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Vencedores da Mostra de Tiradentes conferem novos sentidos ao terror

Filmes premiados se impregnam de horror pela chave da identidade e do empoderamento

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Marcelo Miranda

Se o horror artístico tem como alguns de seus princípios a suspensão da normalidade, o temor do inesperado e a ascensão do inexplicável, os filmes vencedores das três seções principais da Mostra de Cinema de Tiradentes, encerrada em 1º de fevereiro, apontam as possibilidades várias de o gênero se imiscuir em qualquer tipo de pulsão

Depois de um 2019 em que a produção brasileira se destacou pela série notável e plural de títulos —“A Sombra do Pai”, de Gabriela Amaral Almeida; “Morto não Fala”, de Dennison Ramalho; “A Noite Amarela”, de Ramon Porto Mota; e “O Clube dos Canibais”, de Guto Parente—, é sintomático que Tiradentes, sempre a exibir filmes independentes que muitas vezes pautam as discussões no ano adiante, tenha chamado atenção a três projetos que, de formas heterodoxas, transitam no horror pelo sentido amplo de seus significados. 

Os ganhadores do festival se impregnam de horror pela chave da identidade e do empoderamento: um filme queer, “Canto dos Ossos” (CE), de Petrus de Bairros e Jorge Polo; um filme indígena, “Yãmiyhex – As Mulheres-espírito” (MG), de Sueli Maxakali e Isael Maxakali; e um filme negro, “Egum” (RJ), de Yuri Costa. 
A trinca pode ser enquadrada em categorizações identitárias, mas     também as extrapola. Foi produzida por cineastas e equipes que tomam para si os meios de produção e as potencialidades da linguagem, no intuito de conferir outros sentidos a ambiências e referenciais muito pasteurizados por um cinema historicamente normativo em gênero, cor de pele e positivismos culturais.

Cena do filme 'O Canto dos Ossos', de Petrus de Barros e Jorge Polo, que ganhou a mostra Aurora em Tiradentes
Cena do filme 'O Canto dos Ossos', de Petrus de Barros e Jorge Polo, que ganhou a mostra Aurora em Tiradentes - Divulgação

“Canto dos Ossos”, escolhido pelo júri oficial como melhor longa da seção Aurora (dedicada a títulos de realizadores em seus primeiros filmes), é a narrativa fragmentada de jovens sugadores de sangue que circulam errantes entre o Canindé cearense e uma Búzios em expansão imobiliária. Os personagens vão e vêm, num desequilíbrio de sensações que norteia a experiência de imersão no filme. 

Há muito de enigmático na trajetória das duas protagonistas (as atrizes Rosalina Tamiza e Maricota), que passa pela liberdade de seus corpos e de seus afetos. O queer no filme está nessa materialidade sensível e permanente, mais que numa ilustração da necessária pauta política. 

Para retomarmos a frase de Julio Bressane, em “Canto dos Ossos” o horror não está no horror. O sangue, as tripas, a gosma jogada diretamente na lente da câmera (logo, no espectador) causam menos repulsa que as ações de empresários e governos liberais, sempre à espreita daqueles vampiros despojados. 
O clima de conspiração à la Jacques Rivette (não é surpresa se “Duelle”, filme de 1976, piscar na mente) saudavelmente se desarmoniza com os efeitos práticos e baratos de pele rasgada e fluidos vomitados, tão comuns há mais de duas décadas no cinema de um Petter Baiestorf. Desse caldeirão, “Canto dos Ossos” emerge não sem tropeços, porém com bem-vindo vigor. 

“Egum”, vencedor da mostra Foco, abre com epígrafe do filósofo Frantz Fanon (1925-1961) sobre a negrura “densa e indiscutível” que o “atormentava, perseguia, perturbava, exasperava”. O curta se filia explicitamente ao que a pesquisadora Robin R. Means Coleman aponta como “filmes negros de terror”, no livro “Horror Noire” (lançado no Brasil pela DarkSide). A saber, um filme que possui “um foco narrativo adicional que chama atenção para a identidade racial, nesse caso, a negritude”. 

Cena do curta "Egum", de Yuri Costa, vencedor da mostra Foco no Festival de Tiradentes
Cena do curta "Egum", de Yuri Costa, vencedor da mostra Foco no Festival de Tiradentes - Divulgação

Estamos no amedrontamento provocado pelo regime escravocrata brasileiro, herança maldita ainda escandalosa no trato social do país. Ao mesmo tempo em que trata de ancestralidade, “Egum” é um conto de possessão e apropriação, a transitar por imagens que alegorizam a perturbação tão precisamente definida por Fanon. Fantasmas brancos tomam de assalto o corpo negro que eles insistem em desindividualizar —mas a resistência vai permanecer.

A relação de “Yãmiyhex – As Mulheres-espírito” com o horror não aparece tão obviamente, a não ser pela expansão do conceito. O filme, ganhador da seção Olhos Livres na escolha do júri jovem em Tiradentes, trata de rituais indígenas da comunidade maxakali. O rito altera a rotina local e permite o resgate de outras eras e buscas pelo além-físico. 

Travestidos de animais e engalfinhando-se, homens e mulheres da reserva em Minas Gerais revisitam constantemente memórias ancestrais e espirituais. Na região ao redor, ruralistas mantêm intacta a ameaça de eliminação daquele espaço.

Está-se em território afetivo similar ao de um Apichatpong Weerasethakul, com suas florestas na Tailândia e seus espectros que caminham rotineiramente à luz do dia conforme as crenças locais. Só que “Yãmiyhex” tem a singularidade de tratar dos autênticos donos da terra no Brasil —donos, aqui, sem a acepção burocrática e convencionada nas malfadadas leis do homem branco. 

O filme ser feito por dois maxakalis permite o olhar de dentro, ao qual nem todos nós somos capazes de acessar —e ainda bem. Ao homem branco não se deve dar todo o conhecimento do mundo, pois a homogeneidade insiste em provar sua incapacidade de ser humana. 

“Yãmiyhex” remonta a origens indefinidas. Seu sobrenatural está na errância de espíritos que parecem trafegar de corpo em corpo no ritual encenado e documentado. Como escreveu Inácio Araujo aqui na Folha, as imagens do filme captam “não seres vivos, talvez, porém fantasmas (vale o sentido corrente, de espíritos presentes, mas também o freudiano, de expressão de desejos)”. 

Importante: “Canto dos Ossos”, “Egum” e “Yãmiyhex – As Mulheres-espírito” serão exibidos em São Paulo em março, no Cinesesc. 


Marcelo Miranda é jornalista, pesquisador, curador e crítico de cinema. Produz e apresenta o podcast Saco de Ossos, programa de entrevistas com criadores e estudiosos de ficção de horror no Brasil.

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