Bienal de Arquitetura no Chile discute espaço público em meio a protestos

Curadora chilena radicada no Brasil conta como debates foram engolidos pelas manifestações

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Paula Monroy

[RESUMO] Curadora da homenagem a São Paulo na Bienal de Arquitetura do Chile relaciona a temática do evento —a valorização do espaço público e de projetos que acolham as demandas reais da população— aos protestos que tomaram as ruas de Santiago.

Em outubro foi apresentada em Santiago a intervenção “São Paulo: Diálogos y Límites”, no bojo da programação da 21ª edição da Bienal de Arquitetura chilena.

Para criar laços com a comunidade, a equipe curatorial teve como estratégia sair do espaço institucional para levar o evento às ruas e aos galpões do popular bairro comercial de Franklin, em Santiago. Naqueles mesmos dias, a cidade tornou-se palco de uma série de protestos, um dos maiores movimentos sociais da história do país. 

A bienal chilena teve como tema central “Lo común y lo corriente” (“o comum e o ordinário”), no intuito de refletir acerca de uma arquitetura menos elegante que os edifícios culturais e casas de Smiljan Radic e menos emergenciais do que a habitação social do Prêmio Pritzker de 2016, Alejandro Aravena, ambos arquitetos de renome internacional. 

O evento buscou valorizar uma arquitetura que não é necessariamente celebrada nas capas de revistas, mas que acolhe as demandas reais de pessoas anônimas. 

Nesse sentido, a bienal trouxe ao debate a questão da classe média chilena, cerca de 60% da população, segmento que não é suficientemente rico para optar por algum tipo de financiamento habitacional privado e nem suficientemente pobre para receber auxílio estatal. 

A despeito dos indicadores econômicos positivos ostentados pelo Chile, a classe média vive em função de um patrimônio que não tem, uma vez que o desenvolvimento econômico é desigual, os recursos naturais (água, florestas) e sistemas (como saúde e Previdência) são privatizados e a distribuição de serviços, equipamentos urbanos e de mobilidade não é precisamente equitativa.

Neste cenário, eu, uma chilena radicada há quatro anos no Brasil, fui chamada para ser curadora da mostra de São Paulo, cidade convidada desta 21ª Bienal. 

Santiago e São Paulo guardam muitas similaridades. Ambas são exemplo de crescimento urbano acelerado e de grande desigualdade social. Fora isso, também havia grande curiosidade por parte da organização em entender como as instituições, a disciplina e a sociedade paulistana lidam com as determinações de um governo de extrema direita como o de Bolsonaro, que tem o modelo chileno como exemplo. 

Dessa forma, a intervenção paulistana englobou a exposição de 21 trabalhos (com destaque para as obras Sesc 24 de Maio, de Paulo Mendes da Rocha e do escritório MMBB, do Centro Universitário Maria Antônia, do UNA Arquitetos e do Reffetorio Gastromotiva do Metro Arquitetos), uma instalação temporal (concebida por Marcella Arruda, Helena Cavalheiro e alunos da Escola da Cidade), um curta-metragem (dirigido por Alexandre Benoit e Clarissa Mohany) e palestras com convidados (Maria Cau Levy, Juliana Braga de Mattos, Giselle BeiguelmanGuilherme Wisnik, Marcella Arruda e Helena Cavalheiro). 

Dentro de um antigo galpão de curtume, falou-se então sobre certas táticas de guerrilha que buscam reformular não apenas o papel da arquitetura, mas da cultura e da sociedade em situações políticas adversas. 

Discursos que provavelmente provocaram quem se dispôs a ouvi-los.  Num intervalo entre as palestras, um homem pertencente à indústria da construção se aproximou de mim e disse: “Gostaria de ter comentado que vocês têm uma visão da propriedade privada que eu não compartilho. Sou pró-neoliberalismo e acredito na proteção do que é meu”.

Impossível seria prever para aquele homem, e para a maioria de nós, os movimentos que tomariam as ruas, numa proporção que surpreendeu ao mundo inteiro. Naquelas ruas próximas a nós emergiria um descontentamento generalizado daquele mesmo povo “ordinário”, cansado de ser vendido como cartão postal de primeiro mundo. 

Nos dias seguintes, aquele espaço público seria fragilizado pela violência das forças militares, pelo toque de recolher a partir das 18h e por violações aos direitos humanos, uma espécie de macabra reconstrução das bases de um passado ditatorial. A bienal teve que ser cancelada.

Os paulistanos que falavam em “diálogos e fronteiras”, em “alianças e confrontos”, em “fraternidade e violência”, descreviam, sem saber, a nós mesmos enquanto povo chileno. Não entanto, a dimensão do descontentamento social, cujo estopim foi o aumento das tarifas do transporte público, transcendeu o debate de uma bienal de arquitetura.

Como falar em práticas insurgentes no espaço público sem antes cessar a repressão da livre circulação nas ruas, as mortes de civis por parte do corpo uniformizado e a criminalização de um movimento social de um país inteiro?

Como falar em urbanidade sem revisar nossa representatividade e verdadeira participação política no planejamento urbano?

Como entender a arte na mídia digital em um momento em que a maioria da mídia oficial do país se tornou fonte de informação falsa, enquanto repórteres de veículos alternativos, como foi o caso dos argentinos da Telesur TV, estão sendo perseguidos e presos?

Como elogiar a contribuição por parte do reconhecido escritório chileno Elemental na questão da segregação territorial sem antes debater por que o valor do metro quadrado em Santiago é de cerca de R$ 600 na periferia e de uns R$ 25 mil nas regiões nobres da cidade?

Por fim, como especular sobre o projeto arquitetônico para a classe média se, como foi denunciado recentemente pela intervenção urbana “por un habitar digno”, os órgãos públicos estão validando empreendimentos com produtos de 17 metros quadrados?

Esses habitáculos, conhecidos como “nanoapartamentos”, a despeito de terem dimensões, quando muito, apenas levemente superiores às medidas mínimas permitidas para as habitações de emergência, são vendidas por valores que oscilam entre R$ 295 mil e R$ 350 mil. Já o aluguel ultrapassa o salário mínimo chileno, algo em torno de R$ 1.700. 

Em outras palavras, nós, chilenos e chilenas, hoje precisamos continuar lutando nas ruas, a partir de nossas práticas e nossos ofícios, para a construção de uma nova Constituição. Qualquer outra agenda parece agora banal.

Já de volta ao Brasil, recebo uma imagem no grupo de WhatsApp da organização da bienal. Um dos nossos carros-expositores que circulara entre as feiras de rua do bairro Franklin ardia em chamas. Creio que sua madeira se tornou um ótimo material combustível para alguma barricada na região. Ficamos felizes: morreu na luta. 


Paula Monroy é arquiteta, mestranda em projeto, espaço e cultura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e professora assistente na Escola da Cidade.

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