Melodias sofisticadas explicam força de Ivone Lara e Elton Medeiros

Mestres do samba, ambos criaram canções imprevisíveis e populares, inspirados por amplo conhecimento musical

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Lucas Nobile

As mortes de Elton Medeiros, no dia 4 de setembro, e de Dona Ivone Lara, em abril do ano passado, validam um antigo clichê: aquele de que “o artista vai, mas a obra permanece”. Em tempos de singles e hits tão instantâneos quanto efêmeros, o que pode colaborar para que tais obras permaneçam? Uma das contribuições para isso acontecer é artistas da atualidade gravarem e, consequentemente, preservarem vivos os repertórios de compositores tão notáveis.

Recentemente, por exemplo, Fabiana Cozza gravou composições de Ivone Lara no disco “Canto da Noite na Boca do Vento”. E Elisa Gudin cantou quatro criações de Elton no EP “O Melhor Carinho”. Iniciativas como essas estimulam o público a (re)ouvir as gravações originais desses autores e intérpretes importantes não apenas para o universo do samba, mas para a história da música popular brasileira.

Escrever sobre Yvonne da Silva Lara e Elto Antônio de Medeiros (nome com o qual ele foi batizado, assim mesmo, sem o “N”) me remete a uma história vivida cinco anos atrás. 

No quarto de um hotel localizado no bairro dos Jardins, em São Paulo, a cantora e baixista norte-americana Esperanza Spalding me disse o seguinte: “O mundo está carente de melodia. Nisso, o Brasil é único, é mágico”. À época, a jovem, uma das principais revelações do jazz nas últimas décadas, que já havia sido enfeitiçada pelas composições de Milton Nascimento, estava hipnotizada pelas músicas de Guinga.

Neste assunto, tão caro a Esperanza e em que o Brasil, de fato, é prodigioso, Dona Ivone e Elton Medeiros ocupam lugar de destaque. Ambos foram mestres em criar melodias ultrassofisticadas e, ao mesmo tempo, extremamente populares. Não à toa, povoam o imaginário de um país com mais de 200 milhões de habitantes. Basta citar dois de seus maiores sucessos: “Sonho Meu” (de Ivone com Delcio Carvalho) e “O Sol Nascerá” (de Elton com Cartola).

Alguns aspectos determinantes ajudam a entender a criação de melodias estilisticamente tão singulares desses dois compositores. Ainda que intuitivos e motivados pelo mistério da inspiração, Dona Ivone e Elton detinham amplos conhecimentos musicais em comum. 

Para compor, por exemplo, às vezes ambos lançavam mão do cavaquinho. Sem serem cavaquinistas, digamos, virtuosos, usavam o instrumento mais como base harmônica. A melodia já estava dentro deles, transbordava e fluía como a água de um rio que vai com naturalidade da nascente à foz.


Tomei conhecimento dessa facilidade criadora de Elton Medeiros a partir de inúmeros relatos de seus parceiros. Entre eles, Paulinho da Viola, Hermínio Bello de Carvalho, Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, Tom Zé, Afonso Machado, Cristóvão Bastos e Eduardo Gudin. 

Em relação a Dona Ivone, o contato foi ainda mais próximo. Além de ouvir depoimentos dos mais de 60 personagens que entrevistei para escrever um livro sobre ela — “Dona Ivone Lara: A Primeira-Dama do Samba” —, tive a oportunidade de ouvi-la compor algumas vezes. Nos bastidores de shows realizados em São Paulo ou na casa da família dela, em Madureira, no Rio, a escutei solfejar melodias inéditas como se elas sempre tivessem existido.

Voltando às bases referenciais, é essencial destacar que Elton e Dona Ivone tiveram aula de canto orfeônico —prática do cantar em coros, instituída durante o governo do presidente Getúlio Vargas pelo genial compositor Heitor Villa-Lobos

Com isso, aprenderam a “abrir vozes” (assumir a segunda ou terceira voz, por exemplo) e também a fazer os chamados contracantos (ornamentos, espécies de bordados melódicos que acompanham a melodia principal, comumente feitos por instrumentos de sopro, como o saxofone, ou por um violão de sete cordas). Nesta arte, seguramente Elton aprendeu muito, na juventude, tocando trombone. 

Dona Ivone teve como professoras Zaíra de Oliveira, premiada cantora lírica e companheira de Donga, e Lucília Villa-Lobos, pianista e primeira esposa do maestro de mesmo sobrenome. Dentre as inúmeras gravações em que Ivone esbanja nos contracantos improvisados na hora, a mais impressionante é a de “Não É Assim”, samba de Paulinho da Viola lançado em 1982, no LP “A Toda Hora Rola uma Estória”, ainda hoje marcante para o próprio.

“Tive uma experiência muito bonita com a Dona Ivone. Naquela gravação, ela faz uns contracantos de uma beleza, rapaz, só com aquela voz maravilhosa dela para fazer aquilo. Se você olha a ficha técnica daquele disco, está lá ‘Contracanto: D. Ivone Lara’, como se fosse um instrumento mesmo”, afirmou. 

Outro ponto chave em comum para que Elton Medeiros e Ivone Lara se tornassem dois dos maiores melodistas do Brasil está na influência do choro. O primeiro declarava especial admiração pelo trombonista e compositor Cândido Pereira da Silva, conhecido como Candinho. 

Em 1979, Elton produziu um LP do também trombonista Nelsinho interpretando músicas de Candinho. Dona Ivone, por sua vez, quando criança, testemunhou chorões icônicos como Pixinguinha, Jacob do Bandolim e o próprio Candinho tocarem em saraus realizados na casa do tio dela, Dionísio Bento da Silva, trombonista e um dos pioneiros do violão de sete cordas no país.

Por fim, além dos conhecimentos de Dona Ivone Lara e Elton Medeiros sobre os ranchos carnavalescos —tanto o pai dele quanto os pais dela eram frequentadores do histórico Flor do Abacate—, não há como ignorar a evidente importância das escolas de samba na trajetória de ambos. 

Elton esteve entre os fundadores de três agremiações: a Tupy de Brás de Pina, a Aprendizes de Lucas e a Quilombo. Dona Ivone foi ligada, por laços familiares, à Prazer da Serrinha e, depois, ao Império Serrano, escola pela qual escreveu seu nome na história ao se tornar, em 1965, a primeira mulher a compor um samba-enredo apresentado no desfile do chamado Grupo Especial do Carnaval carioca.

Na contracapa do LP “Samba na Madrugada”, de Elton e Paulinho, Hermínio Bello de Carvalho retratou o compositor mais veterano com a seguinte frase: “Em Elton, surpreendemos o melodista anticonvencional, de uma inventiva ilimitada”. Dona Ivone —que ainda acrescentou o jongo a seu caldeirão de influências— se encaixa igualmente à definição de Hermínio, com quem divide a autoria do clássico “Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço”.

Também é fundamental lembrar das criações da primeira-dama do samba com Delcio Carvalho —com quem firmou parceria tão entrosada que ambos classificavam como “mediúnica”—, como “Acreditar”, “Alvorecer”, “Liberdade” e “Nasci pra Sonhar e Cantar”; com Jorge Aragão, “Tendência” e “Enredo do Meu Samba”; com Nei Lopes, “Felicidade Segundo Eu”; e com Paulo César Pinheiro, “Bodas de Ouro”. 

Sem falar nos alumbramentos arquitetados só por ela, como “Amor Inesquecível”, “Confesso”, “O Meu Amor Tem Preço” e “Alguém Me Avisou”. Sinuosas e nada óbvias, suas melodias permanecem imprevisíveis e raras, sem nunca deixarem de soar familiares aos ouvintes.


Lucas Nobile, jornalista, é autor dos livros “Dona Ivone Lara: A Primeira-Dama do Samba” (Sonora) e “Raphael Rabello: O Violão em Erupção” (Editora 34)

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