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Amazônia vive pandemia de destruição com Covid-19 e ofensiva de Bolsonaro

Série de medidas do governo ataca meio ambiente e põe em risco povos indígenas, dizem autores

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Marcos Colón Luís de Camões Lima Boaventura Erik Jennings

[RESUMO] Autores argumentam que a aceleração do desmatamento e da degradação ambiental da Amazônia —potencializados por sucessivos golpes do governo Bolsonaro na política de proteção ao meio ambiente— tem relação direta com as condições precárias de saúde pública da região, que amplificam a letalidade de doenças como a Covid-19.

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), pandemia é a expressão utilizada para descrever uma patologia que se espalha por diversas partes do planeta de modo simultâneo e acelerado. O mesmo vocábulo pode ser empregado para definirmos a sanha virulenta que o agronegócio de larga escala impõe aos biomas.

Em menos de um mês, o mundo assistiu apreensivo ao Brasil mais que quintuplicar o número de mortes por Covid-19. No mesmo período, foram aplicados no mínimo cinco duros golpes na política de proteção ambiental do país.

Em 22 de abril, exatos 520 anos depois da eclosão do maior genocídio da história do Brasil, o tal “descobrimento”, a Funai (Fundação Nacional do Índio), órgão incumbido de promover a defesa dos direitos dos povos originários e assegurar a higidez dos territórios ocupados por esses grupos, publicou a instrução normativa nº 09, que determina a exclusão de todas as terras indígenas que não estejam no último estágio de reconhecimento estatal da base de dados do Sistema de Gestão Fundiária nacional.

Na prática, essa IN desprotege a larga maioria das terras indígenas, inclusive aquelas há longos anos em processos de reivindicação e as que são ocupadas por grupos em isolamento voluntário. Na prática, essa IN valida detenções e títulos de propriedades particulares nulos segundo a Constituição, bem como incentiva a ocupação não indígena nesses territórios. E aqui cabe um crucial registro: terras indígenas são as áreas com os menores índices de degradação ambiental do país.

Logo em 30 de abril, dois dos principais responsáveis pela fiscalização do Ibama foram sumariamente exonerados de seus cargos. Tudo aponta que esses afastamentos configuram represália ao trabalho que vinham desenvolvendo à frente da sensível missão de investigar e combater complexas e grandiosas atividades de depredação dos recursos naturais.

Os desligamentos ocorreram logo em seguida a uma grande operação de combate ao garimpo ilegal na Amazônia e após a equipe, coordenada pelos dois servidores públicos, ter conseguido zerar, em 2020, o desmatamento na terra indígena Ituna-Itatá, até então líder do ranking. Chegaram a esse feito mesmo num claro cenário de fragilização da operacionalidade do órgão.

Menos de uma semana depois, a Presidência da República editou o decreto nº 10.344, por meio do qual submeteu os órgãos e entidades públicas federais de proteção ambiental ao comando das Forças Armadas. Ibama, ICMBio, Polícia Federal e Funai perdem seus poderes operacionais e passam a bater continência aos militares, que então se dotam do poder de definir os locais a serem fiscalizados e o modus operandi das ações.

O mesmo ato autoriza a GLO (Garantia da Lei e da Ordem) na Amazônia Legal entre 11 de maio de 2020 e 10 de junho. Tal GLO deve custar cerca de R$ 60 milhões. O orçamento deste ano todo do Ibama para a fiscalização ambiental é de R$ 74 milhões, ou seja, mais de 80% dos recursos disponíveis no ano será utilizado.

Até a presente data, não se tem notícia de que nenhum maquinário usado nas atividades ilícitas foi destruído. É importante lembrar que a destruição de retroescavadeiras, tratores de esteira e outras máquinas, que custam em média R$ 500 mil, é providência indispensável e legal para o sucesso das ações de fiscalização e vinha sendo efetuada sobretudo pelo Ibama, para dissabor dos detratores, muitos deles em importantes assentos dos poderes constituídos.

Em 12 de maio foi agravada a precarização do já debilitado ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão responsável pela gestão e fiscalização das unidades de conservação federais, que são áreas de alta relevância ambiental. Por meio de portaria, foram extintas as 11 coordenações regionais e, em seu lugar, criaram-se apenas cinco gerências regionais em todo o país, quatro delas situadas em cidades distantes dos espaços em formal proteção.

Na Amazônia eram cinco coordenações regionais. Agora há apenas uma gerência regional para todo o bioma, que contém cerca de 130 unidades de conservação. A maioria dos nomeados para as gerências são militares reformados, sem experiência anterior de gestão ambiental. As nomeações inflamam ainda mais a militarização do órgão, cuja presidência e os quatro cargos de direção-geral são ocupados por policiais militares paulistas. Não coincidentemente, segue vago o cargo de coordenação de fiscalização.

Tal anomalia pode ser caracterizada pela necropolítica em curso no Brasil, que encerra uma clara estratégia de aparelhamento da máquina pública, acentuando a construção autoritária de apoio e subserviência ao ponto de vista que orienta o Executivo contra os dispositivos constitucionais —um dos motivos que levaram o Instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo a rebaixar a classificação da democracia brasileira para democracia eleitoral. Esta se traduz no uso do poder social e político para determinar como as instituições atuam, como algumas pessoas podem viver e como algumas devem morrer.

A ira, contudo, não se satisfez em investir contra a fiscalização das atividades ilícitas. A mais recente agressão recai sobre o desmatamento “autorizável”. Estamos falando do decreto nº 10.347, publicado em 14 de maio, que excluiu, de modo contrário à expressa previsão na lei que regula a gestão das florestas públicas, o corpo técnico do Ministério do Meio Ambiente do processo de definição das áreas e quantitativos a serem passíveis de exploração de produtos florestais. O decreto está com sua legalidade questionada na Justiça, por meio de uma ação popular em Belém.

A partir desse decreto, a definição e a aprovação do Plano Anual de Outorga Florestal é atribuição exclusiva do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), pasta cuja função precípua é a expansão da fronteira agropecuária. Para se ter uma noção da dimensão do estrago dessa medida, o PAOF 2020 prevê 7,750 milhões de hectares de floresta pública federal passíveis de concessão. Isso representa uma área superior a 50 vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Isso representa uma área superior a oito vezes o desmatamento a corte raso detectado e consolidado pelos satélites entre agosto de 2018 e julho de 2019, que bateu o recorde de uma década.

A bem da verdade, as concessões florestais autorizam cortes seletivos de madeira, fato que, a princípio, reduziria, em tese, o impacto das comparações acima. No entanto, quem conhece um pouco a dinâmica dos planos de manejo sabe que a realidade é mais preocupante. Quase sempre a extração alcança todas as espécies florestais de algum valor de mercado, não se obedecendo os ciclos de corte. Quase sempre também esses planos são fictícios, servem para acobertar saqueamento de madeira existente em terras indígenas e áreas especialmente protegidas.

Não bastasse tudo isso, cabe aqui a pergunta: por que um ministério que tem por finalidade promover atividades rurais que usualmente demandam extensas áreas abertas, como a agricultura e a pecuária, quer monopolizar o destino das florestas públicas, ainda que, em tese, elas venham a ser exploradas por meio de cortes seletivos? Em 2020 foram quase 8 milhões de hectares. De 2021 em diante, nada assegura que esse número não subirá expressivamente.

A conjuntura é assustadora. A soma de desmatamento ilícito batendo recordes sucessivos e desmatamento autorizado por quem, por ofício, deseja a abertura de novas áreas compõe uma receita de resultados catastróficos.

Torna-se imprescindível rememorar que a supressão de floresta guarda relação estreita com o surgimento e o agravamento de patologias. Como bem ressalta Carlos Nobre: "A Amazônia tem a maior quantidade de microorganismos do mundo. E estamos perturbando o sistema o tempo todo, com populações urbanas se aproximando, desmatamento e comércio de animais silvestres". Nesse cenário distópico, o homem amazônico, hoje, encontra-se em maior perigo que a própria floresta diante do quadro de vulnerabilidades, perdas e desordens biológicas.

Perde-se, também, um valioso sistema de proteção à saúde não só dos povos que vivem mais próximos à floresta como toda a sociedade nacional. A floresta presta um serviço de saúde de valor inestimável quando é fonte de água de qualidade, segurança alimentar e equilíbrio climático. O desmatamento e outras formas de degradação ambiental constituem causa direta do surgimento de várias doenças com grande impacto social, tanto local quanto global.

A supressão de cobertura vegetal na Amazônia transforma o PH ácido da floresta não degradada em PH próximo ao neutro, criando condições favoráveis para a proliferação do mosquito Anopheles, vetor da malária. O acelerado desmatamento que se iniciou na Amazônia no final dos anos 1970 trouxe consigo um aumento proporcional dos casos de malária, chegando ao pico em 1999, quando se registraram 632 mil casos da doença.

Após 2005, os casos de malária se reduziram, graças a um conjunto de medidas de diagnóstico e tratamento, chegando a 130 mil casos em 2016. Infelizmente, nos últimos dois anos, o número de casos de malária volta a crescer em mais de 50%, de forma muito parecida com a intensificação do desmatamento na mesma época.

Em 2016 o Amazonas foi o estado com a maior incidência de tuberculose do país, registrando 67,2 casos a cada 100 mil habitantes. Isso constitui o dobro da média nacional, que foi de 32,4 casos. A trágica ironia é a permanência do estado no primeiro lugar do ranking nacional da incidência do bacilo de Koch.

A pobreza, a desigualdade e as precárias condições sanitárias da maioria das cidades da Amazônia, decorrentes desse modelo de desenvolvimento predatório, proporcionaram condições adequadas para a proliferação de doenças como dengue, chikungunya e zika, que eram mais frequentes em outras regiões do Brasil. Atualmente, a Amazônia é responsável por 95% dos casos de doença de Chagas no Brasil.

Esse fino equilíbrio entre meio ambiente e sociedade quando quebrado causa o surgimento de novas doenças e o reaparecimento de antigas mazelas. Não por acaso, as cinco cidades com maiores taxa de letalidade da Covid-19 estão localizadas na Amazônia (Tabatinga, Manacapuru, Autazes, Coari e Iranduba) —exatamente aquelas com maiores desigualdades causadas por práticas de desequilíbrio entre homem e meio ambiente. O que afirmamos não é uma relação de causa e efeito, mas a constatação de uma fragilidade sócioeconômica e estrutural dos serviços de saúde que incidem na alta letalidade dessas comunidades.

A mesma velocidade no aumento galopante dos casos de tuberculose e do contágio da Covid-19 se registra onde as retroescavadeiras dos garimpos ilegais colaboram para a intoxicação mercurial de milhares de pessoas na Amazônia. E, de modo análogo, essas máquinas hoje escavam covas rasas e comuns para as vítimas da Covid-19 em Manaus.

O desmatamento e o garimpo ilegal não entram em quarentena. Não obedecem a repouso. Contrariando todas as prescrições ambientais, tal patologia destrutiva recrudesce em um momento em que os povos indígenas adoecem e se fecham dentro de seus territórios, com medo e sem condições de resistir a invasores.

No entorno, e mesmo dentro das áreas indígenas, garimpos ilegais proliferam com alta virulência e com a força de homens-regatões que arriscam suas vidas diante de um sonho de riqueza. Não é um vírus que vai intimidá-los. Peões do garimpo (homens vitimados pela ausência de políticas publicas) são também elos frágeis de uma cadeia-parasita que os expõem à mortalidade, ao mesmo tempo que fomentam a riqueza protetiva de seus patrões.

Apesar de a Covid-19 atingir indistintamente pessoas de todas as raças e classes sociais, não lesa todos de forma equânime. Vivemos, como sinaliza Achille Mbembe, em tempos caracterizados por uma “redistribuição desigual de vulnerabilidade”. Os povos indígenas apresentam maior vulnerabilidade frente a doença por razões biológicas e sócioculturais.

Justapõe-se a isso a precária situação do sistema de saúde, que apresenta os piores indicadores do país. As piores relações de leitos de UTI e médicos por habitantes estão justamente nos estados da Amazônia, onde pessoas e floresta estão sendo despojadas. Por exemplo, medicamentos e outros equipamentos médicos em uma cidade do interior do Amazonas levam em média 15 dias para serem entregues. Isso quando chegam. A Amazônia torna-se o fim do mundo para proporcionar saúde a seus habitantes, mas o começo de um mundo que busca no almoxarifado da floresta riquezas e lucros fáceis.

A Covid-19 veio expor mais ainda a ferida pustulosa e sangrante de algumas populações amazônida e de uma floresta combalida que agora recebe duros e talvez derradeiros golpes em forma de instruções normativas, decretos, planos e GLO. O legado dessas ações ainda é desconhecido. O que se pode afirmar é que essa sucessão de eventos se retroalimenta de forma crônica —a devastação ambiental leva ao surgimento de doenças, grandes baixas populacionais e torna o meio ambiente suscetível a uma incurável pandemia de destruição.

Como diz um antigo provérbio amazônico, “Deus é grande, mas a floresta é maior” —resta saber se sobrará algo dela. A Covid-19 parece ter encontrado no Brasil a comorbidade mais favorável ao seu furor letal, que é o próprio Estado brasileiro.


Marcos Colón é doutor em estudos culturais pela Universidade de Wisconsin-Madison, professor do Departamento de Línguas Modernas e Linguística da Universidade Estadual da Flórida e diretor do documentário "Beyond Fordlândia".

Luís de Camões Lima Boaventura é procurador da República e mestrando em direito pela Universidade de Brasília.

Erik Jennings é coordenador da residência médica em neurocirurgia do Hospital Regional do Baixo Amazonas (Universidade do Estado do Pará), em Santarém, médico da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e autor de “Paradô: Histórias de um Neurocirurgião do Interior da Amazônia” e "Olhando o Rio”.

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