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Coronavírus vai tornar ainda mais difícil ser escritor no Brasil

Romancista Joca Reiners Terron comenta os impactos devastadores da crise no mercado editorial

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[RESUMO]Romancista reflete sobre o impacto econômico da pandemia no já combalido mercado editorial, o que ameaça avanços recentes, como a proliferação de escritores que tiram seu sustento de sua obra ou de serviços ligados à cadeia do livro.

O ofício de escritor subverte a expressão “tempo é dinheiro”. A prática literária inverte ao nível do paradoxo o sentido da frase, pois literatura é feita de tempo (o tempo particular que corre no interior das narrativas, o da existência dos personagens). Também é feita através do tempo, exigindo horas da vida de quem a escreve para ser realizada.

Feliz ou infelizmente, esse tempo necessário ao escritor para produzir sua obra está fora do mercado, não é medido por nenhum relógio de ponto nem consta na Consolidação das Leis do Trabalho. Em suma, não rende nem chega a ser dinheiro. Não se vende, como predicou Augusto de Campos num poema.

Com a pandemia do coronavírus e a recessão econômica decorrente do confinamento social, o mercado editorial brasileiro sofre o agravamento da crise que vinha de antes, da ruína financeira das duas maiores redes de livrarias do país.

A previsão de uma impactante redução de 70% no mercado editorial nos próximos meses trará consequências catastróficas aos prestadores de serviços do setor, aos profissionais ligados ao texto, às artes gráficas, à impressão e à produção de insumos industriais.

Desse amplo espectro de trabalhadores do meio editorial, os escritores pertencem à zona cinzenta que não é recompensada financeiramente por seu trabalho, ou é apenas de modo simbólico, restando-lhes o prestígio, às vezes nem isso.

Nos ensaios de “ABC da Literatura” (ed. Cultrix), Ezra Pound se vale de uma metáfora monetária para explicar a natureza do conhecimento literário.

Segundo Pound, conhecimento equivale a crédito bancário. Se Rockefeller emite um cheque de US$ 1 milhão, “o cheque é bom”. Se o poeta fizer o mesmo, é uma piada. O mesmo valeria para a ciência. “A referência de um escritor é seu nome. Depois de um certo tempo, ele passa a ter crédito.” Que pode ser sólido, ou como o do Eike Batista hoje. O escritor, como o cientista, é aquele que sabe. Sabe o quê? Fazer a própria literatura, interpretar a alheia.

Esse nome, no caso de o escritor ter ultrapassado a fase de bancar a edição de seus próprios, vai lhe garantir cerca de R$ 5.000 como adiantamento de royalties, além de dois ou três almoços com o editor, com a finalidade de discutir o original. A escrita de um livro pode levar anos, então os prognósticos são de fome.

Alberto Manguel conta a seguinte anedota sobre a juventude de Balzac: certo editor, interessado no talento do novato, planeja lhe oferecer 2.000 francos pelo seu próximo livro. Porém sabe que Balzac passa necessidades, vivendo numa água-furtada miserável. Antes de sair para visitá-lo, já baixou a oferta planejada pela metade.

O escritor Joca Reiners Terron em seu apartamento, em São Paulo (SP)
O escritor Joca Reiners Terron em seu apartamento, em São Paulo (SP) - Leticia Moreira/ Folhapress

Ao bater na porta do escritor, o adiantamento cai para 500 e, quando entra no minúsculo cômodo e percebe que Balzac vive a pão e água, o editor anuncia, generoso, sua oferta de 200 francos.
Para fazer justiça ao trabalho fundamental dos editores, vale esclarecer a real essência do negócio do livro, definido por Georges Bataille como uma economia de perdas em vez de uma economia de acumulação.

De fato, o papel em branco tem valor econômico superior ao do papel no qual a literatura é impressa, cujo preço acaba sendo restrito àquele a ser pago pela reciclagem. Nisso, o reciclador de papel é o crítico literário mais arguto.

A crise do mercado editorial também passa pela crise simbólica da literatura, o que subtrai ainda mais dividendos do crédito atribuído ao nome do escritor.

A comparação de Pound é de 1934, e de lá para cá a ficção literária —incluindo aquilo que o crítico italiano Massimo Rizzante entende como romance de criação, “que já tem o mesmo público que a poesia”, não correspondendo à avalanche de produtos literários “escritos fora da história (evolutiva) do romance”— ganhou a implacável concorrência da narrativa audiovisual.

Até o Prêmio Jabuti decidiu reforçar a distinção, criando em oposição à categoria “romance literário” (ou de criação) a sua variação comercial, o “romance de entretenimento”.

É de supor que essa categoria englobe os escritores que conseguem sobreviver de vendas, além de serem mais frequentemente empregados pelo audiovisual para a concepção de argumentos e roteiros, embora também já vislumbrem a beirada do penhasco.

Com a profissionalização do setor editorial nas últimas décadas, pela primeira vez na história os escritores puderam se especializar em serviços ligados à produção dos livros, como edição, tradução e tarefas relacionadas, copidesque e revisão de textos, ou encomendas de “ghostwriting” (em geral, consistindo em escrever anonimamente autobiografias de celebridades).

Outros reforços orçamentários, como o gerado pela negociação de direitos para adaptação pelo cinema e pela televisão, possibilidade que vinha se intensificando com a demanda do mercado audiovisual causada pela guerra do streaming, mais a renda vinda de cachês pagos pelo circuito de palestras e festivais, possibilitaram a alguns viver de literatura, ao menos por certo tempo.

Nas gerações passadas, os escritores se mantiveram com profissões alienígenas à cadeia do livro: eram médicos (Pedro Nava, Moacyr Scliar, Dyonélio Machado), diplomatas (João Cabral, Guimarães Rosa, para ficar em alguns), jornalistas (Lima Barreto, Carlos Heitor Cony, João Antônio) e um variado et cetera.

Sem dúvida, tal condição possibilitava independência aos escritores, além de certo diletantismo que podia ser benéfico por um lado e por outro alimentava a aura romântica da literatura.

A consolidação do mercado permitiu à atual geração, portanto, compreender o mérito do trabalho editorial e assumir as demais atividades correlatas —ou mesmo a dramaturgia para teatro, cinema e televisão— como maneiras de se fazer literatura, produzindo a literatura dos outros, e usando a tabela de preços de serviços a favor da sua própria criação.

Ao contrário de outros círculos artísticos, como a indústria musical ou as artes visuais, falar em dinheiro no meio literário sempre foi tabu. A profissionalização editorial, o aquecimento da indústria audiovisual, a eletrificação do circuito de festivais e palestras (no qual o Sesc teve importância inestimável) mudaram isso.

Habituados a explorar em seu trabalho noções tão vagas como a beleza, o amor e a liberdade, os escritores enfim puderam falar de algo em tese concreto, como o dinheiro. Foi por pouco tempo.

Antes da pandemia, a recessão já se encarregara de minar o circuito de festivais. O mercado de livros sofria grave retração comercial, ao mesmo tempo que assistia ao florescimento do cenário independente. Sob ataque governamental e ameaça do desmonte da Ancine (Agência Nacional do Cinema), o audiovisual agora está nas cordas.

Com tudo isso, o escritor é, involuntariamente, devolvido à sua condição de indivíduo inadimplente. O lado feliz da situação é que o ato da escrita, por não consumir nada além de imaginação, papel e lápis (risos), é anticapitalista por natureza.

Agora nos alimentaremos das letras, se não as de câmbio, ao menos as de nosso nome.


Joca Reiners Terron é escritor, autor, entre outros, dos romances ‘A Morte e o Meteoro’ (Todavia) e ‘Do Fundo do Poço Se Vê a Lua’ (Companhia das Letras), pelo qual venceu o prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional.

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