Barbárie antissemita assume estética de game de tiro

Stephan Balliet, 27, transmitiu ao vivo a seguidores ataque a sinagoga na Alemanha

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“Olá, meu nome é Anon. Acredito que o Holocausto nunca tenha acontecido. As raízes de todos esses problemas são os judeus. Vamos ser amigos?”

Foi assim, assumindo a barbárie como cartão de visitas, que Stephan Balliet (de codinome Anon), 27, iniciou a transmissão ao vivo de seu ataque à sinagoga de Halle, na Alemanha, no último 9 de outubro.

arma de stephan, vista em primeira pessoa
Still de transmissão ao vivo feita pelo atirador Stephan Balliet exibindo ataque a sinagoga alemã - AFP

Disposto a promover um genocídio em pleno Yom Kippur, data sagrada do calendário judaico, o jovem teve seus planos frustrados pela rigidez da porta do templo.

Resistente aos tiros, a madeira da entrada impediu que o atirador chegasse às 50 pessoas que cumpriam suas preces. Frustrado, matou dois pedestres até ser preso pela polícia. Durante a fuga, parte final do vídeo de 35 minutos, se dirigiu aos espectadores: “Me desculpem. Não consigo matar bosta nenhuma. Sou um perdedor.”

Raiva, asco, desgosto. Dentre as milhares de reações possíveis ao episódio, surpresa já não faz parte da lista. O antissemitismo é realidade concreta, que, ultrapassando livros de história, cresce exponencialmente pelo mundo.

Em março, reportagem desta Folha mostrou que atos antissemitas —agressões, tentativas de homicídio e depredação de patrimônio— cresceram 74% na França de 2017 a 2018. No último dia 2, inclusive, mais de cem túmulos do cemitério judaico de Westhoffen, no leste da França, amanheceram pichados com suásticas. Na Alemanha, este crescimento atinge 60%. A tragédia de Halle se soma, portanto, às estatísticas aterrorizantes de uma perseguição milenar e insistente.

Há, no entanto, um componente deste episódio ainda em fase inicial. Tal como Brenton Tarrant, o australiano que, no início deste ano, matou 50 religiosos em duas mesquitas de Christchurch (Nova Zelândia), Anon não mediu esforços para que a matança assumisse o visual dos games de tiro.

Filmado em primeira pessoa —como se de fato fosse a imagem de um Playstation—, o vídeo foi veiculado em uma plataforma de jogos online e assistido em tempo real por mais de 2.000 espectadores. O registro do ataque, assombroso em seu pragmatismo, é também didático de uma relação cada vez mais recorrente: o vínculo entre violência e virtualização.

O debate não é novo. Há 20 anos, quando os alunos Eric Harris e Dylan Klebold promoveram o massacre na escola de Columbine, nos EUA, levantou-se a hipótese de que teriam sido influenciados pelo game Doom. Em 2001, a BBC noticiava: “Famílias de Columbine processam produtoras de jogos”.

Ao longo dos anos, não foram poucos os estudos que se concentraram na possível confluência entre jogos violentos e crimes. Em um dos mais recentes, promovido pela Oxford Internet Institute no último fevereiro, o parecer é de que os resultados “não demonstram motivo para preocupação”.

Se admitirmos a conclusão como correta —ou seja, supondo que de fato não haja relação imediata—, ainda assim é necessário fazer uma distinção: afinal, concluir que games não produzem assassinos não significa descartar que exista algo na vivência virtual que seja indissociável da violência. Nesta hipótese, os jogos não seriam causa, mas, sim, efeitos de um fenômeno maior.

Voltando quase um século na reflexão —muito antes, portanto, dos videogames—, o filósofo alemão Walter Benjamin já enxergava na dinâmica dos jogos de azar (carteado, dados) algo de revelador sobre a estrutura dos novos tempos. Em seu “Um Lírico no Auge do Capitalismo”, Benjamin nota como o poeta Charles Baudelaire, cuja obra é tida como chave para entender a modernidade, andava fascinado com a popularização da jogatina entre seus conterrâneos. O que revelaria este novo hábito sobre sua época?

Em seção do livro dedicada ao tema, o alemão encontrou nas palavras de outro filósofo, o francês Alain (1868-1951), uma síntese de seu pensamento: “O jogo traz consigo a característica de que uma partida não depende de qualquer outra precedente. Méritos adquiridos anteriormente não são levados em consideração (...), o jogo liquida rapidamente a importância do passado.” 

Sob esta ótica, jogar seria uma espécie de sintoma de uma sociedade que, a passos largos, inaugurava uma relação indigesta com o tempo. Arriscar-se no carteado, nos dados, daria ao jogador a ilusão acolhedora de que existe um lugar aonde recomeçar é sempre possível. Enquanto durar a partida, haverá uma esfera onde o tempo não é vivenciado como pressão.

Talvez pareça forçado, em um primeiro momento, juntar Halle ou Christchurch nesta equação. Mas, para além da reclusão e do histórico de fracassos afetivos - fatores que de certo podem moldar um perfil genocida -, Balliet e Tarrant têm em comum a idade. Beirando os trinta anos e, criados em países do Ocidente globalizado, não é difícil supor que compartilhem traços de uma mesma geração.

Centenas de diferenças certamente os separam, mas, nascidos na virada do milênio, são testemunhas inevitáveis de uma época que começou a deslocar a sociabilidade para os meios virtuais. Cobaias de um contexto que pouco se relaciona com as experiências de seus pais e avós, tiveram de se acostumar – às cegas, assim como todos de sua geração - a construir suas identidades na virtualidade das salas de bate-papo, fóruns, redes sociais. 

Mais do que uma mera diferença conjuntural em relação às gerações anteriores, a vivência de quem nasce digitalizado é aquela de ser convencido, diariamente, de que existe um descompasso incontornável entre a minha solidão e um mundo em overdose de alegria. O outro, a alteridade, será sempre o lugar da distância e do ressentimento. Diante da euforia postada, a experiência do vazio e da angústia deve ser sufocada em nome da boa aparência.

Na lógica de um presente que se traduz em lógica do desejo pela novidade incessante, não demora para que o envelhecimento se torne condenação e para que a memória se torne foto descartável, perdida em pasta de celular. Nada se apreende, tudo se simula. Assim como nos jogos analisados por Benjamin, a virtualização está intimamente ligada a uma tentativa desesperada de dominar a mais incontrolável das instâncias: o tempo.

A doentia mentalidade antissemita sempre atribuiu aos judeus as razões dos males específicos de seus contextos, ódio do qual a religião muçulmana também não cessa de ser depósito. Não surpreende, portanto, que os jovens atiradores acreditem ter novos motivos para exterminar sinagogas e mesquitas.

Pontos de encontros de religiões milenares, onde supostamente impera a lógica da coletividade e da eternidade, os templos serão, mais do que nunca, alvos óbvios de uma solidão gestada em anonimato virtual, mas sentida em carne e osso.

Quando fazer da própria vida um videogame torna-se escape patológico de um eterno recomeçar, a ilusão de refundar a sociedade passará por destruir tudo o que não envelhece, apesar dos séculos. Pois na perda do vínculo com o passado, deixar o tempo agir se reverte em aflição cega de indivíduos seduzidos por holofotes, mas brindados com o anonimato.

Como diriam os filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer a respeito dos antissemitas, os anônimos —e, não à toa, Balliet escolhe para si o codinome “Anon”— estão “transformando o mundo no inferno que sempre viram nele”.

Responsabilizar, recriminar e punir cidadãos pela barbárie é o mínimo que a boa civilidade exige. Tomá-los por loucos, no entanto, como se seus atos fossem apenas produtos de mentes diabólicas, é não apenas subestimar a possibilidade de novos ataques, mas fechar os olhos à probabilidade de que se tornem ação sistemática de uma sociedade doente, que não vê nas vitrines digitais uma das pás de sua própria cova.

No fórum onde Anon postou seu vídeo, um usuário atrasado pediu que se evitassem spoilers.


Felipe Arrojo Poroger, cineasta graduado em filosofia pela USP, é diretor do Festival de Finos Filmes. 

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