Descrição de chapéu Coronavírus Governo Trump

Trump se comporta como filósofo da morte durante a pandemia, diz escritor chileno

Para Ariel Dorfman, resposta dos EUA ao coronavírus é resultado de desdém pela ciência e aumenta número de vítimas

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Ariel Dorfman

[RESUMO] Crítico contumaz do obscurantismo que cerca o presidente americano, autor, que é professor nos EUA, afirma ter se surpreendido ao se deparar com a estupidez das medidas de Trump contra o coronavírus. Defesa do presidente de uso de hidroxicloroquina é a a última cena de farsa trágica, diz.

“Abaixo a inteligência! Viva a morte!”

Essas palavras infames foram pronunciadas por Millán Astray, general fascista, mentor e amigo de Francisco Franco na Universidade de Salamanca em 1936 para brindar a rebelião contra a República que resultaria em quatro décadas de ditadura.

Recordei esse hino à barbárie em outubro de 2017, quando comecei a tomar nota das maneiras que Donald Trump, já nos primeiros dez meses intermináveis de seu governo, estava travando uma guerra preocupante contra a ciência e a verdade. Em um artigo publicado na Folha, chamei a atenção para as “consequências letais” que essa ofensiva teria.

Donald Trump com bandeira e símbolo da Casa Branca ao fundo aponta para um repórter
Donald Trump em entrevista coletiva na Casa Branca - Mandel Ngan - 22.abr.2020/AFP

O que me preocupava naquele momento era o ataque frontal de Trump às leis ambientais e trabalhistas, os atos imprudentes que dilaceraram os organismos consultivos, com a demissão de especialistas a torto e a direito, os cortes orçamentários da pesquisa científica, os ataques às vacinas e ao sistema de saúde e a obtusa negação da existência da mudança climática.

Apesar de ter apontado que o gabinete de Trump estava cheio de “obscurantistas visceralmente hostis ao conhecimento científico”, não pude prever plenamente o horror que o futuro nos traria quando, em decorrência de uma pandemia que se alimenta da estupidez e da ganância, esse presidente mal-informado e mentiroso se tornaria um verdadeiro servo da morte, alguém cujas intervenções estúpidas aumentaram exponencialmente o número de vítimas.

Os comentaristas vêm focando suas críticas na confusão e no caos que esse agente maligno cria e na enxurrada de informação falsa que flui diariamente da sua boca. Surgiram revelações de que, ainda em janeiro deste ano, ele foi avisado em várias oportunidades que era urgente traçar um plano para combater a epidemia, mas nenhum preparativo foi concretizado. Ainda mais escandalosamente, ficamos sabendo que no início de 2018 os auxiliares de Trump desmantelaram o órgão e a equipe encarregados de lidar precisamente com esse tipo de doença desastrosa —e, como gota d’água final, demitiram seus membros mais experientes.

A última cena dessa farsa trágica e repleta de caprichos e egocentrismo é a exigência insistente de Trump de uso da hidroxicloroquina no combate da Covid-19. Apesar de esse remédio contra a malária não ter sido suficientemente avaliado em laboratório para investigar sua viabilidade ou seus sérios e nocivos efeitos colaterais, Trump o alardeia como se fosse um remédio milagroso, em um eco de sua atitude quando, há pouco tempo, anunciou que “um dia, como um milagre, o vírus vai desaparecer”.

O pensamento mágico tem lugar na religião, na literatura e entre o público que assiste a espetáculos em que se tiram coelhos de chapéus, mas não o queremos em centros cirúrgicos nem em atividades médicas profissionais. “O que temos a perder?”, Trump reiterou recentemente em uma de suas intermináveis entrevistas coletivas. Ele não se importa que muitas pessoas possam morrer devido ao uso de um remédio inútil ou que se desperdicem recursos, dinheiro e tempo, criando esperanças fantasiosas.

Essas críticas ao seu comportamento, por mais válidas que sejam, não devem nos levar a fechar os olhos para algo mais fundamental: a resposta incoerente e infame a esta emergência, longe de ser acidental, é resultado de um desdém sistemático pela ciência, uma altivez imbecil que remonta ao início da gestão Trump e está profundamente arraigada no seu DNA anti-intelectual e no de seus seguidores.

Se por volta de outubro de 2017 Trump parecia um discípulo remoto, embora involuntário, do general fascista que gritou “viva a morte!” quando a democracia estava a ponto de sucumbir na Espanha, hoje eu o vejo como uma figura mais aterrorizadora: a personificação de um dos cavaleiros do Apocalipse, aquele que monta o cavalo branco da peste.

Ainda assim, não abro mão da esperança de que saberemos derrotar essa praga.

A mesma ciência que Trump ridiculariza e ignora por capricho segue em seu avanço lento, progredindo passo a passo, de forma rigorosa e ponderada, proponto modelos e soluções que lembram as grandes vitórias humanas em nossa luta constante contra a morte. O que vai nos permitir sair desta crise e das que ainda estão por vir é a dádiva da nossa razão e a luz do nosso conhecimento e, com certeza, a constância da solidariedade e da cooperação que, apesar do desvario criminoso de Trump, sempre caracterizaram nossa espécie.

É claro que, quando sairmos dessa catástrofe, não há dúvida de que Trump vai se gabar de que foram sua genialidade e sua antecipação que salvaram os Estados Unidos e também, como se fosse pouco, a humanidade inteira.

Sem dúvida, 2020 será lembrado como o ano de uma peste que mudou todos os parâmetros. Resta ver se também ficará para a história como o ano em que o assistente da morte que habita a Casa Branca finalmente foi julgado e derrotado pelo povo americano. Resta ver se a grande maioria de seus compatriotas conseguirá desenvolver os anticorpos que extingam de uma vez por todas a epidemia de seu reinado ignorante.


Ariel Dorfman, escritor chileno, é professor emérito de literatura da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA). Autor de "A Morte e a Donzela" e do romance "Allegro", entre outros livros.

Tradução de Clara Allain.

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