Longe do mercado, Guto Lacaz mantém originalidade e senso de aventura

Multiartista apelidado de Professor Pardal tem mostra panorâmica em SP até 29/3

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[resumo] Aos 71 anos, Guto Lacaz mantém o senso de aventura e de humor que sempre demonstrou em relação à arte e ao design; embora menos estimado pelo mercado, é reconhecido pelos pares e pelo público. Uma panorâmica de seus trabalhos pode ser vista em São Paulo até 29/3.

 

O ateliê de Guto Lacaz fica nos fundos de sua casa, nos Jardins, bairro nobre de São Paulo, e mais parece uma oficina ou uma sapataria high tech. Em uma bancada de madeira, uma furadeira vertical divide o espaço com uma morsa, uma traquitana que serve para apertar coisas, e um esmeril, para afiar ferramentas de corte como brocas e lâminas em geral, assim como para desbastar metais.

Esses são apenas alguns dos objetos do espaço de trabalho do artista que ficou conhecido nos anos 1980 como um Professor Pardal, tantas as engenhocas e obras movidas por pequenos motores que criava, ao mesmo tempo em que fazia seu nome como um dos principais designers gráficos da época.

Na sala ampla com poucos móveis, entre alguns quadros nas paredes e outros tantos embalados, um chama a atenção. É uma tela bem grande, quadrada, com 25 quadrados menores em alto relevo, tudo branco. Pergunto o nome da obra e ele pede um minuto. Então aponta uma luminária em direção ao quadro e o liga na tomada. Os quadrados em relevo começam a se mexer lentamente, se afastando e se aproximando uns dos outros. Mas a cena ainda não está pronta, falta a trilha. Guto senta ao computador que fica em uma mesa no meio do ambiente e coloca uma música de Tom Jobim. “Esse quadro se chama ‘Bossa Nova’”, explica.

Aos 71 anos, o multiartista, que exibe sua trajetória na primeira exposição panorâmica de sua obra em São Paulo, não perdeu o senso de aventura que sempre teve com as artes —mesmo sem ter recebido o reconhecimento do mercado. “Guto optou por um voo solo e independente, sem vínculos muito fechados com galerias”, explica a artista Jac Leirner. Nas palavras de outro artista, Tadeu Jungle, ele é “subvalorizado ao extremo, o que tem muito a ver com a empáfia do circuito das artes com as artes gráficas”.

 

Guto se entusiasma quando entra com a reportagem na sua exposição na Chácara Lane, batizada de “Allegro”, em cartaz até o dia 29/3. A ocupação reúne uma amostra de seus quase 50 anos de produção artística e de design gráfico e também traz projetos que estavam no papel há quase três décadas e foram construídos pela primeira vez.

É o caso de ETs elétricos, uma série de delicadas esculturas em forma da letra T que giram movidas por um motorzinho. Montadas em duas fileiras em uma sala, a 1,30 metro de altura e cada uma com uma cor primária, dão a impressão ao espectador de estar em uma outra dimensão. “É inspirada em Calder (1898-1976) e também em Mondrian (1872-1944)”, diz o criador, citando o escultor americano e o pintor holandês.

Um pouco mais para frente vê-se uma das esculturas cinéticas mais impressionantes da mostra, uma esfera de quase dois metros de diâmetro que gira em torno de si mesma com um pequeno foco de luz que a orbita. Chama-se “La Luna”. O artista abre os braços e os coloca ao redor da esfera gigante, com a cabeça virada para um lado de maneira que o giro da bola faça uma massagem em seu rosto. “Ensino as pessoas a fazerem assim, abraçarem a obra.”

Em outra sala, duas colunas no meio do ambiente. Nada muito incomum, a não ser pelo fato de que uma delas se move para lá e para cá, em cima de um motor de aspirador de pó modificado para não aspirar, só se mover. “O trabalho do Guto tem muita afinidade com o meu, porque tem humor e é elegante”, diz Jac Leirner. “A arte tem humor desde o dadaísmo, passando pelo cubismo. E no renascimento era a engenharia que unia as ciências com as artes. O Guto faz a junção de todas essas influências e as transforma em uma arte moderna contemporânea”, completa a artista.

“Allegro”, o nome da retrospectiva, é um termo italiano do mundo da música que indica andamento rápido e animado de uma peça. É também o nome da obra mais complexa da exposição. Em uma sala, em cima de um tampo de madeira quadrado com 64 buracos, uma máquina compressora de ar empurra bolinhas de pingue-pongue para cima, de maneira que elas mantenham-se flutuando e em movimento.

A escultura lembra uma das obras mais famosas de Guto, a “Eletro Esfero Espaço”, mostrada pela primeira vez na exposição “A Trama do Gosto”, na Fundação Bienal, em 1987. Mas com algumas diferenças. Em “Eletro Esfera Espaço”, quem segurava as bolinhas no ar eram duas filas de aspiradores de pó no modo contrário, de empurrar em vez de sugar. Entre elas, um tapete vermelho indicava o percurso a se fazer. “Cada pessoa ganhava um walkman, punha o fone de ouvido e fazia a trajetória com uma trilha sonora que fazia o espectador desligar do mundo lá fora”, lembra Tadeu Jungle.

A mostra de Guto reinaugurou a Chácara Lane, um espaço da prefeitura que faz parte do Museu da Cidade de São Paulo e fica na rua da Consolação, no lado do centro. A casa em que se exibem as obras divide o amplo terreno com a escola municipal de educação infantil Gabriel Prestes. “Quando me perguntaram se eu queria fazer essa exposição, topei na hora, era a chance de montar alguns projetos que nunca tinham saído do papel”, afirma Guto.

Um deles se chama “Delivery”: uma caixa de madeira enorme com um guarda-chuva preto, aberto, flutuando dentro, como se o objeto precisasse estar nesse modo que ocupa o maior espaço possível para poder ser transportado.

“Ele sempre foi um cientista maluco”, diz a jornalista e editora Joyce Pascowitch. “Todo mundo sonha em ser único, mas quase ninguém consegue. O Guto é único.” O pintor Luiz Paulo Baravelli, da mesma geração do artista, tem pensamento semelhante: “Quando vejo um trabalho do Guto, sinto minha cabeça mudar de marcha, como em um carro. Vejo aquilo com olhos diferentes dos que uso para as ‘artes plásticas’. Como ele não se encaixa exatamente em nenhuma das categorias tradicionais, eu o coloco em uma categoria própria, na qual ele é o fundador, o único praticante e que vai terminar junto com ele. O Guto é um ‘ismo’”.

O artista ainda vê a arte como uma oportunidade de realizar as ideias que tem todos os dias. Durante a primeira de nossas conversas, fala das chances de criar algo como se ele fosse uma pessoa de fora do meio, ou um adolescente, sendo chamado para inventar um objeto pela primeira vez. Ao contar como recebeu o convite para reinaugurar a Chácara Lane, esfrega uma mão na outra como se tivesse um plano infalível e algum adulto descuidado houvesse deixado uma brecha para que ele o pusesse em ação.

A meninice de Guto Lacaz está presente em toda sua obra, que reúne desenhos, logotipos, trabalhos gráficos, serigrafias, ilustrações para revistas, esculturas, performances, objetos inusitados.

 

Foi com esse nome, aliás, objetos inusitados, que ele percebeu que as “construções” que montava a partir de coisas que destruía eram arte. “Eu gostava de desenhar e de desmontar coisas desde pequeno. Aos 10 anos já tinha uma oficininha em casa. Quando meu pai me perguntava o que eu queria de aniversário, respondia: alicate, martelo”, lembra. “Em 1978, vi um cartaz escrito ‘Primeira Mostra do Móvel e do Objeto Inusitado’ e me inscrevi. Mandei 12 objetos e ganhei um prêmio. Fiquei me achando.”

Na semana seguinte, uma nota na revista Veja dizia que Carlos Augusto Martim Lacaz seguia a tradição de Marcel Duchamp (1887-1968). Guto não sabia quem era Duchamp, nunca tinha ouvido falar do inventor do “ready-made”. Então foi estudar. Depois do prêmio, quando descobriu que era artista e que tinha valor o que fazia, percebeu que não podia mais levar aquilo como um hobby, ia ter de se dedicar ao ofício. “Aí virei um obsessivo, passei a ler e trabalhar todos os dias.”

Até então, a trajetória de Guto não era marcada por vitórias, e sim pequenas derrotas. “Achava que era burro, tinha pouca autoestima. Meus irmãos eram os primeiros da classe e eu levava bomba”, conta o terceiro de quatro filhos de um médico e uma professora de Guaratinguetá (SP). O casal se mudou para a capital antes de os filhos nascerem e morou a vida inteira na mesma casa, na alameda Sarutaiá, nos Jardins.

A vida escolar de Carlos Augusto não foi memorável. Era mau aluno “porque as escolas eram uma merda, só punição”. Depois de ser reprovado na primeira série seis meses antes do final do ano letivo no colégio Dante Alighieri, foi transferido para o Colégio Vocacional, que tinha uma grade mais focada em ciências e “trabalhos manuais”. Lá conseguiu algum destaque com as coisas que criava e fazia com as mãos, mas fracassou de novo quando tentou se formar em eletrônica. “Tinha que saber muita matemática”, explica.

Na hora de cursar o vestibular, procurou uma profissão que tivesse desenho e passou em arquitetura na FAU de São José dos Campos (SP). Foi morar em república e virou hippie. “Era um momento que não podia nada, porque era ditadura militar, mas podia tudo porque tinha o movimento hippie, o mais legal que tem. Sou hippie até hoje”, diz.

Formado em 1974, conseguiu emprego no ano seguinte como arquiteto em um escritório. Durou quatro anos, e quando perdeu o posto descobriu duas coisas: primeiro, não queria outro; segundo, não sabia procurar trabalho. Mas a arquitetura não passou completamente em branco. Chegou a construir uma casinha de praia, em Camburi, no litoral norte paulista, que vendeu no ano passado.

E começou a trabalhar como designer gráfico, “onde sempre tinha coisas para fazer”. O pai escrevia um livro e pedia que fizesse a capa, o irmão abria uma empresa e pedia para fazer o logotipo. “Uma hora eu conheci três mestres, o Rafic Farah, o Ricardo Van Steen e o Mario Cafiero. Quando vi o trabalho deles percebi que estava muito atrasado, aí me grudei neles para aprender.” Logo começou a fazer projetos gráficos e logotipos com Cafiero e Farah —com o último formou uma dupla.

“Fizemos juntos capas da revista Around [1984-1986], para a Joyce Pascowitch, que eu apelidei de Joyce Passa o Convite. Depois a revista virou “AZ” e a gente estava lá também. Aí, quando a Joyce virou colunista social [na Folha], sempre chamava a gente para fazer ilustrações”, lembra Farah. “Sou uma dupla com o Farah até hoje, mas São Paulo afasta as pessoas”, diz Guto.

O amigo e parceiro lembra-se de outra faceta do trabalho de Guto, que começou nos anos 1980: as performances. “Elas matavam o público de rir e de suspense, porque alguma coisa sempre dava errado, quebrava”, conta Farah, que também se apresentou ao lado do amigo. “Ele punha um fiozinho com álcool que ia até o meu peito e acendia o fogo, que vinha em minha direção e deixava meu coração em chamas.”

Para Tadeu Jungle, o artista tem um volume de trabalho tão extenso que já justificaria a criação de um Museu Guto Lacaz. “Seria uma atração turística para a cidade, um lugar que daria para levar a família. O trabalho é lúdico, mexe com vários objetos do dia a dia”, reforça. “Foi o Guto quem escolheu as letras do meu poema ‘Você Está Aqui’, que está ocupando o MAC até o dia 26 de abril.”

Multiartista, multitalentoso, ultratrabalhador. Então, por que não é mais valorizado, ou mesmo mais conhecido? A galerista Regina Boni dá um palpite: “O trabalho do Guto é superinstigante, mas ele não correu atrás das modificações que o mercado sofreu no final da década de 1990”. Modificações essas que têm a ver com uma profissionalização do mercado, mas que, segundo Regina, também trouxeram uma certa pasteurização das artes, que passaram a ser ditadas pela importância que tomaram os curadores.

“O Guto não faz jogo nenhum, ele não é um ser político, é autêntico”, diz Joyce. “Ele não tem nem de longe o reconhecimento que merece. Sempre ficou à margem do mercado, mas é reconhecido pelos pares e pelo público. Quem vê o trabalho dele sabe que está vendo um grande artista”, completa Jac Leirner. “Se tivesse nascido nos Estados Unidos ou na Europa, estava milionário”, aposta Rafic Farah.

Guto não tem celular, nunca teve. “Trabalho em casa e uso email, não preciso. Mas fico com vergonha quando vejo que todo mundo tem, menos eu.” Anda sempre com um caderninho de bolso e uma caneta, anotando as ideias que surgem todos os dias. Depois passa para uma lista enorme no computador, só com o título. “Essa lista me salva quando tenho que tapar um buraco”, conta. “Mas muitas ideias eu leio e não sei mais o que são”, confessa.

Há uns cinco anos começou a sentir a mão esquerda tremer e ficou alarmado. Foi a médicos e acabou diagnosticado com uma condição neurológica chamada tremor essencial. “Eu me preocupo muito com isso, até mais pelos outros, que ficam incomodados. Mas não passou para a mão direita nem me fez perder a força ou a precisão para trabalhar”, afirma.

Em sua casa, falando de uma de suas grandes paixões, fica claro que a habilidade para o desenho continua intacta. Ao discorrer sobre a vida e a obra de Santos Dumont, pega um toquinho de lápis e um papel e desenha cada um de seus aviões com detalhes, desde o primeiro balão de ar até o número 20, o último modelo concebido, produzido e pilotado pelo aviador brasileiro. O 14 Bis tem um capítulo todo à parte, é claro, mas outros modelos, como o número 20 Demoiselle, também merecem atenção especial. Guto tem um conhecimento enciclopédico do assunto.

“Começou com um interesse de criança por aviõezinhos, aí foi se ampliando até chegar à obra de Santos Dumont, que considero o primeiro designer do Brasil.” O fascínio com o assunto virou tema de uma exposição no Museu da Casa Brasileira, em 2006, quando foi comemorado o centenário do primeiro voo do 14 Bis. Junto da mostra foi lançado um site chamado Museu Virtual Santos Dumont, todo criado por ele. “Essa pesquisa não termina nunca, toda hora eu aprendo alguma coisa nova e insiro no site”, diz.

Outra coisa que parece não terminar nunca é sua vontade de produzir novas intervenções urbanas, como as piscinas no Tietê ou no Pinheiros, um projeto ousado que prevê a colocação de 5 a 25 piscinas de poliuretano boiando em cima de um dos rios poluídos que riscam a cidade. Guto não permitiu que o projeto “Auditório para Questões Delicadas” o deixasse com medo da água.

Era 1989 e ele criou uma plateia de cadeiras que flutuavam no lago do Ibirapuera. Mas, no dia seguinte à instalação da obra, ela afundou. “Saiu na Folha uma foto e uma reportagem sobre o naufrágio das cadeiras, meu pai me mostrou, fiquei desesperado”, lembra o artista, agora rindo da passagem. “Passei os três meses seguintes fazendo testes com diferentes materiais até que finalmente deu certo. Virei um expert em cadeiras na água”, conta. A obra foi recolocada e não afundou mais.

Também planeja remontar uma performance ainda neste ano, a “Ludo Voo”, só com esquetes sobre aviação. “São 21 cenas de dois a cinco minutos, que apresento com meu amigo Javier Judas. Agora pensei em mais duas, vão ser 23.” Com duração de mais ou menos 40 minutos, tem uma trilha sonora eclética, com Bach, Laurie Anderson, Talking Heads, Vivaldi, Ray Conniff e Jeff Beck, entre outros. “Ludo Voo” foi apresentada pela primeira vez em 2014, depois remontada em 2016 na galeria Olido, no centro de São Paulo, onde Guto espera poder se apresentar de novo em 2020.

O artista oferece um capuccino. A mesa da cozinha está posta, com dois bancos, duas canecas e uma tábua no meio. No fogão, uma leiteira de ágata branca. Tudo harmônico e minimalista, e penso que os traços de Guto Lacaz são visíveis em toda a sua vida. Ele tem uma única filha, Nina, de 25 anos, “uma produção independente que eu assumi”, conta. Nunca foi casado, morou com uma namorada muito tempo atrás e fala apenas de uma outra. “Sou um sozinho. Gostaria de ter sido namorador, mas não fui”, diz. E então completa, sorrindo, “as mulheres não sabem o que estão perdendo”. Sozinho não, penso. Único.


Teté Ribeiro, Repórter da Folha e autora dos livros “Minhas Duas Meninas” e “Divas Abandonadas”, entre outros.

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