Descrição de chapéu Oscar 2020

Conflito de 'Parasita' se revela em casas de ricos e pobres, diz Wisnik

Arquitetura também é protagonista em vencedor do Oscar de melhor filme

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[RESUMO] Arquiteto comenta a representação do conflito em "Parasita", eleito o melhor filme do Oscar, a partir da oposição entre os lugares habitados pelas famílias pobre e rica.

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2019, “Parasita”, dirigido pelo sul-coreano Bong Joon-ho, se enquadra em uma tendência de filmes recentes que misturam gêneros, realizando poderosas críticas sociais ao tematizar a violência. 

Refiro-me, por exemplo, a “Corra!”, de Jordan Peele, que politiza o terror ao tratar do racismo, a “Coringa”, de Todd Phillips, que combina a narrativa de super-heróis à convulsão social, e a “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que figura uma distopia neoimperialista onde os mundos real e virtual se misturam. 

Em “Parasita”, o conflito de classes se espacializa na oposição entre a família rica, que reside em uma espaçosa e ensolarada casa na parte alta de Seul, e a família pobre, que habita o úmido e malcheiroso porão semienterrado de um edifício nos baixios alagáveis da mesma cidade. Daí que as escadas sejam um elemento tão importante no filme, como metáforas da relação (e da distância) entre ascensão e soterramento.

capa
Capa da Ilustríssima sobre 'Parasita' - daniloz

Ambas cenográficas, as duas moradias foram cuidadosamente projetadas pelo cenógrafo Lee Ha-jun. Elas chamam a atenção pela verossimilhança e pela riqueza de elementos que trazem para a construção da narrativa. Na casa-porão, situada numa vila encortiçada, a janela da sala se abre para a rua, meio nível acima da casa, onde um vizinho bêbado vem frequentemente urinar à vista da família Kim. 

Nesse ambiente promíscuo e claustrofóbico, o lugar simbolicamente mais importante é o vaso sanitário, que fica elevado como um trono, quase rente ao teto. É apenas ali, no lugar mais alto da casa, que os moradores conseguem conectar o telefone celular a uma rede de wi-fi disponível, que eles capturam.

Já a casa rica é apresentada orgulhosamente como obra do celebrado arquiteto Namgoong Hyeonja, que a construiu para si próprio antes de se mudar para Paris. A referência a um arquiteto fictício dá pedigree àquela atmosfera sofisticada, vivida “com arte”, segundo a governanta, em espaços retilíneos com amplas aberturas de vidro, pisos e paredes de madeira, pedra e concreto polido, eletrodomésticos de aço inox, e uma parede-vitrine com louças e bules que faria inveja a qualquer museu de artes decorativas. 

Sua assepsia exala limpeza, transportando-nos a um ambiente esterilizado. Despojada e elegantemente horizontal, a arquitetura da casa bebe na fonte das Case Study Houses californianas de meados do século passado, abrindo-se para um lindo jardim oriental. 

Num mundo dominado pelo smartphone, a sala da família rica não tem televisão. Como num cinema, o confortável sofá se volta para a contemplação do jardim e da luz, através de uma enorme abertura de vidro em widescreen. A janela é, ela mesma, a tela. 

E, enquanto na casa pobre ela se abre para uma rua suja e turbulenta, aqui ela enquadra uma massa verde de arbustos, que metaforiza um mundo exterior idealizado, purificado e protegido.

Se no filme “Meu Tio” (1958) Jacques Tati satiriza o funcionalismo da arquitetura moderna, mostrando pessoas que se deixam escravizar por chafarizes e portões comandados por controle remoto, aqui a sra. Park, em uma cena discretamente erótica, corrige as carícias do marido pedindo a ele que toque seu seio com movimentos no sentido horário.

Já não se trata mais de uma submissão das pessoas ao imperativo artificial e desumanizador da tecnologia, mas de uma situação em que a artificialidade medeia as relações, posto que todos já se tornaram máquinas sem perceber. Significativamente, o sr. Park trabalha em uma empresa de tecnologia chamada “Another Brick” —uma possível referência irônica à famosa canção “The Wall”, do Pink Floyd, que também foca o tema moderno da massificação e do controle. 

O que nos faz pensar nos muros (visíveis e invisíveis) que separam as pessoas num mundo de exclusão social crescente. Muros que, no caso do filme, são vazados de um lado pela esperteza gananciosa da família Kim, que se infiltra como parasita na casa e na vida da família Park, e, de outro, pelo seu cheiro impossível de ocultar: um “cheiro especial”, de pano molhado, como o “das pessoas que frequentam o metrô”, segundo o sr. Park. 

Único sinal que, em sua opinião, cruza o limite do suportável na polida relação de convívio que se estabelece ali entre classes distintas —e que dará ignição ao desfecho trágico da história.

Chegamos aqui ao ponto crucial. Lá pela metade do filme descobrimos que a casa ensolarada tem um bunker, onde um homem indigente mora escondido há mais de quatro anos, controlando silenciosamente as lâmpadas do imóvel com sinais em código morse. Catacumba secreta que o arquiteto construiu para proteger os moradores de virtuais ataques nucleares da Coreia do Norte, mas também da cobrança ameaçadora de credores e agiotas. 

Mais uma vez, no filme, percebemos que os limites sociais estão por um fio, ou já foram cruzados. Surpreendentemente, o bunker replica de forma assombrosa a casa pobre dentro da casa rica, tornando mais dramático o sentido da palavra-título do filme: parasita. Contiguidade espacial que dissolve, até certo ponto, a rígida polaridade dicotômica que parecia estruturar o filme, baseada no conflito de classes e materializada na arquitetura.

Capa Ilustríssima Parasita
Ilustração - daniloz

O “fantasma” hospedeiro, no caso, é o marido da governanta, desempregado e endividado. Dominado pela letargia daquela vida em subsolo, ele confessa não ter plano nenhum que possa tirá-lo dali, pois sente como se tivesse nascido naquele lugar. 

Esse aparente conformismo do personagem, que precede a explosão de violência que ele mesmo desencadeia no final do filme, é um traço de realismo crítico importante, num mundo onde o sentimento de coesão de classes foi atomizado e subtraído pelo individualismo consumista, pela ubiquidade conexionista, pela escalada religiosa e pelas falsas verdades. 

O filme não nos oferece chaves para escapar desse beco sem saída debaixo da terra. Mas o sentimento de humilhação, que o estrutura e atravessa, torna a sua fruição quase insuportável.

Afinal, talvez a mensagem seja essa: a imensa massa de excluídos, no mundo atual, não vai se rebelar em levantes revolucionários nas ruas. Vai parasitar a vida dos privilegiados de forma cada vez mais próxima e invasiva, de modo a se tornarem os seus duplos ocultos, seus fantasmas íntimos. 


Guilherme Wisnik, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, é autor de “Dentro do Nevoeiro” (editora Ubu).

Ilustração de daniloz

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