Descrição de chapéu Memorabilia

Joca Reiners Terron conta como Tintim estimulou sua imaginação

Sem os capítulos anteriores e seguintes das histórias, só me restava inventar, diz escritor

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Na condição de escritor e ocasional professor de oficinas de criação, os caminhos bifurcados que a imaginação literária toma sempre terminam caindo à mesa na forma de perguntas. De onde tira suas ideias? Como é que chegou a essa ou àquela solução para isso ou aquilo? São dúvidas legítimas de leitores e alunos, para as quais é difícil formular resposta. Não custa tentar mais uma, porém, para fracassar novamente e desta vez melhor.

A alternativa óbvia é considerar que a origem das histórias se dá na experiência pessoal ou na própria literatura, a partir de influências fornecidas pela leitura de autores admirados. É evidente que sim, pois pensar o contrário disso seria determinar que o leitor não passa de um sujeito passivo, sem direito a participação nos rumos da conversa. No entanto, essa experiência nem sempre vem de onde se espera, de fontes nobres como os clássicos.

No meu caso foram fundamentais as revistas seriadas do tipo “à suivre” e “to be continued” (“continua”), tão características dos quadrinhos da era de ouro dos anos 30 e 40, nas quais uma mesma história era contada aos capítulos, publicados aos domingos. 

Como não sou tão velho assim, meu contato com esse tipo de publicação foi através das edições semestrais encadernadas do Tintim português dos anos 70, que eu comprava na Livraria Martins Fontes, em Santos (SP), onde passava férias.

Tintim, “a revista dos jovens dos 7 aos 77 anos”, era publicada semanalmente e depois encadernada em edições semestrais de capa dura. As encadernações eram pautadas pela periodicidade sequencial, e quando as encontrava, as aventuras —do jovem repórter de Hergé, mas também de Blake e Mortimer, de E.P. Jacobs, e Corto Maltese, de Hugo Pratt, ou de criadores portugueses como Fernando Relvas— já estavam iniciadas em números anteriores, assim como o desfecho só se daria nos volumes seguintes, aos quais eu não tinha acesso.

Como vinha dizendo, a leitura nada tem de passiva, isso deveria ser claro, mas não costuma ser. Se metade do trabalho corresponde ao autor, ao leitor não sobra menos do que a outra metade da operação. Talvez por isso a cada dia se leiam menos livros complexos, com narrativas enviesadas e compostas com linguagem exigente. Ninguém quer pegar no pesado, ainda mais em se tratando de atividade comumente ligada ao entretenimento, nem mesmo os autores. 

Sem os capítulos anteriores e seguintes do Tintim, eu não conhecia o início e muito menos o final das aventuras. Só me restava imaginá-los. Vale dizer que esse tipo de experiência interrompida e não linear, em tempos de streaming e acesso irrestrito ao conteúdo da internet, parece em vias de extinção. Ninguém se lembra mais da sensação de pegar o bonde andando, ou o filme começado na TV (e depois assistir ao início na reprise, tudo fora de ordem).

E aqui aparece um problema (ou uma resposta inicial àquela primeira questão), a literatura imaginativa trabalha com dilemas semelhantes aos da ficção menos original, além de operar sob a mesma equação: somar para multiplicar (ou cortar, copiar e colar). Porém como os resultados podem soar tão diferentes? Serão mesmo tão diferentes?

A imaginação funciona como uma espécie de sistema de validação. O leitor, assim como o agente Fox Mulder, quer acreditar. A imaginação testa a resistência dos materiais narrativos: ao ignorar a origem, o desdobramento ou o desfecho dos fatos, a imaginação preenche os espaços vazios. 

“É o que permite que a arte seja feita”, afirmou Donald Barthelme num célebre ensaio. “Sem o processo de tateamento gerado pelo não conhecimento, sem a possibilidade de fazer a mente se mover em direções imprevistas, não haveria invenção.”

A cada nova aventura do Tintim, Hergé o coloca em situações diferentes: ora num deserto, ora na selva amazônica. Nesta aventura, a se virar com a maldição do faraó, na outra, a fugir com um ídolo indígena roubado. Numa situação, a bordo de um transatlântico. Noutra, num avião. A originalidade surge nos interstícios desses dados variáveis, brotando como erva daninha e se multiplicando caoticamente a partir daquilo que não se conhece, pois à mente só resta inventar.


Joca Reiners Terron, escritor, venceu o prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional pelo romance “Do Fundo do Poço Se Vê a Lua” (Companhia das Letras) e acaba de lançar “A Morte e o Meteoro” pela Todavia.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.