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Mesmo com dificuldades, casas de ópera apostam em títulos ousados

Apertos não impediram instituições de priorizarem espetáculos inéditos e contemporâneos

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Segundo uma maledicência repetida pelos detratores do gênero lírico, existem, para os amantes desse tipo de espetáculo, três tipos de ópera: a antiga, representada por Rossini; a romântica, por Verdi; e a moderna, por Puccini.

Levando essa argumentação adiante, seria de se supor que, em tempos de crise, a trindade italiana que supostamente representa o gosto dos frequentadores de ópera resumiria o repertório dos teatros. Talvez uma “Carmen”, de Bizet, talvez um ou outro Mozart (“Don Giovanni” e, eventualmente, “As Bodas de Fígaro”); Wagner ou outros títulos alemães seriam uma extravagância, e qualquer ópera posterior a 1926 (ano da estreia póstuma da derradeira criação de Puccini, “Turandot”), absolutamente impensável.

Pois bem: premidas por dificuldades orçamentárias e administrativas que vêm impondo restrições ao número de montagens, as principais casas de ópera brasileiras vêm vigorosamente desmentindo esses estereótipos e apostando em títulos contemporâneos.

Em outubro, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro promoveu a estreia latino-americana de “Orphée”, escrita em 1993 pelo minimalista norte-americano Philip Glass, 82, e inspirada pelo filme homônimo de 1950 do francês Jean Cocteau. Releitura do célebre mito de Orfeu, o espetáculo teve regência de Priscila Bomfim, com encenação a cargo dos badalados Felipe Hirsch (direção geral) e Daniela Thomas (direção de arte).

Um mês antes, o Municipal de São Paulo levou a seu palco “Prism”, da também americana Ellen Reid, 36, sob regência de Roberto Minczuk. Composta no ano passado e vencedora do Prêmio Pulitzer de música, a ópera veio ao Brasil com sua concepção original, direção cênica de James Darrah e produção da Beth Morrison Projects, e aborda o tema do abuso sexual contra mulheres.

Do ponto de vista estético, contudo, a aposta mais ousada talvez tenha sido a do Theatro São Pedro, que, também em setembro, realizou a estreia mundial de “Ritos de Perpassagem”, do paulistano Flo Menezes, 57, sob direção musical de Ricardo Bologna e cênica de Marcelo Gama —com participação dos cantores do grupo germânico Neue Vocalsolisten. Com forte atuação na música eletroacústica, Menezes é um compositor cuja linguagem representa clara ruptura com os paradigmas tradicionais da ópera.

E, como ousadia pouca é bobagem, a casa paulistana teve ainda uma segunda estreia de ópera contemporânea na temporada. Em 14 e 15 de dezembro, encenou “O Peru de Natal”, com música de Leonardo Martinelli, 41, e libreto de Jorge Coli, inspirado em conto de Mário de Andrade. 

Tendo como tema a fraternidade, trata-se da última ópera de uma trilogia de Coli estreada nesse teatro e calcada no lema da Revolução Francesa. O tríptico começou com “O Menino e a Liberdade” (2013), a partir de crônica de Paulo Bomfim, com música de Ronaldo Miranda, 71, e prosseguiu com “O Espelho” (2017), adaptação de Machado de Assis, focando a igualdade e musicada por Jorge Antunes, 77.

Antunes, por sinal, pode até falar em inserção internacional da ópera contemporânea brasileira. Afinal, sua “Olga”, baseado na vida da militante comunista Olga Benário Prestes e lançada no Municipal de São Paulo em 2006, foi encenada em outubro último em Gdansk, na Polônia, no Teatro de Ópera Báltico, sob a batuta de José Maria Florêncio (que regeu a ópera no Municipal, há 13 anos). 

Criada especificamente como filme, “Liquid Voices”, de Jocy de Oliveira, 83, foi laureada no primeiro semestre em festivais de cinema em Londres e Nice. E, em fevereiro, João Guilherme Ripper, 60 —cuja “Piedade”, que conta a morte de Euclides da Cunha, foi a primeira ópera brasileira encenada no Teatro Colón, de Buenos Aires, em 2017 e 2018— teve sua “Domitila”, que narra os amores da marquesa de Santos e d. Pedro 1º, cantada em Portugal.

O país, por sinal, deve receber outra criação de Ripper. Em novembro de 2020, o finlandês Hannu Lintu rege, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, a miniópera “Cartas Portuguesas”, baseada na correspondência amorosa de Mariana Alcoforado. Como se trata de uma encomenda em conjunto entre os lusos e a Fundação Osesp, a obra será ouvida antes, no final de agosto, na Sala São Paulo, com solo de Camila Titinger, direção cênica de Jorge Takla e regência do português Pedro Neves.

O ano de 2020 terá, ainda, a primeira encomenda de ópera da história do Theatro Municipal de São Paulo. Está marcada para junho a estreia de “Navalha na Carne”, de Leonardo Martinelli, adaptação da peça homônima de Plínio Marcos. O elenco terá algumas das melhores vozes brasileiras da atualidade: Fernando Portari (tenor), Luisa Francesconi (mezzo-soprano) e Michel de Souza (barítono). 

A Globo cancelou a minissérie que exibiria no ano que vem sobre o principal compositor brasileiro de óperas de todos os tempos, Carlos Gomes (1836-1896), mas, pelo visto, candidatos a sua sucessão não faltam. 


Irineu Franco Perpetuo é jornalista especializado em música clássica e tradutor.

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