos depois com algumas correções, perdoando vários problemas apontados pelo checador —nesses casos, o editor funciona como um juiz. 

Quando um texto vai ser checado, é normal que o autor forneça suas anotações e referências, indicando de onde vieram as informações usadas no trabalho. Além disso, o checador entra em contato com as pessoas ouvidas pelo escritor, a fim de conferir desde detalhes prosaicos, como a grafia dos nomes, até outros bem mais relevantes, como saber se o entrevistado realmente disse a fala atribuída a ele na reportagem. 

No livro, a disputa entre Fingal e D’Agata é dura. O escritor afirma que a queda de Presley levou nove segundos. Fingal foi atrás do boletim de ocorrência da polícia e descobriu que as autoridades registraram oito segundos —policiais que atenderam aos chamados de emergência feitos por testemunhas presenciaram o salto do adolescente.

Confrontado com a informação, D’Agata responde que o número nove tem um significado importante para a história —remete, por exemplo, aos nove níveis do Taekwondo que o jovem praticava. Em outras palavras, não considerava tão importante assim o fato de ter acrescentado um segundo à queda, ainda mais se foi com a intenção de criar um efeito poético. “É só um segundo”, afirma D’Agata. 

Aliás, esse é um argumento frequente do autor: de estar usando arte e poesia para narrar uma história, e que arte e poesia são mais importantes que fatos verificáveis.

“‘Nove’ é uma parte fundamental do texto a essa altura. E, de qualquer forma, admito mais para a frente que estou errado a respeito do número. Então não vou corrigir. Isso arruinaria o texto”, escreve D’Agata em email para Fingal. “O texto ficaria ‘arruinado’ por ficar mais preciso?”, devolve o homem da checagem de fatos. “Sim”, diz o escritor.

Lendo os fragmentos, é difícil não pensar que os dois estão de picuinha. Pode-se questionar, inclusive, como foi que a polícia calculou os oito segundos, algo que o livro não explica. 

Talvez a arte de um escritor de não ficção esteja, justamente, na capacidade de dar explicações que ficariam desajeitadas nas mãos de alguém menos talentoso, sem passar por cima de informações relevantes. Esse parece ser o propósito de D’Agata. 

Ou talvez Fingal seja o herói da história, encontrando incoerências e inconsistências não só no texto de D’Agata, mas também em documentos oficiais. O livro deixa a impressão de que ambos exageram seus argumentos. 

“The Lifespan of a Fact” trata dos bastidores de um único texto feito por um escritor específico e verificado por um checador específico, mostrando as decisões que orientam o processo de criação e edição de não ficção. Trata-se de uma tarefa complexa e, em alguma medida, insondável. 


Irinêo Baptista Netto é doutor em letras pela Universidade Federal do Paraná.

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