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Jogos de linguagem de Salinger tornam infernal o trabalho do tradutor

Crítico Alcir Pécora comenta novas edições em português do autor de 'O Apanhador no Campo de Centeio'

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[RESUMO]Novas traduções renovam o interesse por J. D. Salinger, autor de “O Apanhador no Campo de Centeio”, cuja obra explora um labirinto de jogos de linguagens, brincadeiras semânticas e charadas que tornam infernal o trabalho do tradutor.

Acabam de sair novas traduções do escritor nova-iorquino Jerome David Salinger (1919–2010) —por ora, “O Apanhador no Campo de Centeio” (1951), “Nove Histórias” (1953) e “Franny & Zooey” (1961)—, aos cuidados da Todavia

Em maio, a editora publicará outro clássico do autor, “Erguei Bem Alto a Viga, Carpinteiros & Seymour: uma Introdução” (1963), todos com tradução de Caetano W. Galindo. 

“O Apanhador” é o mais conhecido desses títulos. Conta as andanças erráticas de um adolescente de 16 anos, Holden Caulfield, pela sua Nova York natal, após ser expulso pela terceira vez de uma escola de elite. O garoto está em vias de um colapso nervoso que, afinal, acaba por ocorrer, levando-o a ser internado num sanatório. 

“Nove Histórias” é uma reunião de contos, todos igualmente centrados em reações de crianças e jovens diante de diversas vicissitudes da vida adulta, de que o período de guerra é possivelmente o de maior impacto.

O terceiro livro reúne um conto, “Franny”, e uma novela, “Zooey”, títulos tomados dos nomes dos irmãos mais jovens da família ficcional Glass, que se tornou o grande núcleo da criação de Salinger. 

Franny, a caçula, sofre uma crise existencial aguda durante a visita que faz ao namorado universitário, e Zooey, enquanto a irmã convalesce na casa dos pais, busca meios oblíquos de fazê-la superar a depressão.

Filho de um importador judeu bem-sucedido, Salinger, como Holden Caulfield, frequentou bons colégios, sem grande destaque, e ainda a escola militar. Convocado, participou da Segunda Guerra, num posto da contrainteligência aliada, e, ao fim do conflito, permaneceu na Alemanha por algum tempo, tratando do que parece ter sido um sério trauma de guerra. 

Ecos desse colapso, para dizer o mais óbvio, aparecem em várias de suas narrativas e estão mesmo no centro dos acontecimentos que envolvem os Glasses —e, em particular, no suicídio de Seymour, narrado em “Um Dia Perfeito para Peixes-Banana”, o arrepiante conto de abertura de “Nove Histórias”.

Isto dito, não é fácil escolher o melhor caminho para falar dos livros, sobretudo porque a notícia de uma nova tradução certamente mobilizará os leitores mais fanáticos de Salinger —e há também, na outra mão, os novos leitores que o lerão agora pela primeira vez. Como quer que me arranje, é justo que tudo comece pelo louvor da iniciativa da Todavia; estava mais do que na hora de uma nova tradução em português dos seus livros.

Ilustração de homem sentado de costas olhando para pessoa dormindo em cama em frente. Ao seu lado, uma mala com uma arma em destaque.
Ilustração de Carolina Daffara para a Ilustríssima - Carolina Daffara/Folhapress

A razão mais imediata dessa demanda, não fosse por outros motivos, é a de que existe uma grande quantidade de gíria nos textos de Salinger, sobretudo no “Apanhador”, o que acaba quase naturalmente exigindo uma renovação da tradução, pois nada envelhece mais rápido na língua do que as gírias, que passam como passam a juventude e a moda.

Encarregado da missão, Caetano W. Galindo é tradutor experiente de vários autores importantes de língua inglesa, entre eles James Joyce e David Foster Wallace. Comentarei seus valorosos esforços conforme for anotando os aspectos que me parecem mais interessantes para uma apresentação do pequeno conjunto das narrativas conhecidas de Salinger.

Como disse antes, boa parte da criação do escritor associa-se à família Glass, a qual consiste nos pais, Les e Bessie, dois atores e dançarinos aposentados de vaudeville, e sete filhos, cinco homens e duas mulheres, a saber, em ordem decrescente de idade: Seymour, Buddy, Boo Boo, Walt, Waker, Zooey e Franny. O mais esquisito a dizer deles é que todos os sete filhos foram crianças prodígios, que se apresentaram, sucessivamente, ao longo de 20 anos, num famoso programa de rádio, “It’s a Wise Child” (algo como “esta é uma criança esperta”).

Nenhum leitor das aventuras espirituais da família Glass resistia a comentar miudamente cada um de seus membros e os dilemas que os afligiam, falando deles como se fossem pessoas reais. Está aí uma qualidade evidente do estilo salingeriano, à qual os antigos chamavam “enárgeia” e que se costuma traduzir por “vivacidade”, atributo próprio dos seres animados. É o mesmo que um crítico importante de Salinger, Henry A. Grunwald, chama de “poder de dar realidade a suas criaturas e inventar caracteres”, as quais “metem-se na cabeça do leitor e, uma vez lá, assumem vida própria”.

Um segundo ponto que talvez possa dar uma visada do conjunto da obra de Salinger é o emprego que as suas personagens fazem do termo “phony”, difícil de traduzir, e que me parece que Galindo resolve suficientemente bem como “fajuto”.

Mas convém demorar um pouco ao pé do tipo de fajutice que Salinger praticamente reinventou desde “O Apanhador”. O seu sentido mais genérico é o de “falso”, mas também de “falsificado”, isto é, de coisa que se quer passar por outra que nunca chegará a ser, pois é fruto de uma simulação ou qualquer estratégia forçada; no limite, constitui-se como vulgaridade, que pode resultar numa afetação ridícula e constrangedora.

Em particular quando proferido pelo jovem Holden, “phony” gera uma espécie de sentença sem remissão sobre o esvaziamento da vida adulta, sobretudo quando compreendida na forma consumista, alienada e esnobe da alta burguesia nova-iorquina. Pode-se ver aí denúncia ideológica, e seguramente há, mas há também, no fundo, quase um veredicto ou uma sentença condenatória ancestral, talvez bíblica, ainda que proferida por um pirralho: ser “phony” é entregar-se a uma vida de filistinismo e autopropaganda.

Claro que a acusação, no sentido contrário, também deixa trair o desejo fracassado de uma ingenuidade e inocência infantis, se não míticas. E o caso é que a sentença implícita não atinge apenas a pessoa ou a atitude que se considera “phony”, mas também o seu acusador. A falsidade que se percebe no outro efetua o padecimento agudo de um fracasso que é próprio, antes de ser alheio. A impossibilidade ou a trapaça de conviver com as pessoas acaba implicando o fracasso inteiro de viver. 

Um aspecto já mencionado diz respeito ao fato de que o estilo de Salinger concilia uma escrita muito polida e refinada com uma fluência incrível, que incorpora o “slang”, vale dizer, o calão, as imprecações e a gíria usada pelos jovens nova-iorquinos da época. Daí que as primeiras reações ao “Apanhador” tenham incluído muita vez a acusação de imoralidade, por conta das blasfêmias e dos relatos de encontro sexual fortuito e de prostituição feitos pelo narrador-protagonista adolescente, algo raro ou inexistente na literatura canônica da época.

Não é nem preciso dizer que essa conciliação extravagante de registros baixo e alto de linguagem, de frases cultas contendo expressões chulas que jamais perdem uma incrível fluência obriga os tradutores a provas tremendas de domínio de língua. Nem se trata de conhecer o inglês, nesse caso, mas de possuir extrema flexibilidade no manejo da língua de chegada.

Alguns poucos exemplos dessa dificuldade aparecem tomando-se simplesmente a primeira página e meia da nova tradução de o “Apanhador”. Galindo escreveu, por exemplo, as seguintes frases: “como que foi a porcaria da minha infância”, “se você quer saber a verdade”, “são sensíveis que é o diabo”, “vou te contar essa coisa demente que me aconteceu”, “aquilo me matou”, “nem venha me falar de cinema”, “eu quero começar a contar é do dia em que eu saí...”.  

Do ponto de vista da compreensão do inglês, está tudo perfeito. Contudo, do ponto de vista da absoluta fluência do texto original, ainda seria preciso buscar melhores alternativas, tipo: “como foi a droga/porra da minha infância”, “pra falar a verdade”, “são sensíveis pra diabo/cacete/caralho”, “vou te contar essa coisa doida/maluca/fodida que me aconteceu”, “aquilo que me deixou pirado/fodeu”, “Nem me fale de/em cinema”, “Vou começar falando do dia...”. Quer dizer, não há erro em nenhuma frase, mas poderia haver maior precisão no efeito de discurso displicente, sujo e finamente tenso do jovem Holden.

Outro aspecto significativo das narrativas de Salinger é que, ao longo delas, o escritor postula as suas personagens como autores para o que está escrevendo ou mesmo para o que já escreveu e foi publicado.

Assim, por exemplo, em “Seymour: uma Introdução”, sugere-se que Buddy Glass, protagonista desse livro e de “Erguei Bem Alto a Viga, Carpinteiros”, seja o verdadeiro autor do “Apanhador”. A insinuação é uma verdadeira bomba que um leitor apenas desse livro não chega minimamente a supor. A partir da postulação de Holden Caulfield como criação de Buddy, modifica-se um bocado a compreensão do livro.

Da mesma maneira, três dos contos de “Nove Histórias” são atribuídos posteriormente à autoria de Buddy Glass, a saber: “Um Dia Perfeito para Peixes-Banana”, “Lá no Bote” e “Teddy”. Os encaixes não param aí, pois o mesmo Buddy é dado como o autor não nomeado da novela “Zooey”. Ou seja, Salinger vai enredando uma narrativa na outra, e submetendo cada um de seus contos ao conjunto novo do que vai produzindo.

O processo se intensifica com a evidência de que muito do que é narrado como sendo relativo aos Glasses parece ter acontecido com o próprio Salinger, como o episódio do colapso pós-Guerra. Numa curiosa analogia com as práticas teatrais, Grunwald diz que “Salinger está tentando derrubar a quarta parede”, à maneira de Pirandello e de tantos outros: “Ele está trazendo a audiência inteira para dentro da ação, fazendo-os esquecer o que é real e o que não é” e faz com que travem uma batalha “nos limites da sanidade”.

É uma observação precisa, que confronta a estruturação das narrativas e a funcionalidade semântica intrínseca da família Glass. Sobretudo, ajuda a recuar face às muitas interpretações que os escritos de Salinger têm sofrido, especialmente em termos simbólicos e metafísicos. 

Não que não tenham cabimento, ou que não digam respeito ao universo de Salinger; muito pelo contrário. É bem sabida a ligeireza com que o escritor se atirava aos mais diversos credos e práticas místicas, do catolicismo ortodoxo ao zen-budismo e ao tao; do hinduísmo de Sri Ramakrishna e dos Advaita Vedanta ao de Swami Vivekananda; dos exercícios de krya-ioga ao misticismo sufi de Idries Shah, para não falar dos temas mais comuns da homeopatia, da acupuntura e da macrobiótica. 

De minha parte, não me entusiasmam tanto as interpretações edificantes e místicas. Antes, me interessa a percepção da centralidade dos jogos que articulam as biografias ficcionais das personagens com temas como a dificuldade de assumir, com verdade, uma vida adulta; a impossibilidade de sair ileso dos horrores da guerra; e, para resumi-los todos, a doença insidiosa da normalidade ou o martírio do lugar-comum.

Para as personagens de Salinger, a sociabilidade burguesa está tingida de morte ou de alheamento. As suas narrativas acompanham com atenção mórbida e estilo requintado a consecução de uma tragicomédia.

Essa mesma atenção que o faz criar um labirinto artificioso de inscrição do autor e do leitor no cerne da narração gera também um sem-número de charadas, jogos de palavras, intertextualidades e autorreferências que fazem do trabalho de tradução um verdadeiro inferno. 

Um exemplo se encontra em “Um Dia Perfeito para Peixes-Banana”, quando a garotinha Sybil Carpenter enuncia uma adivinha que antecipa a tragédia —notar já o “sibila” no seu nome, que talvez devesse ser traduzido, para não falar do sobrenome (em português, Carpinteiro), que também tem história nos livros de Salinger. E o que ela diz à mãe é: “See more glass” (“veja mais vidro”), que refere foneticamente o nome de Seymour Glass. E insiste com a mãe: “Did you see more glass?” (“Você viu mais vidro?”).

Tudo aqui está em perceber a pegadinha da garota, que, quando pergunta se a mãe viu, está em vias de lhe mostrar o que vai vir, a saber, a morte de Seymour Glass.

Em português, Galindo optou por um viés esquisito: “Se mói glé!”, e depois “Será que se mói glé?”. Imagino que tenha passado dias com o enigma na cabeça para propor algo tão complicado. No entanto, esse tipo de resolução nonsense e abstrata, que talvez funcionasse com Joyce, simplesmente dá com os burros n’água no caso de Salinger.

Capa de livro
Capa da edição da Todavia de 'O Apanhador no Campo de Centeio', livro de J. D. Salinger - Divulgação

Outro exemplo. O segundo conto está traduzido por “O Tio Novelo em Connecticut”. Por quê “tio Novelo”? Foi uma solução tentada por Galindo para dar conta de um jogo de palavras espirituoso de Walt Glass, o qual, quando a sua namorada torce o tornozelo ao correr, consola-a antropomorfizando o tornozelo ferido como se faria a uma criança: “Poor Uncle Wiggily”. 

A graça em inglês está em equivocar “ankle twisted” (tornozelo torcido) com “uncle Wiggily” (algo como “tio Treme-treme” ou “tio Bambo” —“wiggle” é o movimento que faz a gelatina ou uma barriga a tremer).

Ou seja, “Tio Novelo” faz um trocadilho com “tornozelo”, mas perde a fragilidade e o tremor que atraem a compaixão. E há uma dificuldade a mais: ao dizer “Poor uncle Wiggily”, Walt está de fato imitando a maneira carinhosa como se fala a uma criança em vias de chorar, como se dissesse: “tadinho do seu tornozelo”. A semelhança formal de “tio Novelo” não funciona —mas alerto que não sei o que propor no seu lugar. O que escrevi acima é apenas uma hipótese de sentido, não de tradução.

Um último exemplo. No conto “Lá no Bote”, o filhinho de Boo Boo Glass ouve uma empregada dizer a outra que o seu pai é um “big sloppy kike” (um grande judeuzinho desleixado) e vai se esconder chateado no bote que está no píer. Sua mãe, quando o acha, pergunta-lhe o que aconteceu, e ele conta o que a empregada disse. Ao lhe perguntar se sabe o que é “kike” (uma forma pejorativa de nomear os judeus), o garoto explica: “It’s one those things that go up in the air” (é uma dessas coisas que sobem no ar), e acrescenta “with strings you hold” (que se segura com linhas/cordas).

Boo Boo percebe então que o garoto entendeu “kike” como “kite” (pipa), e que, embora tenha percebido que se tratava de uma ofensa, não entendeu o seu aspecto preconceituoso mais cruel. Essa troca é resolvida por Galindo com a empregada chamando o pai de “um judeu sovina”, e quando Boo Boo pergunta ao filho se ele sabe o que é um judeu sovina, o menino responde ser um daqueles “caras que sovam o pão”. 

Ou seja, para dar conta da confusão entre kike/kite, faz o engano incidir não sobre “judeu” propriamente, mas sobre o atributo de “sovina”, que relaciona com “sovar o pão”.

Poderia ser uma solução, não fora o fato de que a mãe só é bem-sucedida no apaziguamento do garoto quando o faz habilmente se comprometer a ajudar o pai a “carry the sails down” (descer as velas), o que corresponde a ajudá-lo a consertar o seu suposto desleixo em segurar as coisas com cordas. 

Na versão brasileira, em que “sovar o pão” se tornou a questão, “trazer as velas para cá” ficou apenas uma frase solta, e o desfecho do conto ficou em suspenso.

Qual a solução para esses jogos de linguagem disseminados em todos os livros? Não tenho ideia. 

Como nem sequer tentaria ser um tradutor criativo, talvez apenas mostrasse com o auxílio de notas o que estava em jogo ali. Quando digo isso, não é para criticar o esforço de Galindo, mas antes para encarecer a sua valentia: como diabos alguém se mete a traduzir esse tipo de livro? E, no entanto, há quem o faça e lute a mãos nuas com os idiomas e busque, de alguma forma, trazer o texto da melhor forma ao leitor que não o pode ler no original.

Termino este voo de pipa sobre Salinger deixando de comentar vários outros aspectos de seu estilo narrativo, que incorpora a transcrição de cartas e de chamadas ao telefone; de troca de diálogos curtos, repletos de subentendidos e de espasmos vocabulares; de histórias dentro das histórias; de monólogos interiores; de digressões entre parênteses a suspender a continuidade da narrativa. 

Trata-se de um acervo de recursos estilísticos com impacto tremendo na literatura norte-americana contemporânea, como se vê em John Updike, Philip Roth, Hunter Thompson, Sylvia Plath etc. Não à toa, Louis Menand disse que Salinger “acabou com escrever histórias no sentido convencional”, e que um livro como “O Apanhador no Campo de Centeio” se tornou “um gênero literário particular”.


Alcir Pécora é professor titular de teoria literária no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp.

Ilustração de Carolina Daffara, ilustradora, infografista e fotógrafa.

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