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Antonio Candido fez literatura ser como o pão, diz Vilma Arêas

Crítico fez obras literárias deixarem de pairar no ar e descerem até a mesa, explica escritora

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VILMA ARÊAS

Em meio às várias escolas de crítica literária, com enfoques que competem entre si, envolvendo escolhas filosóficas, históricas e retóricas, o ensaio que mais me abalou à primeira leitura foi o de Antonio Candido, “O Direito à Literatura”. Trata-se da segunda parte de “Vários Escritos”.

De repente a literatura não pairava no ar, como nuvem, não era uma lição ou mero ornato nos discursos intelectuais. A literatura descia até a mesa, era agora como o pão, que tem de ser dividido. Era uma coisa concreta. Não entender essa verdade nos fazia vítimas de “uma curiosa obnubilação”:

“[Afirmamos] que o próximo tem direito, sem dúvida, a certos bens fundamentais, como casa, comida, instrução, saúde, coisas que ninguém bem formado admite hoje em dia que sejam privilégio de minorias, como são no Brasil. Mas será que pensam que o seu semelhante pobre teria direito a ler Dostoiévski ou ouvir os quartetos de Beethoven?”.

Tomei um choque tremendo. Eu sempre me preocupara com a questão social, sempre atenta aos absurdos da injustiça, até hoje mais do que nunca arrasando o país. Mas nunca havia pensado na questão assim colocada. Agora ela brilhava transparente, trazida pela voz clara de Antonio Candido.

De saída ele explicava que o assunto que lhe fora confiado, direitos humanos e literatura, era “aparentemente meio desligado dos problemas reais”. Resolveu então fazer reflexões prévias a respeito dos próprios direitos humanos, que em nosso tempo criam uma contradição brutal.

Comparado com o passado, alcançamos o máximo quanto à técnica, progresso industrial e domínio sobre a natureza. Tais condições poderiam resolver muitíssimos problemas. 

“No entanto, a irracionalidade do comportamento é também máxima [...] em certos países, como o Brasil, quanto mais cresce a riqueza, mas aumenta a péssima distribuição dos bens [...] os mesmos meios que permitem o progresso podem provocar a degradação da maioria.”

O ensaísta democraticamente chama de literatura todas as criações ficcionais ou dramáticas em todos os níveis, incluindo o folclore, lendas, novelas, até atingir as formas mais complexas. Adaptando um conceito de Otto Ranke sobre o mito, ele escreve:

“Podemos dizer que a literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura.”

Acho que podemos estender o conceito às demais artes, como fez Nise da Silveira.

Mas não tenho espaço para continuar a exposição do ensaio. Espero entretanto, caro leitor, que sejam lidas as indiscutíveis razões que Antonio Candido desenvolve, que coloco ao lado das palavras de Darcy Ribeiro: o analfabetismo e a pouca cultura no Brasil não são um problema, mas um projeto. 

A prova disso é que os grandes pedagogos entre nós ou são presos, como Paulo Freire, ou expulsos, como Darcy Ribeiro, ou mortos, como Anísio Teixeira. Todos vivamente celebrados no exterior.

O outro abalo provocado pela literatura, e que levei anos para resolver —dos 9 aos 18— deveu-se a um conto de Machado de Assis, “Missa do Galo”. 

Viera voando numa página de jornal. Numa casa sem livros eu lia até bula de remédio. Li o conto, cheguei ao final e... não entendi. 

vilma arêas lê jornal no sofá
A escritora Vilma Arêas em sua casa, em São Paulo - Gabriel Cabral/Folhapress

Como assim? Não parecia difícil e eu já estava grandinha. Li de novo, bem devagar, prestando atenção àquela conversa boba entre os personagens, anotando todos os detalhes, até as veias azuis brilhando nos braços claros da mulher. De repente os rostos estão juntinhos, cochichando. Aí chamam o rapaz e ele vai à Missa do Galo. Fim.

Frustradíssima, proclamei até à caramboleira do quintal: Machado de Assis não presta.

O tempo passou, eu não esquecia o conto, até que aos 18 anos entendi tudo. Já estava na universidade.
Acho que fui estudar literatura empurrada pela “Missa do Galo”. 


Vilma Arêas, escritora e professora emérita de teoria literária da Unicamp, ganhou o Jabuti em 2019 por "Um Beijo por Mês" (Luna Parque).

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