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Constitucionalização excessiva prende o país ao passado

Ter que adaptar a Carta a cada mudança do quadro econômico compromete a agilidade das respostas das políticas públicas

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[RESUMO] Em permanente expansão, a Constituição de 1988 deveria ser objeto de uma ‘PEC do enxugamento’, que suprimisse dispositivos sobre a forma de implementação de políticas públicas e os transformasse em leis complementares.

A Constituição de 1988 já nasceu extensa e minuciosa, com cerca de 1.800 dispositivos. Ao longo dos seus 31 anos, foram aprovadas 110 emendas. Atualmente tem mais de 2.700 dispositivos e já é uma das constituições mais longas do mundo. 

Vai crescer mais ainda, porque há várias propostas de emenda constitucional (PECs) em discussão no Legislativo. Nossa Constituição é como o Universo: está em constante expansão.

 

Há três razões para isso. Primeiro, ela é relativamente fácil de ser mudada. Uma mudança constitucional nos Estados Unidos, por exemplo, requer aprovação por 3/4 das assembleias estaduais. A nossa prescinde da aprovação dos estados. 

Segundo, a constitucionalidade de qualquer lei pode ser facilmente questionada junto ao Supremo Tribunal Federal. Como prever os julgamentos do Supremo é um desafio, os governos preferem utilizar PECs para resolver problemas que, a rigor, poderiam ser equacionados através de projetos de lei. 

O caso da Lei de Responsabilidade Fiscal é ilustrativo: para contornar os questionamentos jurídicos da lei, o governo inseriu vários de seus dispositivos em uma das emendas enviadas ao Congresso.

Terceiro, a Constituição foi além dos temas tipicamente institucionais, como a forma de organização do Estado e os direitos e garantias dos cidadãos, para incluir também políticas públicas, num grau de detalhamento excessivo. O resultado tem sido um processo contínuo de revisões do texto constitucional.

Um bom exemplo disso é o caso do PIS. No meu artigo anterior para a Folha, critiquei a timidez de uma PEC do governo que muda o percentual do valor arrecadado pelo PIS que tem que ser emprestado ao BNDES. A Constituição fixou esse percentual em 40%. Foi reduzido para 32% na emenda constitucional do Plano Real e para 28% em uma outra emenda aprovada em 2016. 

Agora o governo, no que poderá vir a ser a terceira revisão constitucional, quer zerar o percentual em situações de emergência fiscal e reduzi-lo para 14% em situações normais. Melhor seria zerar de vez. Críticas à parte, faz sentido ter que mudar a Constituição para poder deixar de emprestar dinheiro público a um banco que é uma subsidiária integral do próprio Tesouro Nacional?

Mudar a Constituição requer 3/5 dos votos na Câmara e no Senado. É um quórum alto demais para conseguir adaptar o Orçamento aos desafios de cada momento. Ter que mudar a Constituição a cada mudança nas circunstâncias da economia compromete a agilidade das respostas das políticas públicas. Em um mundo em vertiginosa transformação, a constitucionalização excessiva prende o país ao passado.

Constituições podem, por definição, dispor sobre quaisquer aspectos da vida social. Quando da Assembleia Nacional Constituinte, em 1988, os vários lobbies da sociedade, desconfiando uns dos outros, trataram de inserir no texto constitucional dispositivos que atendessem aos seus interesses. 

Em alguns casos a solução de conciliação foi dizer que lei complementar futura viria a detalhar o artigo da Constituição. Mas em muitos houve um processo de barganha: um grupo aceitou a demanda do outro, desde que o outro aceitasse a sua.

O resultado foi uma Constituição que engessou o Orçamento da União. Não se trata apenas de diretrizes ou princípios norteadores de políticas que poderiam perfeitamente constar do texto constitucional. A Constituição vai além disso ao estipular como as políticas públicas devem ser implementadas.

De Collor a Bolsonaro, todos os governos mudaram a Constituição de 1988. Algumas das emendas foram sobre temas propriamente constitucionais, mas a maior parte buscou ajustar regras e parâmetros às necessidades de politica pública da conjuntura. O problema foi que, ao invés de suprimir da Constituição os dispositivos ultrapassados, buscou-se substituí-los por outros considerados mais adequados ao momento. 

A reforma da Previdência, por exemplo, ajustou a idade mínima de aposentadoria para o aumento da expectativa de vida. Se os avanços da ciência e da medicina levarem a um outro salto na expectativa de vida, teremos que fazer uma nova emenda constitucional para ajustar a idade mínima.

Ao longo dos anos não faltaram vozes defendendo um outro caminho: o enxugamento da Constituição. O caminho é promissor, mas há enormes divergências na sociedade sobre quais os dispositivos da Constituição que travam o crescimento do país e o combate às nossas desigualdades. 

 
Minha proposta é sair da discussão do mérito para afirmar um critério. A PEC do “enxugamento” suprimiria do texto constitucional os dispositivos que regem a forma de implementação de políticas públicas e disporia que os dispositivos removidos passariam a vigorar de imediato como leis complementares. O quórum necessário para mudar uma lei complementar é mais baixo: maioria absoluta, em vez dos 3/5 necessários para mudar um dispositivo constitucional.

Nada mudaria de imediato com a PEC do “enxugamento”, posto que os dispositivos “desconstitucionalizados” continuariam em vigor. A vantagem é reduzir quórum necessário para mudanças. Princípios devem permanecer no texto constitucional. 

Três exemplos da diferença entre princípios de política pública e forma de implementação: uma coisa é estabelecer que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Outra coisa é determinar que no mínimo 15% da receita líquida da União sejam utilizados para seu financiamento. Uma coisa é estabelecer a necessidade de reduzir desequilíbrios regionais. Outra coisa é a Zona Franca de Manaus durar 85 anos. 

Uma coisa é fixar os princípios gerais da tributação, como a regra da anterioridade ou a exigência de que todo tributo seja criado em lei. Outra coisa é fazer constar da Constituição que templos de qualquer culto ou a renda de partidos políticos não paguem impostos.

Na minha proposta, deixariam a Constituição: (a) todas as vinculações de impostos a gastos; (b) todos os parâmetros de gastos com referências fixas (salário mínimo, idade de aposentadoria); (c) todas as regras fiscais (teto de gastos, regra de ouro); e (d) todas as isenções de tributação.

Há uma razão para incluir na proposta a retirada de todos os detalhamentos de políticas públicas. Se cada grupo de interesse da sociedade quiser manter no texto constitucional tudo o que lhes interessa ou considera fundamental, dificilmente conseguiremos reduzir o texto constitucional aos temas que são propriamente constitucionais. O resultado será o que tem sido: um lentíssimo processo de reformas e uma Constituição que não para de crescer.

Haverá quem critique a proposta dizendo que facilitará a vida dos governantes populistas ou equivocados. Vale a pena lembrar aqui que os grandes desastres de política econômica desde 1988, como o Plano Collor ou os desatinos da Nova Matriz Econômica de Dilma Rousseff, aconteceram sem qualquer mudança na Constituição.

A proposta da PEC da “desconstitucionalização” não altera o que está em vigor, mas flexibiliza potencialmente a gestão orçamentária no futuro. Amplia assim o campo do possível. Para qualquer um que acompanhe as dificuldades de aprovar uma emenda constitucional, isso está longe de ser pouco.

Leituras recomendadas:  “A Batalha dos Poderes”, de Oscar Vilhena, e “A Carta - Para Entender a Constituição Brasileira”, de Naércio Menezes Filho e André Portela Souza (organizadores). Agradeço comentários de Carlos Ari Sundfeld e Oscar Vilhena.

Persio Arida

Economista, foi presidente do BNDES e do Banco Central no governo de Fernando Henrique Cardoso

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