Leia dois poemas escritos por Elizabeth Bishop no Brasil

Escolhida pela Flip como homenageada de 2020, autora é traduzida no país pelo também poeta Paulo Henriques Britto

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São Paulo

Primeiro nome de língua estrangeira a ser escolhido pela organização da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), Elizabeth Bishop —americana nascida a 8 de fevereiro de 1911 em Worcester, Massachusetts— viveu no Brasil 20 de seus 68 anos.

Como nos conta Paulo Henriques Britto em "Bishop no Brasil", um de seus dois textos introdutórios a "Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop" —antologia que ele coligiu e traduziu—, a relação da poeta com o país começa de maneira fortuita.

Em dezembro de 1951, quando aportou em Santos, Bishop tinha a ideia de fazer no país apenas uma parada em uma viagem de circum-navegação da América. Da cidade portuária, foi a São Paulo e, depois, ao Rio de Janeiro.

Na então capital do Brasil, teve uma crise alérgica violentíssima após provar uns cajus comprados de um homem na rua. Foi cercada de cuidados pela arquiteta Maria Carlota Costallat de Macedo Soares (1910-67), sua anfitriã e, a partir da convalescência, também sua companheira amorosa por longos anos.  

No texto, Britto analisa a poesia que Elizabeth Bishop produziu ao longo do que ele chama de "relação intensa e tumultuada" com o país. São poemas como os dois a seguir, extraídos da coletânea por ele organizada. 

"Filhos de Posseiros" ("Squatter's Children, no original) faz referência à família de Manuelzinho, que vivia no sítio de Lota e, sem ser empregado da arquiteta, prestava-lhe serviços.

"A voz que se dirige a elas [as crianças] na última estrofe é irônica, mas não sarcástica; e uma voz que conhece —na própria carne— o que representa para uma criança não ter uma casa", escreve Britto, referindo-se ao fato de que Bishop cresceu sem pai nem mãe e em diferentes lares de parentes e amigos.

Segundo Britto, "Cadela Rosada", ou "Pink Dog", como se chama em inglês, começou a ser escrito nos anos 1960, mas só foi publicado pouco antes da morte da autora, em 1979, sendo o último poema em que trabalhou.

O tradutor comenta a recepção de seus primeiros leitores em língua inglesa, atribuindo a má acolhida do poema ao fato de que ele é "de tal modo calcado em referências geográficas, históricas e culturais brasileiras e cariocas" que parte de sua força "inevitavelmente se perde para um leitor estrangeiro".

Um dado que Britto esclarece em nota ao poema e que pode escapar a parte dos leitores, mesmo se brasileiros, é que a admoestação que as recomendações dadas à cadela aludem a um episódio ocorrido em agosto de 1962.

Uma notícia publicada pelo jornalista Amado Ribeiro no jornal Última Hora afirmava que cadáveres de mendigos, com sinais de tortura, estavam sendo lançados no rio da Guarda, em Itaguaí -- município da região metropolitana, então na fronteira entre os estados do Rio de Janeiro e Guanabara.

"A denúncia, que teve enorme repercussão, tinha claras implicações políticas", escreve Britto na nota —o  governador da Guanabara, Carlos Lacerda, tinha em Samuel Wainer, diretor de Última Hora, um inimigo político ferrenho.

"Esse texto em que Bishop exprime de modo tão cáustico seus sentimentos de repugnância pelo Rio de Janeiro é também, de modo paradoxal, o mais carioca de seus escritos", escreve Britto em "Bishop no Brasil". É ainda, segundo o poeta e tradutor, "o oposto do que se espera" de um poema da autora, pelo que tem "de violento e de confessional". 

Filhos de Posseiros

Na ilharga inerte do morro, à tarde, 
dois pontos, menina e menino, brincando,
a sós, junto a um outro ponto, uma casa.
O sol pisca o olho de vez em quando,
e os dois atravessam enormes ondas
que se sucedem, de luz e sombra.
Um cisco amarelo os acompanha,
um cachorrinho. Atrás da montanha

nuvens de chuva crescem mais e mais.
As crianças cavam buracos. O chão 
é duro; elas tentam utilizar
uma ferramenta do pai, um alvião
imenso, de cabo quebrado,
que mal conseguem erguer de tão pesado.
A ferramenta cai. As gargalhadas
iluminam as nuvens arroxeadas,

fracos lampejos interrogativos,
diretos como o latir do cachorro.
Mas para as crianças, naquele abrigo
solúvel, indesculpável, no morro,
a resposta da chuva é tão vazia
quanto uma vaga ecolalia,
e a voz da mãe, antipática e insistente,
manda que entrem imediatamente.

Crianças, o temporal foi mais ligeiro
que os seus pés enlameados a correr;
logradas, molhadas, vocês estão no meio
de muitas mansões, e podem escolher
dentre elas uma casa para ser sua,
com direito inclusive a escritura.
Papéis molhados lhes garantem a posse
desses palácios de chuva grossa.


Cadela Rosada
                       [Rio de Janeiro]

Sol forte, céu azul. O Rio sua.
Praia apinhada de barracas. Nua,
passo apressado, você cruza a rua.

Nunca vi um cão tão nu, tão sem nada,
sem pelo, pele tão avermelhada...
Quem a vê até troca de calçada.

Têm medo da raiva. Mas isso não
é hidrofobia — é sarna. O olhar é são
e esperto. E os seus filhotes, onde estão?

(Tetas cheias de leite.) Em que favela 
você os escondeu, em que ruela,
pra viver sua vida de cadela?

Você não sabia? Deu no jornal:
pra resolver o problema social,
estão jogando os mendigos num canal.

E não são só pedintes os lançados
no rio da Guarda: idiotas, aleijados,
vagabundos, alcoólatras, drogados.

Se fazem isso com gente, os estúpidos,
com pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,
o que não fariam com um quadrúpede?

A piada mais contada hoje em dia
é que os mendigos, em vez de comida,
andam comprando boias salva-vidas.

Você, no estado em que está, com esses peitos,
jogada no rio, afundava feito
parafuso. Falando sério: o jeito

mesmo é vestir alguma fantasia.
Não dá pra você ficar por aí à
toa com essa cara. Você devia

pôr uma máscara qualquer. Que tal?
Até a Quarta-Feira, é carnaval!
Dance um samba! Abaixo o baixo-astral!

Dizem que o carnaval está acabando,
culpa do rádio, dos americanos...
Dizem a mesma bobagem todo ano.

O carnaval está cada vez melhor!
Agora, um cão pelado é mesmo um horror...
Vamos, se fantasie! A-lá-lá-ô...!
 

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