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Fim de selo adulto da DC Comics ilustra novo momento dos quadrinhos

Criado em 1993, Vertigo catapultou títulos como 'Sandman' e 'Preacher', mas não impactava mais leitores e vendedores nos EUA

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Marcelo Miranda

Em junho, duas notícias sacudiram o mercado de quadrinhos norte-americano. Inicialmente não estavam vinculadas, mas uma não existiria sem a outra. 

A mais bombástica foi o anúncio de que o selo Vertigo, criado em 1993 pela DC Comics para publicar HQs voltadas ao leitor adulto, chega ao fim em janeiro de 2020. A outra, mais suave, era que o escritor best-seller Joe Hill vai iniciar uma linha de gibis de horror coordenada por ele e publicada pela mesma DC que encerrou a Vertigo. 

As duas informações revelam um movimento de mercado. Fazia anos que as séries da Vertigo não mais impactavam leitores e vendedores nos EUA. A marca que, ao longo de 25 anos, catapultou títulos como “Sandman”, “Hellblazer”, “Monstro do Pântano”, “Transmetropolitan”, “Y: O Último Homem” e “Preacher” —e que fez a carreira de autores hoje autênticos popstars, em especial Neil Gaiman, Alan Moore, Grant Morrison, Garth Ennis, Brian K. Vaughan e Warren Ellis— já não rendia nem dividendos nem prestígio para a editora de Batman e Superman. 

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Arte do desenhista Brian Bolland para a série ‘Sandman’, da Vertigo - Reprodução

A figura essencial no sucesso da Vertigo foi Karen Berger, editora responsável pelo selo entre 1993 e 2012. Quando ela saiu do cargo, alegadamente em busca de novos desafios, mudou-se para a bem mais modesta Dark Horse (lar da série “Hellboy”), onde tem uma linha com seu próprio nome, Berger Books, e total liberdade criativa.

Com a saída de Berger, houve uma dança das cadeiras na direção da Vertigo. A DC nunca se recuperou de sua ausência, e a situação se agravou nos anos seguintes por motivos externos. Com a ascensão das adaptações de quadrinhos para múltiplas plataformas (cinema, televisão, streaming), dezenas de autores passaram a produzir gibis já de olho nas possibilidades de transmídia. 

Alguns nomes se tornaram mestres nessa relação, como Gaiman, Morrison e Mark Millar, cujas histórias são constantemente transformadas em filmes e séries. 

Com tantas potencialidades de ganho, escritores e desenhistas perceberam não ser mais bom negócio iniciar séries autorais numa grande editora como a DC, propriedade do grupo Warner Media, que fica com os direitos de adaptação de suas publicações. Hordas de quadrinistas migraram com seus gibis pessoais para editoras como Image, Dark Horse e IDW, cujos contratos são bem mais favoráveis para quem eventualmente negocie royalties a outras mídias. 

Por pressão do próprio mercado de transmídia, a DC percebeu que precisava dialogar com seus autores. Dar-lhes mais espaço, mais benefícios e visibilidade, oferecer algo que os seduzisse a permanecer (ou retornar) com seus quadrinhos para a editora. A Vertigo já não era mais caminho para isso. Ou melhor: era, mas como travessia para alguma outra coisa.

Em 2016, a DC anunciou o selo “Wildstorm”, encabeçado por Warren Ellis —que tivera passagem bem-sucedida na Vertigo com “Transmetropolitan” (1997-2002). O autor tinha liberdade de escrever seu próprio título e cuidar de histórias alheias dentro de um mesmo universo de conceitos. 

Outra iniciativa da mesma época foi o Young Animal, com curadoria do rockstar Gerard Way, autor de “The Umbrella Academy”, gibi da Dark Horse que virou série na Netflix. Com liberdade similar à de Ellis, ele resgatou a “Patrulha do Destino”, grupo criado pela DC em 1963, cujo “revival” se tornou um dos principais produtos da Vertigo nos anos 1990, quando era escrito por Grant Morrison.

Cada novidade dessas era mais pá de cal na Vertigo. A DC claramente estava apoiando o trabalho de autores específicos, em detrimento de uma marca maior que os abrigasse. Nunca foi uma política assumida da empresa reproduzir o que  editoras menores faziam, mas sempre pareceu bastante evidente que a DC decidira se mover antes de ficar sem grandes nomes em seu selo adulto.

Com “Sandman Universe”, anunciada em 2018, explicitou-se ainda mais que a Vertigo seria abandonada. A editora convocou Neil Gaiman para coordenar vários spin-offs do título de maior repercussão do selo, publicado entre 1989 e 1996 e até hoje um dos quadrinhos mais vendidos no mundo. Os gibis do “Sandman Universe” saíam com a marca DC Vertigo/Black Label. Especula-se que este último nome (Black Label) foi o escolhido pela editora para substituir a Vertigo. 

Essa transição segue vinculada a nomes autorais. Um dos novos projetos é a Hill House Comics. A partir do próximo mês de outubro, ao menos cinco minisséries serão publicadas sob comando de Joe Hill. Ele vai escrever duas delas e coordenar as outras três. Ganhador do prêmio Eisner de melhor escritor em 2011 pela HQ “Locke & Key”, da IDW, Hill é quadrinista e romancista, com livros adaptados para TV e cinema. Nas horas vagas, ele ainda calha de ser filho de Stephen King.

O fim da Vertigo não é só o desfecho (um tanto melancólico, porém digno) de uma das ações mais fundamentais ao prestígio dos quadrinhos em toda sua história. É também o prenúncio de novos tempos para a DC, que parece aprender, com as máquinas em movimento, como operar num novo tipo de ambiente de consumo cultural e de exigências autorais. Se a Black Label fará jus à antecessora, há um longo caminho a trilhar para sabermos. 


Marcelo Miranda é crítico, curador e pesquisador de cinema. Escreve na revista Cinética e realiza o podcast Saco de Ossos, com entrevistas sobre ficção de horror no Brasil.

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