Em conto inédito, Sérgio Sant'Anna narra as memórias de uma trave de futebol

Autor descreve um treino do Fluminense em 1955

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Sérgio Sant’Anna

[RESUMO] Neste conto inédito, o escritor Sérgio Sant’Anna, que morreu no domingo (10), aos 78 anos, narra um treino do Fluminense, em 1955, da perspectiva de uma velha e melancólica trave de gol do clube. O autor, em sua adolescência, acompanhava todos os jogos e até alguns treinos do tricolor carioca.

Das memórias de uma trave de futebol em 1955

Para assistir a treinos só vêm mesmo os fanáticos, alguns sócios, a garotada matando aula, alguns desocupados daqui de Laranjeiras. Meu posto é privilegiado, não só pela posição que ocupo no gramado, como pelo fato de estar defendendo a baliza defendida pelo Castilho, o maior goleiro do Brasil. Isso nem se discute. Mas o Fluminense está tão bem de goleiros, que o titular e o reserva, Castilho e Veludo, foram convocados para a seleção na Copa de 54. Castilho treina entre os reservas, para ser mais exigido pelo ataque titular. Nada menos que Telê, Didi, Valdo, Átis e Escurinho. Mas Didi é meia armador e um exímio cobrador de faltas, que bate com sua famosa folha seca.

A folha seca é assim: a bola vem pelo alto, mas perto do gol, perto de mim, de repente perde a força e cai, tantas vezes na rede. Didi acaba de bater uma falta dessas, só que a bola bateu na trave, eu, bem no ângulo. Não sei se devo sentir orgulho ou decepção, acho que ambas as coisas. Pois a cobrança foi perfeita, uma obra-prima, que assisti do meu posto privilegiado, mas ao mesmo tempo me sinto defendendo o gol do Castilho, meu irmão quase, eu diria. Mas Didi sorriu para dentro, com seu jeito discreto, pois foi bonito e engraçado. Pode isso? Pode.

Os jogadores Vavá, Mauro Ramos de Oliveira e o goleiro Castilho (deitado) durante o jogo amistoso entre a seleção paulista contra a seleção carioca, no Estádio do Pacaembu, em São Paulo (SP), em 1959. A Seleção Carioca venceu por 1 a 0
Os jogadores Vavá, Mauro Ramos de Oliveira e o goleiro Castilho (deitado) durante o jogo amistoso entre a seleção paulista contra a seleção carioca, no Estádio do Pacaembu, em São Paulo (SP), em 1959. A Seleção Carioca venceu por 1 a 0 - Acervo UH/Folhapress

Mas outras bolas entraram, a primeira delas do Telê, que recebeu um passe do Didi, na ponta direita, e emendou de primeira, com efeito, à meia altura, uma pintura de gol, até aplaudido pelos poucos assistentes. As palmas num estádio vazio ecoam diferentes, um pouco melancólicas, pois um gol desses devia ter sido feito no clássico de domingo, no Maracanã, contra o Flamengo.

Ou a melancolia estará em mim?, pois sei que é chegado o meu fim, até madeira empena sob o sol, de vez em quando é preciso trocar as traves. Já vieram aqui e me examinaram, umas três vezes, como se fossem médicos. “É, tem de trocar”, um dos funcionários do clube disse. E debochou: “Pode até dar cupim”. O Fluminense é conhecido por sua organização e vai trocar logo. Enquanto isso, cumpro a minha obrigação. Quando a bola bate em mim, depois de um bom chute, como a folha seca do Didi, sinto quase como mérito meu. Mas bolas entram e tudo bem, é também parte do meu jogo particular.

E é meio foda, do outro lado está o grande centroavante Waldo, artilheiro do time e do campeonato. Hoje já marcou dois, um deles um de seus famosos gols espíritas, marcado com as costas, depois de um centro perfeito do Telê. E olha que não foi falha do Castilho, nenhum goleiro poderia prever que, no meio da área, entre os zagueiros, o Waldo encontrasse um jeito de arrematar com as costas. O outro gol foi normal, ele fez uma tabelinha com o Átis, entrou na área e, frente à frente com o Castilho, tocou no canto e marcou.

O jogador Didi, autor do primeiro gol no estádio do Maracanã, em 1950
O jogador Didi, autor do primeiro gol no estádio do Maracanã, em 1950 - A Gazeta Esportiva

O Átis é um grande cabeceador. Sobe mais do que todo mundo e testa a bola no ângulo e com força. Hoje deu duas cabeçadas assim, mas o Castilho buscou. Uma das coisas legais do Átis é que ele é um grande gozador, brinca com tudo e com todos. Mas às vezes isso enfurece a torcida, quando o time está perdendo ou empatando com um clube pequeno, aqui nas Laranjeiras mesmo. Uma vez saiu de campo até vaiado e riu assim mesmo. Dizem que não liga muito para o azar porque vem de uma família rica de São Paulo e não precisa do futebol profissional. Hoje ele riu também, e os poucos que estavam no estádio aplaudiram, tanto as suas cabeçadas com grande estilo e as defesas do Castilho idem. Também o Robson, do time reserva, baixinho mas grande jogador, tem um senso de humor impressionante, e um outro jogador nosso o chamou, numa entrevista, de uma piada ambulante. Mas joga sério e é um grande driblador, se não fosse o Didi no time seria o titular. Enquanto a característica do Didi é fazer a bola correr, a do Robson é sair catando os adversários. Muito estimado pela torcida.

Já o Duque, zagueiro-central reserva, dotado de algumas qualidades, não gosta de perder nem em treino e às vezes entra no time titular, substituindo o Pinheiro, também da seleção. Aqui mesmo, hoje, fez um gol contra na minha baliza, mas um gol contra normal, pois foi cortar um centro rasteiro e a bola deslocou, enganou, o Castilho e entrou. O nosso goleiro teve de consolar o Duque, que estava quase chorando, isso num reles treino.

Castilho é um grande profissional, ama tanto a profissão que fez com que lhe amputassem um dedo da mão esquerda, que vivia inflamando. E ali no tricolor ele não podia dar sopa, com a sombra do Veludo. A amputação foi um ato heroico para a torcida tricolor, que idolatra o nosso goleiro.

Mas nem todos são craques consumados, há o Escurinho na ponta-esquerda, dotado de uma velocidade impressionante, foi comprado do Vila Nova, de Minas, por causa disso, mas que muitas vezes centra alto demais e a bola não chega nem perto de mim e muito menos do Castilho. E às vezes é capaz de sair pela linha de fundo com bola e tudo. Mas, com sua velocidade, puxa contra-ataques de uma rapidez impressionante, que não raro terminam em gol nosso e às vezes dele mesmo. Titular indiscutível.

Voltando ao time reserva, que hoje defendo, há outros jogadores muito bons, pois o Fluminense atravessa uma boa fase. Tem gente que aposta nele para ser campeão, embora o Flamengo esteja buscando o tetra, com jogadores do quilate de um Rubens, um Evaristo, um Zagalo. Fico sabendo deles pelos comentários dos que passam aqui perto do gol, pois time grande só enfrenta o tricolor no Maracanã. Entre esses nossos reservas há jogadores tão bons como o Emilson Peçanha, apoiador, um negro bonito, do sul, cheio de categoria, que forma uma dupla com o Ramiro, santista, outro craque.

Mas Zezé Moreira, o nosso técnico, é conhecido por sua obsessão defensiva. No seu entender é uma “marcação por zona”. Mas no pensamento de muitos é ferrolho mesmo. E a torcida arranca os cabelos quando o Fluminense marca um gol num clássico e recua todo para se defender, quase matando os torcedores do coração. E o Zezé não está nada satisfeito com a gente hoje, pois já levamos quatro gols, o último do Didi que, como se quisesse ir à forra da falta que bateu em mim, quer dizer, na trave, chutou de efeito da entrada da área e encobriu o Castilho, marcando o quinto gol.

O técnico Zezé Moreira dirige o time do Fluminense, em março de 1952
O técnico Zezé Moreira dirige o time do Fluminense, em março de 1952 - Folhapress

O Castilho foi então substituído, não por que tivesse tido culpa nesses gols, mas porque Seu Zezé, por psicologia, pelo menos eu penso assim, queria poupar o goleiro da seleção de uma goleada homérica. Castilho deixou o campo e, para defender a baliza do outro lado, entrou o Jairo, terceiro goleiro, mas também muito bom. O Fluminense é uma fábrica de goleiros, se diz.

Mas quem veio defender a nossa trave foi o Veludo que, como já disse, é o segundo goleiro do Flu e da seleção. Tem gente que acha até que ele devia ser o titular. Mas eu tenho uma relação de afeto com o Castilho, que saiu do juvenil do Olaria e veio para cá novinho e foi logo ganhando a posição, para não sair mais, entrando no lugar do Adalberto, um guarda-metas apenas mediano. Veludo é negro e, não sei se por isso, o pessoal, a princípio, o encarou com desconfiança. Tem uns que dizem que goleiro negro não se cria. De fato, há poucos goleiros negros no futebol brasileiro, mas Veludo é uma bela exceção, tanto é que na última Copa, em 54, depois que o Castilho levou quatro gols dos húngaros, nenhum por culpa dele, apesar de o Castilho estar nervoso, muito gente disse que se o Veludo tivesse sido o goleiro, ouvi, a história do jogo teria sido outra. Pode ser, mas todo mundo sabe, até eu, que os húngaros são a melhor seleção do mundo, atualmente. Tudo pode ser. Mas o certo é que, ultimamente, seu Zezé vem revezando os dois no time titular.

E seu Zezé então põe o Veludo para jogar a última meia-hora do treino de uma hora. E o Veludo está jogando tão bem que parece justificar aquela opinião. Pegou um tirambaço do Telê, mais uma cabeçada no ângulo, do Átis, um arremate frente à frente do Valdo e uma porrada, apesar de meio torta, do Escurinho. Tudo de tirar o chapéu.

Até que aconteceu aquele golaço do Clóvis. O Clóvis é centromédio, mas chega muito bem na área adversária. E chegou na minha. Houve um centro do Telê, sempre ele, o magrinho, sobre a área. O Clóvis matou a bola no peito, e em vez dez pô-la no chão para arrematar, encobriu o Veludo com o peito mesmo, e pegando a pelota ainda com o peito, quase na linha da meta, entrou com bola e tudo no gol, entrou em mim, e, confesso, fiquei feliz com aquele lance magistral.

O problema é que o treino logo terminou. É complicado isso, quando um espetáculo termina, mesmo que um simples ensaio. Mas havia as estrelas principais, os coadjuvantes, figurantes, espectadores. Todos, no gramado e na assistência, vão conversando enquanto saem. Comentam entre si o que assistiram, alguns, os torcedores mais fanáticos, até empolgados. Mas aí, aos poucos, já começam a falar do espetáculo principal de domingo, o Fla-Flu. Como eu gostaria de estar lá para participar ou ver. Mas, pior do que isso, é que em breve meu tempo terá passado.

Ainda vejo um pôr do sol, meio cortado, porque a geral no piso superior, do outro lado do campo, só me dá a visão até um ponto. Mas o crepúsculo, embora essa palavra me cause arrepios, é sempre bonito. Bonito e triste. Para piorar, volto a lembrar daquele cara que veio me ver, ver as traves, em que deu dois chutinhos, e depois disse aquele negócio de dar cupim. Mas isso acontece com todos o seres, animados ou inanimados, me deu vontade de responder, se conseguisse. E a noite logo vai cair. A noite também é bonita, mas seria muito mais se fosse dia de jogo, o estádio iluminado. Mas não. Para mim, em breve, será só escuridão.


Sérgio Sant'Anna, escritor, é autor do romance "Crime Delicado" e das coletâneas de contos "O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro", "O Monstro" e "O Homem-mulher", entre outros.

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