Centenário, 'Gabinete do Dr. Caligari' tornou-se ícone da cultura pop

Marco do expressionismo alemão, filme de estética inovadora refletiu mal-estar alemão pós-1ª Guerra

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Donny Correia

O dia 26 de fevereiro de 1920 é, sem dúvida, de extrema importância para a história do cinema

Naquele melancólico inverno de recessão advinda da Primeira Guerra, que terminara havia menos de dois anos deixando expostas as artérias de uma Alemanha humilhada perante o mundo, entrava em cartaz um novo filme, escrito por dois jovens ex-combatentes e encenado de maneira absolutamente nova e inusitada, com cenários que pareciam pintados nas paredes de um estúdio, geometria irregular, portas e janelas alongadas e pontiagudas, figurino extravagante e maquiagem pesadíssima. Era “O Gabinete do Dr. Caligari, obra referencial na linha evolutiva da sétima arte.

O filme, dirigido por Robert Wiene, apresenta seu espectador a uma pequena cidade no interior da Alemanha e a seu povo pacato e ordeiro. Nessa cidade vivem Francis e Alan, amigos inseparáveis, que um dia são surpreendidos com a chegada de uma feira de variedades com atrações bizarras. Uma delas, apresentada pelo hipnólogo dr. Caligari, é o sonâmbulo Cesare, que dorme há mais de 20 anos e somente pode despertar por ordem de seu senhor.

Cena de ‘O Gabinete do Dr. Caligari’, filme cuja estética inovadora, representada na imagem acima pelo cenário de geometria irregular, é um marco do expressionismo no cinema
Cena de ‘O Gabinete do Dr. Caligari’, filme cuja estética inovadora, representada na imagem acima pelo cenário de geometria irregular, é um marco do expressionismo no cinema - Deutsches Filminstitut

Curioso por seu futuro, Alan atreve-se a perguntar a Cesare até quando viverá. O sonâmbulo responde de pronto que somente até a manhã seguinte. Confirmada a profecia, Francis constata que Alan fora assassinado e que o dr. Caligari seria a mente por trás não só daquele crime, mas de outros dois, ocorridos desde a chegada da feira. 

De fato, saberemos adiante que Caligari usa seu sonâmbulo para cometer as atrocidades que desestruturam a harmonia do lugarejo, mas também descobriremos que o velho que se diz hipnólogo é, na verdade, um psiquiatra louco e frustrado, obcecado pela lenda do verdadeiro Caligari, que no século 12 perambulava pela Europa carregando seu sonâmbulo, de nome Cesare, a tiracolo. Desmascarado, o velho é preso em camisa de força e trancafiado numa cela para loucos.

Os criadores deste pesadelo visual, Carl Mayer, austríaco, e Hans Janowitz, tcheco, ambos com vasta experiência nas trincheiras da Primeira Guerra, se conheceram em Berlim, por volta de 1919. A empatia mútua fez com que procurassem juntos uma forma de contar suas experiências para o maior número de pessoas. 

Àquela altura, o cinema parecia a resposta mais adequada, pois sua popularidade crescia apesar de todas as agruras enfrentadas pelo povo alemão. Por outro lado, as mazelas do pós-guerra pareciam alimentar o que havia de mais revolucionário e iconoclasta na produção artística do momento.

A escritora alemã Lotte Eisner, cujo livro “A Tela Demoníaca” é dedicado ao estudo profundo do cinema alemão em seus primórdios, comenta que seu povo sempre teve grande propensão estrutural a tudo quanto fosse obscuro e indeterminado, místico e mágico. Uma forte herança do movimento Sturm und Drang, no século 18. Para Eisner, são essas as bases no inconsciente do expressionismo, surgido a partir dos grupos artísticos Die Brücke e Der Blaue Reiter, que desde 1905 rechaçavam a pintura figurativa em prol de uma arte afirmativa e visceral. 

O cinema de seu país já havia produzido algumas amostras desta mentalidade inquieta, como “O Estudante de Praga” (1913), lenda de um jovem que vende a própria imagem em troca de benesses que se provam autodestrutivas, ou “O Golem” (1915), de Paul Wegener e Henrik Galeen, a respeito da criatura que deve proteger os judeus de seus opressores, mas se torna o verdadeiro algoz, descontrolado como uma força louca da natureza. Ainda assim, nada tão chocante quanto Caligari e o que ele significaria dali em diante.

Cena de "O Gabinete do Dr. Caligari", de Robert Wiene
Cena de "O Gabinete do Dr. Caligari", de Robert Wiene - Deutsches Filminstitut/ Divulgação

As metáforas de Mayer e Janowitz eram claras. Dr. Caligari representava um estereótipo das forças quase sobrenaturais que decidiam o destino da nação e lançavam homens, mulheres e crianças no abismo do caos. Cesare, o sonâmbulo, por sua vez concentrava o humor alemão daquele momento, letárgico, inativo e à mercê de uma vontade exterior a si. Com o manuscrito terminado, os dois autores acreditavam que haviam construído um estudo psicossocial detalhado sobre seu tempo e pretendiam que o filme fosse o mais experimental possível. 

Janowitz sugerira seu conterrâneo, o pintor Alfred Kubin, para desenvolver o conceito visual dos cenários, trajes e maquiagem. O surrealismo de Kubin daria forma aos fantasmas que Mayer carregava desde os tempos em que ficara internado num hospital de guerra, onde sofreu torturas mentais insuportáveis. Mayer pretendia que o filme denunciasse os absurdos cometidos em nome da ciência.

No entanto, quando o roteiro foi aceito pelos produtores da Decla, promissor estúdio alemão, os planos originais foram alterados à revelia, para desgosto de seus criadores. Fritz Lang era a primeira opção para dirigir “Caligari”, mas teve de recusar por conflitos de agenda. Mesmo assim, deixou uma contribuição crucial, mantida até o fim. 

A história original passava a ser embalada por uma narrativa que emolduraria todos os esforços de Francis para desmascarar o doutor. Após a revelação final acerca do charlatanismo do velho psiquiatra, uma reviravolta mostra ao espectador que o real lunático ali é o próprio Francis, que se encontrava, desde o início, num sanatório. Tudo não passara de uma fantasia. Ao ver o dr. Caligari no pátio da instituição, Francis tem um surto violento e precisa ser contido e encerrado numa cela, somente para que o médico nos faça saber que, agora compreendendo as obsessões de seu paciente, é capaz de controlar sua ira e curá-lo.

Siegfried Kracauer, jornalista e autor do tratado definitivo sobre o cinema alemão dos anos 1920 e 1930, “De Caligari a Hitler” (1947), vê no subtexto do filme uma acentuada propensão inconsciente da Alemanha ao controle totalitarista. Quando a história se encerra, com o diagnóstico de um médico que pode curar a loucura dos pacientes, o que a subversão do roteiro original nos diz é que sim, é preciso isolar o delírio dos débeis pela força e trancafiar a balbúrdia de uma vez para sempre.

Cena de 'O Gabinete do Dr. Caligari'
Cena de 'O Gabinete do Dr. Caligari' - Divulgação

Quanto à estética do filme, ao menos os produtores procuraram manter a ideia original de Mayer e Janowitz. No entanto, ignoraram Kubin e contrataram três artistas ligados às correntes expressionistas para criarem cenários tão aterradores e desconcertantes quanto um poema de Gottfried Benn ou uma gravura de Otto Dix. 

O estranhamento provocado pelo filme despertou inúmeras teorias e deixou críticos e artistas inquietos. Muitos reconheciam as alusões aos descaminhos de uma modernidade errática, ao declínio moral da Alemanha e à influência da psicanálise freudiana. No entanto, o mais marcante foi a ousadia na construção de uma obra cinematográfica realmente inédita.

Nos Estados Unidos, o filme influenciou diretores marginais em obras igualmente exóticas, como “The Telltale Heart” e “The love of Zero”, ambos de 1928. Na França, uma geração de cineastas incorporou as lições do filme de Wiene nos primórdios do cinema de autor. No Japão, Teinosuke Kinugasa filmou “Uma Página de Loucura” (1926), talvez uma rara obra de vanguarda no cinema daquele país na década de 1920. Na própria Alemanha, “Caligari” criou uma tendência que se espraiaria por filmes de F.W. Murnau, Paul Leni e do próprio Fritz Lang.

A influência de “Caligari”, contudo, não se restringe somente ao seu tempo, já que a evolução do cinema mostra que sua estética foi absorvida e ressignificada infinitas vezes. A luz de “Cidadão Kane” (1941) e dos filmes noir devem a “Caligari” sua força visual; os primeiros filmes surrealistas de Buñuel rendem agradecimentos à narrativa onírica que o filme inaugurou; Alfred Hitchcock nunca escondeu o papel fundamental do cinema expressionista em sua formação; Tim Burton recriou Cesare em seu “Edward Mãos de Tesoura” (1990) e o dr. Caligari em seu Pinguim, de “Batman, o Retorno” (1992). 

Até mesmo a banda Red Hot Chilli Peppers homenageou o filme no clip oficial da música “Otherside” (2000). O exemplo mais recente da influência daquele primeiro expressionismo cinematográfico está em “O Farol” (2019), com uma narrativa vertiginosa, personagens perturbados e cenários hostis, que reforçam suas loucuras.

Cem anos depois, um filme modesto e pensado para ser um manifesto antibélico provou-se o marco zero de um estilo autoral e profundo de se fazer cinema. Isso bem antes das teorias clássicas de montagem do russo Sergei Eisenstein, inclusive. 

A cultura pop descobriu “Caligari” com a TV e algo de muito atraente a fez absorver a estética enigmática, que comunica mais por aquilo que está impresso no contingente visual que propriamente nas ações de seus personagens. 

Basta considerarmos a quantidade de action figures, HQs, camisetas, músicas e tentativas —frustradas, em verdade— de refilmagens desse clássico que certamente ainda permanecerá por várias décadas no consciente global.


Donny Correia, doutor em estética e história da arte pela USP, é professor de linguagem cinematográfica e autor de,  entre outros, “Cinefilia Crônica, Comentários sobre o Filme de Invenção” (2018)

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