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Coronavírus

Distribuição de UTIs a pacientes de Covid-19 por algoritmo não elimina dilema ético

Para advogada, direitos serão violados em quaquer hipótese; resta adotar critérios técnicos e transparentes

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Marcela Mattiuzzo

[RESUMO] Uso de inteligência artificial para decidir quais doentes ocuparão leitos em UTIs é valioso para eliminar subjetividades e padronizar decisões de profissionais de saúde, mas depende de critérios técnicos transparentes. Algoritmos podem não ser adequados em situações de juízo moral e, indiretamente, beneficiar grupos socioeconômicos favorecidos.

Na semana passada, a Folha noticiou um debate relevante que se iniciava no Brasil: o uso de algoritmos no combate à pandemia de Covid-19. Mais especificamente, a discussão diz respeito a um tema extremamente complexo, o gerenciamento de leitos de UTI durante a crise.

Como já observado na Itália e na Espanha, um dos maiores problemas gerados pelo novo coronavírus é o grau elevado de pacientes, de todas as idades e condições de saúde, que necessitam de internação e por vezes tratamento intensivo.

Já está demonstrado que nenhum sistema de saúde no mundo tem condições de gerenciar todos esses pacientes caso uma parcela relevante da população seja contaminada —por isso a insistência da Organização Mundial da Saúde (OMS) em medidas de isolamento.

No entanto, mesmo com medidas implementadas, é certo que os sistemas trabalharão no limite, e é provável que em alguns momentos esse limite seja extrapolado. Ou seja, é altamente possível que, num dado momento, médicos tenham que tomar decisões a respeito de quem recebe tratamento e quem deixa de recebê-lo, por conta da escassez de leitos disponíveis.

Delegar a um médico a tarefa de tomar decisões como essa de forma reiterada é nada menos que trágico. Um profissional de saúde é ensinado desde sempre a prover o melhor cuidado ao seu alcance para todos os pacientes. Submetê-lo a essa escolha tem uma série de impactos, dos quais ao menos dois merecem destaque.

Primeiro, o fato de que se delega para quem já se encontra numa situação de extremo estresse uma decisão que tem tudo para piorar esse quadro —o profissional de saúde é uma peça fundamental na luta contra a pandemia, e mantê-lo sadio, física e mentalmente, é uma necessidade.

Segundo, coloca nas mãos de uma só pessoa, que naturalmente é sujeita a todo tipo de subjetividade causada pelo momento em que a decisão é tomada (a família dos pacientes, a empatia com as pessoas, quão deteriorada se encontra a saúde de cada um etc.), a decisão sobre a vida ou morte de outros seres humanos.

A ideia do uso de algoritmos que substituam o profissional de saúde nessa tomada de decisão surge em resposta a esses dois problemas. Apesar de existir um debate amplo a respeito dos vieses de algoritmos, de seus usos potencialmente discriminatórios e dos perigos que podem representar se não corretamente desenhados e aplicados, seu uso para gerenciamento de leitos de UTI demonstra com precisão porque essas ferramentas podem ser valiosas.

Como destacou Daniel Forte, presidente do comitê de bioética do Hospital Sírio-Libanês, o algoritmo que se cogita utilizar pretende se afastar das alegações de obscuridade e enviesamento, na medida em que utiliza critérios definidos pelo Conselho Federal de Medicina e pela Associação Brasileira de Medicina Intensiva para classificação de pacientes em graus de prioridade.

Além disso, trabalha com dados padronizados para atingir seus resultados —por exemplo, a existência de comorbidades, a idade dos pacientes, entre outros. Ou seja, o objetivo último da ferramenta é tirar das mãos do profissional de saúde a subjetividade da tomada de decisão, eliminando riscos discriminatórios. Em outras palavras, garantir que a decisão seja de fato inteiramente dependente das chances de sobrevivência da pessoa.

Essa discussão revela ainda uma segunda camada de complexidade. Na medida em que simplesmente não é uma opção oferecer tratamento a todos, é preciso definir um critério para decidir quem será contemplado com os cuidados médicos. Daniel Wang e Marcos de Lucca-Silveira destacaram na Ilustríssima que esse debate é fundamental.

Afinal, se tais critérios não existirem, de nada adianta desenvolver um algoritmo para padronizar a tomada de decisão. Como dito, o mecanismo que se cogita no Brasil, seguindo os protocolos médicos internacionais, é aquele que privilegia os pacientes com maior chance de sobrevivência e de qualidade de vida pós-tratamento, mas não é inteiramente pacífico que esse deveria ser o critério utilizado.

O jornal The New York Times tratou recentemente da discussão e destacou que os protocolos médicos e bioéticos adotados nos Estados Unidos trabalham fundamentalmente com princípios utilitaristas. Em outras palavras, a ideia desses protocolos é sempre maximizar o bem-estar geral, direcionando recursos para aqueles com maiores chances de sobrevivência. Pessoas mais jovens saem na frente de idosos, aqueles que não têm condições médicas pré-existentes recebem cuidado antes dos demais, pessoas sem formação médica são preteridas em relação a profissionais de saúde.

Concordando com essa visão, o ex-diretor do CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) americano Tom Frieden afirmou que o essencial em qualquer tomada de decisão sobre gerenciamento de leitos é que os princípios utilizados sejam transparentes, salvem o máximo de vidas possível, e garantam que critérios como dinheiro, raça, etnia, ou favores políticos não sejam levados em consideração.

Na mesma semana, Roger Severino, diretor de direitos civis do departamento federal de saúde dos EUA apontou para problemas nesse raciocínio, afirmando especificamente que o sistema estadunidense protege a dignidade humana de todos contra esse tipo de visão utilitarista. Ele destacou que “em última análise, a questão sobre alocação de recursos não é científica ou médica, mas moral e jurídica”.

Há duas grandes discussões a serem travadas aqui. A primeira é que é preciso ter clareza sobre qual o critério de tomada de decisão que se quer utilizar, para então verificar se algoritmos são adequados para aplicá-los. Essas ferramentas trabalham muito bem com parâmetros objetivos —e, portanto, podem ser de grande auxílio se pensarmos em um raciocínio utilitarista— mas são inadequadas para realizar qualquer juízo de valor moral e funcionariam de forma inadequada nesse contexto.

Por mais avançada que seja a inteligência artificial, o fato é que hoje um algoritmo é fundamentalmente um mecanismo capaz de prever resultados por meio de correlações estatísticas. Ou seja, ele identifica e reproduz padrões de forma extremamente eficiente, inclusive porque consegue processar as informações muito rapidamente e encontrar padrões que seres humanos levariam muito mais tempo para localizar.

Nada disso se confunde com o exercício prudencial que se dá quando fazemos avaliações morais complexas. Portanto, se o caminho for esse, é provável que algoritmos se mostrem inadequados para a tomada de decisão.

A segunda é que, mesmo admitindo princípios utilitaristas, não é improvável que, ao utilizar parâmetros objetivos como a existência de comorbidade, um algoritmo acabe desproporcionalmente afetando um determinado grupo racial ou étnico. Isso não ocorreria porque aquela etnia ou raça tem uma propensão maior a contrair a doença, mas meramente porque há propensão maior a que esses grupos ocupem classes sociais mais baixas, o que também leva a estados de saúde geralmente piores.

A depender das correlações feitas pelo sistema, ele pode resultar numa taxa de internação mais altas para pessoas brancas de classe alta, mesmo sem especificamente utilizar qualquer critério racial ou social para a tomada de decisão.

Independentemente da direção que se queira seguir, é fundamental destacar que uma situação em que é preciso decidir se uma ou outra pessoa ocupará um leito hospitalar já constitui, em si mesma, uma violação de direitos. Não se trata de debater se direitos serão violados, mas sim quais direitos, e de quem.

Além disso, é igualmente importante entender que, se uma decisão como essa se fizer necessária, delegá-la a um profissional de saúde ao invés de a um algoritmo —desde que esse algoritmo funcione dentro de parâmetros médicos bem definidos, como já destacado— não garante maior justidade ou resultados fundamentalmente melhores.

A intenção de fazer uso de um sistema transparente, que trabalhe com critérios bem definidos e previamente debatidos, é precisamente permitir um debate mais amplo e profundo sobre tais critérios, por um grupo de profissionais variado (médicos, bioéticos, juristas, estatísticos, filósofos, entre outros) e retirar o ônus da avaliação de situações concretas da pessoa que atende os pacientes na ponta.

Trata-se de dividir a responsabilidade de Sofia com toda a sociedade, e entender que qualquer escolha que se tome irá, sempre e necessariamente, colocar em maior risco a vida de uma pessoa específica. É mais uma das muitas tragédias trazidas pela pandemia.


Marcela Mattiuzzo é advogada, mestre em direito constitucional pela USP e sócia de VMCA Advogados.

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