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Perspectivas

Neste século, teatro brasileiro cresceu e criou centenas de grupos

Hoje artistas sentem o bafo do obscurantismo de Roberto Alvim, que escarra na bacia que o alimentou

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Luiz Fernando Ramos

O teatro brasileiro perfez um ciclo virtuoso nas duas primeiras décadas do século 21. Os 20 anos de governos social-democratas apoiaram a cultura e as artes, e a cena teatral se fortaleceu, tanto na produção artística como teórica, pelo menos nas universidades públicas. 

Programas de apoio à criação e pesquisa de longo prazo permitiram que centenas de grupos novos, operando em direções várias, se estabelecessem e passassem a viver de teatro. Experiências proliferaram por todo país, e um novo público passou a frequentá-las, ao mesmo tempo em que se consolidaram mostras com espetáculos estrangeiros, como nunca antes vindos da América Latina.

O teatro comercial também cresceu, principalmente no gênero musical, inicialmente com os importados da Broadway e, depois, impulsionado por genuína tecnologia nacional. De fato, o teatro musical —cuja popularidade no Brasil remonta ao século 19, com Arthur de Azevedo, e refletiu-se, na primeira metade do século 20, nas grande revistas de Walter Pinto— tornou-se o mais recorrente nas últimas temporadas. 

Ainda neste campo, a maior conquista no período, mesmo não reconhecida, é a do Teatro Oficina, que confirmou sua eternidade com uma gama extraordinária de espetáculos, como o ciclo de cinco encenações de “Os Sertões” (2002-2007).

Isto porque o Oficina Uzyna Uzona, à parte a singularidade planetária de suas montagens, inventou um verdadeiro teatro musical popular brasileiro, de pista, em diálogo com o nosso Carnaval e incorporando a densidade poética de uma prática teatral de 60 anos. 

Encontrar um modo brasileiro de produzir musicais foi uma proeza semelhante à da bossa nova na história da música. 

Quanto aos grupos mais influentes que emergiram nesse século 21, vale mencionar alguns indiscutíveis. Daqueles que nascem nos anos 1990 e se mantêm operantes, impossível não citar, de São Paulo, o Vertigem, consagrado com poucos mas impactantes espetáculos, como “BR3”, no rio Tietê, e a Cia. do Latão, que liderou a renovação dos estudos e práticas brechtianas no país. Do Rio, a Armazém, com projetos sempre ambiciosos, e a Vértice, de Christiane Jatahy, a encenadora mais internacionalizada de sua geração. 

Grupos de fora do eixo Rio-São Paulo, mais antigos, como o gaúcho Ói Nóis Aqui Traveiz e o mineiro Galpão, ou mais recentes, como o potiguar Clowns de Shakespeare, realizaram espetáculos marcantes. 
Novos encenadores, atuando em seus grupos ou isoladamente, como Cibele Forjaz, José Fernando Azevedo e Eric Lenate produziram trabalhos importantes.

Na última década, a maior experimentação foi a da paranaense Cia. Brasileira, do ótimo diretor e bom dramaturgo Márcio Abreu. Outro nome memorável é o de Leonardo Moreira e sua Cia. Hiato, que encenou diversos espetáculos com repercussão internacional, também com o domínio da escrita dramatúrgica.

Entre as atrizes, menções especiais a Georgette Fadel, atuando transversalmente como performer e encenadora em diálogo com companhias como a São Jorge, a Bartolomeu, a Livre e a Mundana; a Grace Passô, também atriz e diretora, mas sobretudo dramaturga singular; e a Janaina Leite, além de performer-encenadora, pesquisadora indômita. 

No campo estrito da escrita dramática talvez tenha ocorrido a maior transformação. Se no início do milênio ainda era parca, mas já com jovens autores consagrados, como Newton Moreno e Mário Bortolotto, hoje há muitos novos dramaturgos. Nomes como Alexandre Dal Farra, Dione Carlos, Gustavo Colombini, Vinicius Calderoni e Pedro Kosovski apareceram e foram premiados. 

Nas artes performativas, impossível não abarcar a companhia de dança de Lia Rodrigues e seu histórico e fundamental trabalho na Maré, no Rio de Janeiro, assim como a maturação da obra de Eleonora Fabião em performances antológicas, sintetizando artes visuais e cênicas magistralmente, ou o improviso de Roberta Estrela D’Alva incorporando hip-hop, rap e slam em procedimentos cênico-performativos. 

O enfrentamento do “Grande Sertão: Veredas” por Bia Lessa, o resgate da literatura latino-americana por Felipe Hirsch e o vigor da carioca Cia. dos Atores, de tantos espetáculos inesquecíveis, foram ainda fatos notáveis.

Esse breve balanço retrospectivo ocorre em um momento sombrio, em que os artistas brasileiros sentem o bafo do obscurantismo fanático. 

As hostes virulentas, encantadas pelo Rasputin da Virgínia, veem o cinema, a cultura e a ciência como demônios a combater. O algoz de plantão é Roberto Alvim, triste fado para alguém que no período examinado destacou-se como dramaturgo e encenador. Hoje ele escarra na bacia que o alimentou por anos, desonrando seu passado. 

O importante nesse momento é, ignorando os uivos da alcateia ignara, continuar trabalhando e fortalecer os grupos e as iniciativas em todos as correntes da cena brasileira. Se o horizonte é de trevas, cabe resistir, porque ninguém poderá frear as forças criativas do país. 

Luiz Fernando Ramos

Professor de história e teoria do teatro na Universidade de São Paulo

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto afirmava erroneamente que a Cia. dos Atores havia encerrado suas atividades. O texto foi corrigido. 

 

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