Patrimônios culturais sofrem desmonte silencioso, diz ex-ministro

Juca Ferreira afirma que ataque à cultura ocorre com mesma desfaçatez, mas menos barulho, que o desferido contra o ambiente

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O país está assistindo, estarrecido e de certa forma atônito, ao desmonte de uma das mais antigas instituições dedicadas à defesa de nosso patrimônio histórico. Este ano o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) completou 82 anos. Uma idealização do modernismo brasileiro de 1922

O ataque do desgoverno Bolsonaro, que já vinha sendo conduzido por Temer, se inicia por meio da indicação política de pessoas tecnicamente desqualificadas para gerir as unidades estaduais do instituto. Mais do que uma troca de comandos, este é um passo decisivo rumo à completa desestruturação das políticas públicas de cultura implementadas desde 2003. 

Assim que assumiu, Temer teve que recuar diante de uma reação popular ao decreto que extinguia o Ministério da Cultura e também da criação de uma secretaria de patrimônio diretamente ligada ao ministro da pasta. Havia o deliberado propósito de facilitar ações predatórias do capital imobiliário de olho na monetização de parte do nosso patrimônio histórico e cultural.

Tal reação o fez dar curso ao desmonte de modo mais dissimulado. O que não está acontecendo com o atual desgoverno.

No rol dos contemplados para superintendentes do Iphan, com o que supõem ser um presente ou uma sinecura ou um lugar para fazer amigos e retribuir favores, há gente cujo critério de seleção foi –pasmem!– um sorteio, conforme declaração do próprio sorteado em entrevista gravada ao tradicional jornal O Popular, de Goiânia. 

Entidades profissionais, conselheiros e ex-presidentes têm se manifestado com espanto e indignação. Prefeitos de cidades históricas de Minas Gerais reconhecidas pela Unesco como Patrimônio Mundial, por saberem o quanto é importante ter gente comprometida em cuidar de temas essenciais às suas cidades, pediram que o ministro Osmar Terra reconsiderasse estas indicações.

O Ministério Público Federal muito timidamente recomendou ao ministro a anulação da nomeação do indicado para Goiás por não atender ao interesse público e à legislação, configurando desvio de finalidade. Mas nada disso se fez ou se fará. 

O atual governo está formado por pessoas que, além de não terem qualquer sensibilidade para o significado de nosso patrimônio cultural e ambiental na formação do povo e da nação brasileira, nem mesmo o têm quanto ao significado econômico de sua preservação. 

A resposta do ministério tem sido de um silêncio ensurdecedor, enquanto os indicados, um tanto assustados, declaram publicamente que irão aprender o ofício que reconhecem desconhecer. É dramático, assustador e extremamente preocupante.

O desmonte do sistema voltado para o meio ambiente, do qual fazem parte o Ibama, ICMBio e o Conama se apoia em estratégia diferente daquela posta em prática no campo da cultura.

O do meio ambiente foi alardeado desde a campanha de Bolsonaro e vem sendo cumprido com afinco, com requintes de ironia e muita provocação feitas pelo ministro Ricardo Salles.

Difícil dizer qual deles é mais eficaz, um está sendo feito mais silenciosamente, mas com a mesma desfaçatez.

O Ministério da Cidadania nunca disse o que pretende com a cultura, mas todos sabem qual é o desejo do governo Bolsonaro: submergir através da tutela, do corte das verbas e da censura um setor que considera incômodo e inútil.

O ministro nada ouve e nada vê, a ponto de permitir que, em mais uma noite de mau humor, um subordinado seu ataque virulenta e gratuitamente uma artista do porte de Fernanda Montenegro.

A ninguém espanta a maneira como Bolsonaro vem tratando a premiação do Camões para Chico Buarque. No limite, têm sido vetadas e inviabilizadas todas as produções culturais consideradas ideologicamente não alinhadas. 

Sendo assim, por que esperar que essas criaturas respondam ao clamor de tanta gente para que se mantenha a qualidade e a capacidade de execução de uma das mais tradicionais e efetivas instituições públicas do país, o Iphan? Faz tempo que o órgão ultrapassou em muito a ideia que o senso comum faz das instituições de patrimônio, ou seja, a de uma modorrenta burocracia guardiã de relíquias do passado. 

Digo isso com a experiência de quem foi ministro da Cultura e que, nos embates do cotidiano, pôde ter a dimensão da grandeza e da complexidade dessa instituição. Foi sua agenda que me apresentou alguns dos maiores desafios que enfrentei: de interesses imobiliários não republicanos até pressão dos setores de infraestrutura, de energia, da mineração, buscando soluções imediatistas no licenciamento de empreendimentos que, muitas vezes, não eram as melhores nem mesmo para quem as demandava.

Foi também o Iphan o mais forte aliado em levar para dentro do Ministério da Cultura, com fundamento não apenas conceitual, mas, sobretudo legal, uma agenda de promoção e desenvolvimento sustentável de comunidades tradicionais detentoras de saberes e práticas de inestimável valor cultural.

Foi com investimentos no patrimônio, em parceria com a educação, que articulamos soluções de desenvolvimento para cidades históricas até então sem perspectivas de futuro. Foi por meio do Iphan que praticamos extensa articulação com outros setores da política pública, como o meio ambiente, a educação, o desenvolvimento urbano e o turismo.

É justamente nessas unidades estaduais, hoje loteadas, que residem os grandes problemas, é nelas que surgem os maiores desafios e é nelas ou a partir delas que engendramos as grandes soluções. Por outro lado, é também nelas que se iniciam os desastres, por vezes de consequências irreversíveis, já que lidam com um ativo raro e não renovável: os bens culturais, os monumentos, os sítios arqueológicos, as paisagens.

Para o desespero dos nomeados sem qualificação, é bom saber que os dirigentes locais não são meros carimbadores de papel. Eles vão precisar ter estatura técnica e moral para resolver dilemas complexos sob o ponto de vista do interesse nacional, tanto para liderar equipes de profissionais bem formados e experientes quanto para encontrar soluções junto às comunidades e ao setor privado que conciliem demandas legítimas sem causar danos ao patrimônio.

E adianto aos que aceitaram o cargo sem conhecer o ofício que não há manuais que respondam a toda essa diversidade de questões, não há um FAQ disponível na internet com respostas prontas para perguntas frequentemente surpreendentes.

Volto ao triste paralelo com a política ambiental. O discurso de demolição da agenda ambiental, a negação ao conhecimento científico sobre as mudanças climáticas, o desmonte do Conam, se agravaram mais ainda quando o Ministério do Meio Ambiente retirou o apoio à fiscalização, seja criminalizando seus fiscais, seja cortando recursos logísticos e de segurança.

As consequências disso vieram com uma rapidez assombrosa, na forma de queimadas moralmente autorizadas pelo discurso do governo que instigou o dia do fogo na Amazônia, alcançando repercussão mundial e provocando danos econômicos e na imagem do Brasil.

O paralelo com o meio ambiente não se faz somente pela proporção do escândalo e seu impacto mundial, mas pela semelhança estratégica em forma e conteúdo: corte de recursos e desqualificação do trabalho técnico, não importando se um ministro orgulhosamente alardeia e o outro silencia.

Aviso aos navegantes: a instituição que hoje está sendo atacada conseguiu a proeza de ser respeitada por todos os governos brasileiros, inclusive pelos governos militares considerados referência para o governo atual. Tudo isso devido a sua conduta ética, dignidade e espírito púbico ao longo das suas oito décadas de existência. O mínimo que se pede é respeito ao Iphan.


Juca Ferreira é secretário municipal de Cultura de Belo Horizonte, sociólogo e ex-ministro da Cultura.

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