Poema se pergunta o que fazia Deus antes da criação do mundo

Leia esse e mais dois textos do poeta João Mostazo, que ganha antologia inédita

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

João Mostazo

[SOBRE O TEXTO] Os três textos nesta página fazem parte da primeira antologia poética do autor, "Poemas para Morder a Parede", a sair pela 7Letras em fevereiro.

Colagem com pernas segurando uma pedra, elas estão em cima de um vulcão em atividade
Ilustração - Zé Vicente

​​I.
Os trabalhadores do fosso cavam a terra, abrem o nada na terra.
Os ossos dos trabalhadores do fosso, pontiagudos, rasgam
a pele dos trabalhadores do fosso.
Os músculos dos trabalhadores do fosso acumulam
a massa que tiram da terra, e crescem;
os trabalhadores do fosso estocam na carne
o vazio que tiram da terra.
Os trabalhadores do fosso não comem, não param, e se pensam
o que pensam é só deles.
Os olhos dos trabalhadores do fosso se iluminam:
é noite e a escuridão constrange.
Os olhos dos trabalhadores do fosso à noite são lanternas brancas.
A terra afunda em si mesma.
Lá embaixo, no fundo, perto do inferno,
os trabalhadores do fosso trocam sua força
pelo nada que abrem na terra,
e pagam com esse trocado a entrada
indesejada na próxima terra.
Amanhã um monumento vai ser erguido aqui — pedras brancas, bronze, multidão,
em homenagem aos trabalhadores do fosso
que fizeram esta obra impossível.

II.
Os mortos caminham da esquerda para a direita;
os mortos, a caravana dos mortos,
as carroças cheias de doentes dos mortos e as caveiras deles, empoeiradas,
caminham, se arrastam, vencem a terra,
da esquerda para a direita.
Os soldados carregam os feridos, correm, tropeçam, levantam,
carregam os feridos da esquerda para a direita;
os helicópteros pousam com os novos combatentes e eles vêm da esquerda para a direita.
Os mortos que eu não fui, que eu não sou, que eu não posso ser, passam da esquerda para
a direita,
e a humanidade passa a galope na avenida
seguindo os seus tambores e arrastando os seus corpos vivos na avenida.
A humanidade passa no planeta e na avenida.
Só sei dos mortos que não voltam, que tocaram a matéria viva
que eu não toquei, e acenderam tochas, e passaram da esquerda
para a direita.
Grandes coisas.
A humanidade passa, dura, resta.
Ferrugem no aço da civilização.

ANTES DE MAIS NADA
— O que fazia Deus antes da Criação?
— Deus escolhia os cassetetes.
— E o que fazia Deus antes da Criação?
— Deus preparava o canhão, montava os cavalos,
 manobrava os tanques, afiava os canivetes.
— Mas o que fazia Deus, antes da Criação?
— Deus polia o cano das pistolas
e checava a munição das HK.
— E antes da Criação, o que fazia Deus?
— Deus beijava o soco inglês,
 depois amarrava no poste
 os moleques que perguntam demais.


João Mostazo, poeta e dramaturgo, escreveu e produziu "Roda Morta - Uma Farsa Psicótica" (2018), entre outros espetáculos teatrais.

Ilustração de Zé Vicente, artista plástico.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.