Em poema inédito, Corsaletti comenta prazer de desenhar

De tom lírico e coloquial, versos descrevem alegrias e surpresas da vida cotidiana

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Fabrício Corsaletti

[SOBRE O TEXTO] Os dois poemas inéditos nesta página —de tom lírico, coloquial e direto—  farão parte de um livro de Fabrício Corsaletti ainda em produção.

Eileen Myles e Bruna Beber

eu gosto mesmo é de ficar bêbado
e estar apaixonado
ou pelo menos bêbado
mas de preferência apaixonado
com duas ou três cervejas
na cabeça vadiando pelo centro
e repassando mentalmente um poema
sobre você

quando não estou 
bêbado nem apaixonado
quase morro de tristeza
lembro das pessoas
que levam a vida como zumbis
os olhos queimados pela visão do nada
a ouvir o canto das sereias
e me pergunto se vou aguentar até o fim
mas em geral não penso nelas
em geral só penso em pessoas apaixonadas
e estou sempre marcando o próximo porre
com meus colegas de copo e de cruz

também gosto de ver minhas canetas morrerem
não gosto quando elas somem
ou são roubadas

gosto muito das palavras lataria
e fuselagem

e adoro aquelas cenas de paz
dos filmes de gângsteres
em que um gordinho de calças arriadas
caga e folheia o jornal de esportes
segundos antes de ser metralhado
pelo bando inimigo

Ilustração de Fabrício Corsaletti para a seção imaginação, da Ilustríssima
Ilustração de Fabrício Corsaletti - Folhapress

Eu não escolho quem eu amo

aos quarenta comecei a desenhar
fiz um copo e uma garrafa
um táxi na chuva
um bonde sob as árvores
melancólicas de New Orleans

fiz a Mula carregada de seda de Damasco
fiz um autorretrato no Bixiga
atrás de uma barricada de cervejas
fiz uma cadeira de tecido poroso
inventei os monóculos siameses

depois fiz um jumento
em homenagem a Luiz Gonzaga
Amy Winehouse de vestido amarelo
Kerouac fumando no meio do nevoeiro
Picasso com mãos de pão
sob dois versos de Éluard

devo ter feito uns vinte Bob Dylans
dois ou três para cada fase —
os olhos de um deles lembravam Rembrandt
pelo mistério e pela densidade
alguém me disse ou eu me disse
num vagão de metrô dentro de um sonho

fiz um Rimbaud de gravata vermelha
minha mulher com o cabelo em chamas
encarando o vento
minha mulher e tudo o que ela tem
de inapreensível e fascinante

fiz um Monarco embrulhado num manto azul
um Chico Buarque de olhos pretos
dei a Monica Vitti uma irmã quase tão linda quanto ela

aí fiz alguns retratos só com Bic
um Rimbaud menino
um Flaubert desconfiado
um Dylan Thomas acendendo um cigarro
um Dostoiévski com barba de arame
uma Marina Tsvetáieva que ainda não sei se presta

fiz Cruz e Souza usar um lenço lilás
Clarice Lispector vestir peruca de Emília
captei a ternura daquela chef de rua 
que cozinha com óculos de aviador

desenhar tem sido o grande prazer da minha vida
neste mundo disforme

mas de todos os desenhos que fiz até agora
sinto que as pessoas gostam mesmo
é da cafeteira italiana que saiu 
no terceiro ou quarto dia

a Cafeteira italiana para leitores de Lucia Berlin
tem sido uma unanimidade
entre amigos e parentes

eu não escolho quem eu amo
e como disse uma poeta
não escolhemos nossos hits

O poeta Fabrício Corsaletti no coquetel de entrega do 61º Prêmio Jabuti, no auditório Ibirapuera, em São Paulo, em novembro de 2019
O poeta Fabrício Corsaletti no coquetel de entrega do 61º Prêmio Jabuti, no auditório Ibirapuera, em São Paulo, em novembro de 2019 - Folhapress

Fabrício Corsaletti, poeta, cronista e tradutor, é autor de “Esquimó” e “Baladas” (Companhia das Letras)

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