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Igreja de são Francisco e música de Villa-Lobos casam sagrado e profano

Apresentações musicais do modernista ajudam a ampliar visitação de marco arquitetônico carioca

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Celina Côrtes

Um inusitado casamento acontece no centro do Rio de Janeiro, entre são Francisco de Assis e o maestro e compositor Heitor Villa-Lobos. 

Foi assinada uma parceria entre a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis da Penitência, no convento de Santo Antônio, no largo da Carioca, com a Escola de Música Villa-Lobos. 

É um deleite para os visitantes. Se em Paris a beleza da arquitetura gótica da Sainte-Chapelle pode ser apreciada durante concorridos e caros concertos musicais, nossa joia barroca, a Igreja de São Francisco de Assis, é aberta ao público, gratuitamente, às primeiras quintas do mês e em outras datas comemorativas. 

igreja
Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis da Penitência, no convento de Santo Antônio (RJ) - Divulgação

A Ordem Terceira da Penitência, integrada por leigos —a primeira Ordem é de frades, e a segunda, das irmãs clarissas— começou a se estabelecer no largo da Carioca em 1619, quando já existia ali o convento de Santo Antônio. Quem olha de fora nem imagina que o convento reúna duas congregações distintas. 

A igreja foi concluída em 1748, executada pela dupla de entalhadores lisboetas Manoel de Brito e Francisco Xavier de Brito —este, mestre do Aleijadinho. Causa forte impacto o conjunto talhado em madeira, com uma película de ouro não maciço. 

“A construção, por 110 anos, começou pelo projeto dos dois portugueses, porém tudo o que se fez depois seguiu a mesma orientação, como se tivesse uma única assinatura, o que explica tanta beleza”, observa Carlos Pinheiro, administrador do conjunto formado pela igreja e pelo museu sacro.

Por sua vez, Heitor Villa-Lobos deixou mais de 2.000 obras. Inventou uma peculiar linguagem musical brasileira, que mescla nuances das culturas regionais do país com elementos das canções populares e indígenas. É considerado o maior expoente musical do modernismo no Brasil

A escola que leva seu nome, no corredor cultural do centro do Rio, foi fundada em 1952. Com quase 4.000 alunos, funciona como centro popular de ensino de música. Oferece cursos profissionais técnico, básico e de formação, para todas as idades.

O “cupido” deste casamento foi Expedito Veloso, 72, que em 1976 foi estudar piano na escola, depois teve que se afastar por falta de disponibilidade e voltou há dois anos, dessa vez para estudar trombone. Hoje trabalha na Igreja de Santo Antônio. “Achei que seria viável o namoro entre as duas partes”, brinca. E foi.

Desde que a parceria foi firmada, em agosto, já se apresentaram na igreja três diferentes corais, com repertórios entre o clássico, gospel e MPB, e o pianista João Carlos Assis Brasil. No próximo encontro, na quinta (7), haverá homenagem aos 60 anos de morte de Villa-Lobos, com apresentação do prelúdio da “Bachiana n°4”.

O encantamento dos músicos com o cenário, de excelente acústica, é visível a cada apresentação. Tudo se insere em um processo iniciado há cerca de dez anos, quando a igreja foi reaberta. Antes, ela passou mais de 40 anos fechada, porque os franciscanos se concentravam no hospital da rua da Carioca, demolido durante as remodelações do início do século 20 promovidas pelo prefeito Pereira Passos (1836-1913) e transferido para a Tijuca. 

Quando os frades assumiram o hospital, a Ordem Terceira passou a se dedicar à igreja e ao museu sacro. Hoje, a menina dos olhos do administrador são as visitas guiadas gratuitas das escolas públicas. “Elas não tratam de religião, mas do estilo arquitetônico do conjunto em aulas de arte e história”, acrescenta Pinheiro. Uma recente campanha turbinou o número de visitantes, que passou de 50 a até 2.000 pessoas por mês.

A igreja reúne outros detalhes caros ao deleite do olhar, como a nave, com a glorificação do santo, e o Cristo Seráfico, uma raridade alada, sob o olhar de são Francisco, que teria entrado em transe ao ver o Cristo crucificado durante jejuns e orações. A imagem conta apenas uma faceta da história deste santo, nascido Giovanni di Bernardote dei Moriconi, filho de um comerciante de tecidos. 

Após uma juventude inquieta, Francisco começou a viver experiências de fé divididas em dois momentos. No primeiro, ele propõe que Deus é o pai de todos; em seguida, que todos somos irmãos, no que inclui seres humanos e a criação, as plantas e animais. Hoje 440 mil fransciscanos estão distribuídos por 72 países, e há no Brasil 582 fraternidades.

Nem só de passado, porém, vive o histórico conjunto. 

Um contrato com a Fundação Getulio Vargas prevê o apoio, desenvolvimento, fiscalização e transparência do Projeto Caminho de São Francisco, que agrega a restauração do patrimônio do museu sacro com a construção de um centro cultural. As etapas de revitalização já estão aprovadas pelo Iphan e pelo programa Nacional da Cultura (Pronac).

O projeto está em fase de captação de R$ 200 mil para obras emergenciais, que incluem recuperação de um acervo de 5.300 livros acumulados desde 1622, instalação de novos elevadores, construção de um anexo para o museu abrigar as mais de mil peças guardadas na reserva técnica e de uma pousada para receber os franciscanos de todo o mundo, além de auditório, restaurante e salão de eventos.

Segundo o administrador, “o projeto prevê o desenvolvimento de atividades que possam gerar receitas ao museu, para que todo o patrimônio artístico, cultural e religioso seja preservado para as futuras gerações”. 

O fato é que, com ou sem esses benefícios, a Igreja da Ordem Terceira da Penitência é um tesouro que merece ser conhecido não só pelos cariocas, como pelos visitantes do país e do exterior. 


Celina Côrtes é jornalista e escritora.

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