Descrição de chapéu Memorabilia

Rubem Valentim descortinou horizonte a minha frente, diz Ricardo Aleixo

Poeta conta como ficou fascinado com as ideias do artista plástico, nos anos 80

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Ricardo Aleixo

No início de 1982, para ser exato, no dia 21 de janeiro do ano em que eu escreveria a primeira leva de poemas que o meu nível de exigência de virginiano definiu, finalmente, como mais do que apenas legíveis, minha mãe, Íris, me trouxe da rua um exemplar do jornal O Globo.

Tornara-se uma rotina alegre, aquela. Sempre que saía, de manhã bem cedo, rumo ao centro da cidade, para comprar os produtos (balas, chicletes e pipocas) e os ingredientes de que se valia para confeccionar as guloseimas (chup-chups, picolés, bolos) que punha à venda na movimentada bitaca em que transformou a nossa casa desde 1977, minha mãe voltava com exemplares dos jornais do dia. Um local, quase sempre o Estado de Minas, e um de fora, o que ela encontrasse na banca.

Eu ia direto aos cadernos de cultura. Naquele inesquecível 21/1/1982, mal recebi o exemplar de O Globo das mãos de Íris, descartei todo o restante papelório inútil e deparei com nada menos que uma entrevista concedida pelo artista plástico Rubem Valentim ao crítico e curador Frederico Morais, intitulada “Toda criação é mestiça”. 

rubem valentim
O artista plástico Rubem Valentim (1922-1991) com algumas de suas obras, em foto de 1989 - Bel Pedrosa/Folhapress

Uma página e meia, ilustrada por cinco fotos de obras do artista, com ele à frente de uma delas. O último terço da página também não era de se jogar fora: Any Bourrier, correspondente do diário carioca, assinava um pequeno texto sobre Man Ray, cuja existência eu ignorava até a data. 

Até aquela altura eu nunca ouvira falar ou lera nada acerca do meu conterrâneo Morais, nem do baiano Valentim, que me encantou já por ser um sujeito negro a lidar com um refinadíssimo repertório estético-cultural, ousado o bastante para aproximar vertente construtiva da arte brasileira e legado plástico-visual africano e afro-brasileiro

Não sabia bem por qual motivo eu deveria fazê-lo, mas guardei com carinho essa preciosidade, talvez porque intuísse que se encontravam nela os fundamentos da arte que eu passaria a desenvolver num futuro bem próximo. Creio que Valentim se definia —e era definido— como “mulato”, mas isso não me importava. Eu o vi como negro, precisava vê-lo como negro. Um homem-artista negro num mundo no qual parecia só haver brancos, homens brancos. 

Li e reli a entrevista incontáveis vezes, como aliás fazia com tudo que me caía às mãos naquele tempo de pouco acesso a informação qualificada e ninguém com quem palestrar sobre poesia e arte. Tamanho isolamento era compensado pelo fato de eu dispor de todo o tempo do mundo para estudar o que bem quisesse, respeitados, é óbvio, os limites do exíguo estoque de livros adquiridos pela minha irmã, que, se ainda não podia ser chamado de biblioteca, já se avolumara o bastante para me permitir a iniciação no hábito, que se mantém até hoje, de ler três ou quatro volumes de uma vez.

Eu já estava, de certa forma, preparado para ter contato com a obra e o pensamento de Rubem Valentim, graças ao estudo sistemático das proposições teóricas e práticas dos poetas do grupo Noigandres, o que me levou a conhecer razoavelmente bem a obra dos artistas concretos, bem como a dos neoconcretos e a de Alfredo Volpi. 

Totalmente fascinado pela hipótese de um vocabulário técnico-formal calcado no rigor geométrico, li com entusiasmo a resposta de Valentim a uma pergunta de Frederico Morais que hoje me parece um tanto ingênua (“Seu trabalho tem um caráter construtivo, você cria estruturas tão rigorosas quanto as de Mondrian, para citar um exemplo. O que isso tem a ver com o candomblé?”): 

“Tudo. Na sua aparente soltura, o candomblé revela uma estrutura interna muito coesa. E não só o candomblé, mas tudo mais na vida. Caso contrário, acabaríamos nos caos, as coisas seriam puro eco, não haveria comunicação. Existe um ritmo que encadeia tudo. Uma energia que aproxima as coisas, as tornam presentes, e nos permite comunicar. Eu percebo claramente a existência de uma interligação entre as coisas e os objetos ou entre estes e os seres. Como se houvesse um diálogo entre as coisas, os seres e os objetos, ou como você diz, uma gestalt unindo tudo.”

Era todo um horizonte estético que se descortinava à minha frente. Estético e ético, uma vez que para Rubem Valentim o gosto pela simetria, que ele definia como um “fundamento” de sua vocação construtiva, era também informado, no plano político, por sua condição de “socialista liberal”, sempre disposto a buscar “o mesmo peso de todos os lados”. 

Transcorreu um longo tempo até que eu pudesse ter um contato mais direto e meditado com o pensamento e a obra desse artista imenso, mas a semente já estava lançada. Na solidão do meu “quarteliê”, eu repetia de memória, em voz alta, trechos da conversa dele com Frederico Morais. 

Como este: “Incapaz de inovar ou renovar, o artista modernoso recorre ao brilho fácil, ao polimento. E age assim porque sabe que o burguês gosta da coisa polida, é atraído pelo brilho. Porém, o artista só existe quando tem sua linguagem, seu dialeto. Tendo, continua vivo e atual. Agora, quem tem habilidades mas não está embalado por um sonho, quem não tem sua própria poética, cai no fácil, no vazio, no ecletismo, brilha apenas, roubando ideias aqui e ali, apropriando-se de ideias alheias.” 

Fiz de palavras como essas a base para o programa criativo que eu ainda não tinha condições de saber que desenvolveria um dia. Para os meus 21 anos, já era muita coisa ter com quem —uma página de jornal— conversar sobre arte e vida. 

O poeta Ricardo Aleixo, que lança "Pesado Demais para a Ventania" (Todavia)
O poeta Ricardo Aleixo - Rafael Motta/Divulgação

Em 1995, na condição de curador da primeira edição do Festival Internacional de Arte Negra de Belo Horizonte/FAN, tive a honra de visitar, em Brasília, o acervo de Valentim, morto quatro anos antes. Muito gentilmente recebido por Dona Lúcia, viúva do artista, vivi alguns instantes de profunda emoção junto daquelas obras que tanto marcaram a minha formação artística e cultural.

Meses depois, quando parte dessas obras foi exibida na capital mineira, dentro da programação do FAN, senti que eu havia começado uma outra etapa da conversa com um dos artistas a quem mais devo respostas. Uma conversa, espero, sem data para acabar, de que também consta, além deste breve exercício de admiração e gratidão, um poema que saiu, em 1996, no número especial (“Brésil Brazil Afro-brasileiro”) da Revue Noire, editada na França:

Emblema para Rubem Valentim

mitos            habitam            círculos
meias-luas                      pontas 
de setas             machados
de duplo corte
cruzes de bizâncio
séculos                           o instante


Ricardo Aleixo é poeta, artista visual/sonoro e pesquisador das poéticas intermídia. Este texto é adaptado do livro de memórias “A Três por Quatro”, que sairá pela Todavia no primeiro semestre de 2020.

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