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Apesar da crise da Covid-19, América Latina pode conter aumento da desigualdade

Economistas defendem urgência de medidas de proteção aos mais pobres para preservar avanço dos últimos 15 anos

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Mauricio De Rosa Ignacio Flores Marc Morgan

[RESUMO] Para pesquisadores do World Inequality Lab, a intensa crise econômica que se anuncia na região devido à pandemia de coronavírus ameaça romper a trajetória de redução da desigualdade dos países latino-americanos. É urgente que governos implementem políticas para frear a queda de renda dos mais pobres, argumentam.

A difusão da pandemia de Covid-19 na América Latina vem gerando uma crise sanitária, acompanhada de perto por uma crise econômica e social de envergadura. A Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe da ONU) anuncia "a pior contração da atividade econômica que a região sofreu desde o início dos registros". Cabe-nos perguntar se esta crise apagará outro episódio-chave da história econômica deste século: a redução da desigualdade na escala continental.

A América Latina ainda está entre as regiões mais desiguais do planeta, mas, ao contrário da tendência global, a concentração de renda parece ter diminuido durante os primeiros 15 anos deste século. Apesar de ser uma queda moderada, esse foi um episódio único na história econômica do continente.

Debate-se, entre historiadores econômicos, se os altos níveis de concentração econômica observados na América Latina foram uma constante desde a época colonial ou se, ao contrário, foi durante a primeira globalização, entre 1870 e 1914, que a concentração econômica disparou.

Além disso, não está claro se toda a região experimentou uma redução da desigualdade entre a Primeira Guerra Mundial e a década de 1960 ou se manteve seus níveis durante todo o século passado, período em que houve diminuição da desigualdade na grande maioria dos países desenvolvidos.

O que sabemos com maior certeza é que, desde a década de 1960, a desigualdade aumentou em toda a região. Nesse contexto, o período recente de redução da desigualdade é o único episódio de trajetória positiva nos últimos 70 anos e, potencialmente, o único evento desse tipo em mais de um século. No entanto, os grupos que tiveram melhorias em suas condições de vida durante esse processo são, por sua vez, os mais ameaçados pela crise atual.

É crucial distinguir se uma mudança distributiva se deve ao fato de que alguns ganharam o que outros perderam ou se a renda de alguns simplesmente cresceu mais rapidamente que à de outros. Pesquisas que mediram o recente declínio da desigualdade na América Latina encontraram sua causa principalmente no crescimento acelerado das rendas mais baixas.

Em outras palavras, embora a renda de todos os grupos sociais tenha crescido durante o período, a renda dos estratos mais baixos teria crescido com maior velocidade, o que pode ser observado no gráfico abaixo, que mostra como a participação dos 50% mais pobres no total da renda aumentou.

Essa hipótese é reafirmada por uma crescente literatura baseada em registros fiscais (que captam melhor os rendimentos altos que as pesquisas domiciliares). A redução da desigualdade não veio de mãos dadas com uma queda na renda dos mais ricos, mas com uma maior equiparação da renda entre os 99% de menor poder aquisitivo.

As explicações desse fenômeno ainda são discutidas, mas a implementação de políticas redistributivas (facilitadas por um boom dos preços das exportações latino-americanas), um processo de formalização dos mercados de trabalho e de crescimento do emprego e dos salários são alguns dos elementos-chave. Porém, embora a classe média da região tenha crescido, ela não deixou de ser vulnerável a choques negativos, como vários trabalhos já apontavam antes da crise.

As estimativas de retração econômica na região vão de -4,7%, nas projeções do Banco Mundial, a -5,3%, de acordo com a Cepal. Esta instituição também prevê um aumento de 3,4 pontos percentuais na taxa de desemprego e a entrada de 28,7 milhões de pessoas na pobreza.

Setores que estão paralisados, informais e trabalhadores com rendimentos baixos e instáveis são os mais desprotegidos. Inclui-se nessa lista assalariados informais, autônomos, trabalhadores sem remuneração e desempregados. Grande parte desses grupos está superrepresentada em famílias de menor renda (veja gráfico abaixo), que já eram considerados vulneráveis antes do impacto da pandemia de coronavírus —em outubro de 2019, a OCDE afirmava que 40% da população latino-americana era vulnerável.

Dessa forma, se configura um cenário em que os grupos que experimentaram um maior crescimento relativo de sua renda e lideraram a redução da desigualdade são justamente os mais expostos à crise, arriscando a destruição abrupta de 15 anos de progresso. Nesse sentido, a Cepal prevê um crescimento de 1 a 2% do índice de Gini em 2020, o que representa um aumento sem precedentes do indicador em um período tão curto. Esse, porém, não é o único resultado possível, mesmo nesse cenário adverso.

Os desafios desta crise —que associa contração de oferta (quarentena) e demanda (desemprego)— são notáveis. Além de serem necessárias medidas sanitárias, também é crucial preservar a liquidez dos canais de pagamento e evitar falências e demissões em massa. Treze países da região anunciaram pacotes fiscais, que representam entre 0,2% e 4,7% de seus PIBs, de acordo com dados oficiais, o que mostra grande diferença em termos de resposta à crise.

A América Latina não tem a mesma cobertura social, nem a mesma capacidade fiscal, que os países desenvolvidos. Ainda assim, vários países estão implementando políticas para proteger os grupos mais vulneráveis.

É inadiável ampliar a cobertura dos sistemas de proteção social e reorientar a política fiscal para distribuir melhor os custos da crise; utilizar dinheiro público novo para assegurar vínculos de trabalho e mobilizar trabalhadores desempregados para as atividades necessárias; tornar a carga tributária mais progressiva, taxando com maior incidência a renda e o patrimônio de uma das elites econômicas com maior capacidade ociosa do mundo.

Não é necessário inventar a pólvora. Essas vias são conhecidas, mas, neste contexto, se faz urgente recorrer a elas. Frear a queda de renda dos grupos mais pobres não é apenas uma necessidade ética —é a única maneira de preservar a modesta, mas histórica redução da desigualdade latino-americana. Se não apoiarmos a demanda desses grupos, que são consideráveis em volume, será muito mais difícil evitar os círculos viciosos provocados por uma demanda reprimida.

A América Latina receberá um choque muito duro em curto prazo. Não há como fugir. O aumento da desigualdade, porém, não é inevitável. Não há nada mecânico nisso. Deixar que o ajuste aconteça às custas de quem não tem como se proteger é uma decisão eminentemente política.


Mauricio De Rosa, doutorando na Escola de Economia de Paris, é pesquisador do World Inequality Lab e do Instituto de Economia da Universidade da República, no Uruguai.

Ignacio Flores, doutor em economia, é coordenador da América Latina e do Caribe do World Inequality Lab (Escola de Economia de Paris) e pesquisador na Insead.

Marc Morgan, doutor em economia, é pesquisador do World Inequality Lab (Escola de Economia de Paris).

Os autores estão trabalhando em um projeto que combina fontes de dados oficiais sobre a distribuição de renda nos países da América Latina.

Tradução de Alex de Sá.

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