Brasileiro quer ver aventura, mas cinema nacional produz drama e comédia

Cerceada por competição de Hollywood e falta de investimento, produção do país é refém de gêneros mais baratos

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Rafael Peixoto

[RESUMO] Cerceado pela competição poderosa dos filmes de Hollywood e pela falta de investimentos públicos e privados, cinema brasileiro fica refém de gêneros mais baratos, como comédia e drama, nem sempre os preferidos do público.

Muita gente se lembra do comercial dos biscoitos Tostines: “vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?”

Pois o cinema brasileiro enfrenta uma dúvida existencial igualmente complexa. Os filmes nacionais vendem pouco porque não têm dinheiro, ou não têm dinheiro porque vendem pouco? Numa indústria que emprega 400 mil pessoas, essas questões  possuem repercussões profundas.

Todo ano, 160 milhões de pessoas invadem as 3.300 salas de exibição brasileiras. Só que 8 em cada 10 veem filmes de Hollywood. 

A baixíssima quantidade de salas, o marketing virulento dos títulos estrangeiros e nossa anêmica política pública para o setor são algumas das razões para este cenário, mas isso é tema para outro artigo. Eu sou roteirista. E vou falar do que eu entendo: contar histórias.

Que histórias nossos filmes estão contando? E que tipo de histórias nós deveríamos contar?

Um estudo recente da Ancine (Agência Nacional do Cinema) derruba o mito de que o brasileiro não gosta de filme nacional. Dos 10 longas mais vistos no país de 2009 a 2017, 3 são nacionais e 2 estão no topo da lista: “Os Dez Mandamentos” e “Tropa de Elite 2”. Diante do capitão Nascimento, o Capitão América “pediu pra sair”.

O brasileiro ama filmes nacionais, mas o sucesso de títulos isolados não pode balizar uma indústria. Precisamos produzir o que o público quer ver. A tabela abaixo traz dados esclarecedores.

Metade do público de cinema tem de 14 a 34 anos. É um grupo jovem, que adora emoções intensas. Não por acaso, o gênero que mais atrai público no Brasil é aventura (38%). 

A indústria cinematográfica internacional norteia sua produção de acordo com informações desse tipo. Entre os filmes de aventura lançados no Brasil de 2009 a 2017, 96% eram estrangeiros. 

No Brasil, o enredo é bem diferente. Mesmo sendo o gênero com maior público médio por filme no país, apenas 1% de todos os longas nacionais lançados no mesmo período eram de aventura. Se somarmos a eles os filmes de ação, outro gênero pouco explorado no Brasil, chegamos a 38 títulos produzidos entre 2009 e 2017, que venderam mais de 30 milhões de ingressos. Os 384 dramas lançados no mesmo período venderam 35,7 milhões de ingressos.

Por que não produzimos mais aventura? Ou ação, um gênero em que nossos filmes têm performance levemente superior à de filmes estrangeiros? 

A comédia é nosso caso de maior sucesso —a bilheteria nacional está muito acima da estrangeira. Nosso alinhamento com o mercado é inequívoco, tanto em quantidade de produções quanto no tipo de trama que estamos contando. Por que não levar essa estratégia de acertos para outros gêneros?

Há muito espaço, por exemplo, para animações brasileiras. Temos técnica, o que se constata em nossas produções na TV, premiadas no mundo inteiro. Faltam, porém, investimentos, já que animação é um gênero caríssimo de se produzir. 

E falta roteiro. Escrever um filme de duas horas não é o mesmo que escrever um episódio de oito minutos. Algumas das nossas animações possuem tramas que não ecoam no público; fora isso, não raro elas se esquecem dos pais, os sofredores que levam seus filhos aos cinemas.

Algo parecido pode ser dito do terror. Considerado um gênero de nicho no Brasil, é alvo de desconfiança de distribuidores e produtores, apesar de seu custo de produção mais modesto. Há espaço para roteiristas que tragam frescor e busquem alternativas à herança de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, que tem méritos inegáveis, mas é apenas parte de nossa tradição no gênero. Na literatura, por exemplo, temos o realismo fantástico para nos inspirar.

A boa performance dos filmes de ação e aventura brasileiros, como “Assalto ao Banco Central” ou “Tainá - A Origem”, comprova seu potencial. No entanto, o alto custo, com locações remotas, sequências estrambólicas e muitos efeitos visuais exigidos por esses gêneros possuem impacto direto na oferta de títulos. 

Há cerca de dois anos fui contratado para escrever um filme de aventura. Pelo custo elevado, os produtores pediram que eu adaptasse o roteiro para o inglês. Agora negociam com um estúdio americano. Será uma produção estrangeira, falada numa língua que não é a nossa.

O dinheiro tem papel definitivo nas escolhas de gênero dos filmes nacionais. Cinema é caro. Um longa custa o mesmo que uma planta industrial. Fala-se muito, no meio audiovisual, de “valor de produção”: o espectador só gasta seu dinheiro num filme se “sentir” que vale a pena pagar o ingresso. 

Isso se traduz em cenários e figurinos impecáveis, som perfeito, visual incrível, elenco de peso e, claro, uma história que emocione. Produzir animação, ação ou aventura com pouco dinheiro compromete a entrega do “valor de produção”. A plateia vai debandar. O risco financeiro é gigante. 

Para complicar ainda mais esse enredo, há o limite de verbas das políticas públicas. Hoje, o máximo que uma produtora pode captar por filme, somando Fundo Setorial do Audiovisual e aporte privado via Lei do Audiovisual, é R$ 12 milhões. Representa US$ 3 milhões, uma quantia destinada a filmes de baixíssimo orçamento em Hollywood.

Conseguir investimento fora das leis de incentivo é complexo no mundo todo —por isso blockbusters americanos também se valem parcialmente de verbas públicas. Aqui no Brasil é ainda pior. Nossa economia é vilipendiada por impostos escorchantes e títulos da dívida pública que pagam juros altos com risco baixo, enxugando o dinheiro do mercado.

O que nos resta é apelar para os gêneros de menor custo: dramas e comédias. Nas comédias, nós encontramos o tom para agradar o público. Nos dramas, o amor dos festivais. Cinema, afinal, não pode viver só de resultado econômico. 

Os grandes filmes promovem avanços na arte e questionamentos profundos na sociedade. E alguns dramas tiveram resultados excelentes, especialmente os de temática espírita, uma tendência de mercado no mundo todo, e os biográficos, como “Chico Xavier”, “Bruna Surfistinha” e “Gonzaga – De Pai para Filho”.

Há outro gênero que custa o mesmo que drama ou comédia, e na Coreia do Sul leva 15% do público aos cinemas: o suspense. Calcado em texto envolvente e estrutura de custos enxuta, já provou sua força com diretores como Alfred Hitchcock, Brian De Palma, Chan-wook Park e os brasileiros Fernando Coimbra e Beto Brant, entre muitos outros. 

Alguns por aqui já perceberam o filão. Recentemente fui convidado para transformar o livro “O Jardim dos Girassóis”, um drama de Lygia Barbiére Amaral, num suspense. 

Foi um trabalho de reengenharia intenso que exigiu muito de mim, do diretor e dos produtores. Tivemos que identificar o fio condutor da história e agregar elementos de suspense sem desfigurar a trama original e sem perder de vista nosso objetivo: um filme com a cara do Brasil, mas de alcance global. É arte somada à visão de mercado.

Há um fôlego imenso para as comédias nacionais, e nossos dramas ainda vão render muitos prêmios. No entanto, dentro da realidade econômica do país e frente às incertezas das políticas públicas para o setor, aposto no suspense como uma alavanca para o cinema nacional na próxima década, preenchendo uma lacuna comercial e artística importante, enquanto aventura, ação e animação encontram seu espaço entre investidores privados.

Quem sabe assim, daqui a uns 20 anos, não consigamos mudar a balança das bilheterias em favor das produções brasileiras?

Então, retornando ao dilema Tostines, a resposta é simples: conte uma história que venda muito e custe pouco, e depois coma o biscoito. Aí o dinheiro para produzir caro e vender muito mais acaba aparecendo. 


Rafael Peixoto é roteirista do longa “O Jardim dos Girassóis”, em fase de produção, e criador da série premiada “Rainha de Espadas” (em negociação com canais).

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