Descrição de chapéu
Marilene Felinto

Com patrocínio de governadores, genocídio de negros e pobres pela polícia dispara

Brutalidade das corporações alcança novo patamar com aumento de mortes por agentes

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

[RESUMO]Violência institucional genocida das polícias tem como alvo a classe de cidadãos considerada ‘matável’ (sobretudo negros, pobres e marginalizados), resultado de processo de banalização da truculência que conta com participação ativa de governadores.

O cassetete é paulista. A bala é carioca-fluminense. A palavra cassetete é originária do francês “casse-tête” (caça cabeça, quebra-cabeça, entre outras traduções).

Também conhecido como cacete, porrete ou pau, o cassetete é fálico por natureza, é duro-mole quando se verga em curva para acertar o golpe e quando se enrijece de volta. É o absurdo da brutalidade instituída pelo macho ao macho, da violência institucional delegada ao homem de uniforme.

O cassetete paulista, de longa tradição dos governos do PSDB (desde os idos do governo Mário Covas ao João Doria de hoje), tem alvo certo: só não bate no extremista de direita, no fascista, no miliciano bolsonarista.

Em 18 de maio último, presenciei alarmada um congestionamento gigante em São Paulo, provocado por uma manifestação de caminhoneiros partidários de Bolsonaro, contrários às medidas de isolamento social tomadas pelo governador João Doria e o prefeito Bruno Covas, ambos do PSDB paulista.

Pois o protesto era observado displicentemente por meia dúzia de policiais militares recostados na mureta lateral da pista central da marginal Tietê, sem nenhum tipo de repressão, numa leseira espantosa, como se endossando a interdição daquela via vital para a circulação do trânsito da cidade e das rodovias que interliga.

Nenhum cassetete brandido, nenhuma bala de borracha disparada, nenhum sangue derramado. Meu alarme veio desse disparate: de que a Polícia Militar de São Paulo evita a truculência quando se trata de eleitores de Bolsonaro e do próprio governador do Estado —a mesma base de direita elegeu ambos os demagogos.

Não se pode esquecer que João Doria fez campanha pública vestindo camisa amarela e que votou descaradamente no atual grupo de facínoras irresponsáveis no governo federal.

Doria hoje posa de estadista democrático, fazendo oposição pública a Bolsonaro quando lhe convém. Um fake, uma mentira política, um neoliberal especulador travestido de gestor civilizado.

Mas o cassetete paulista tem alvo. Compare-se agora a ação da mesma PM em outra manifestação recente. Na manhã de 3 de março último, pouco antes do início do período de quarentena na cidade, a PM fechou dezenas de ruas nas redondezas da Assembleia Legislativa do Estado. Uma manifestação de professores protestava ali contra a reforma da Previdência estadual, que seria votada naquele dia.

No congestionamento que se formou no bairro, era possível ouvir o ruído de bombas de gás explodindo, e ver a fumaça subindo. Era a tropa de choque da PM reprimindo a cacetadas e balas de borracha a movimentação de professores que forçavam a entrada no prédio da Assembleia. No fim do dia, cenas de horror: dezenas de professoras e professores sangrando, meio cegos pelo gás de pimenta, furados de balas, o pau comendo em cima deles.

O cassetete paulista tem alvo: professores, estudantes indefesos, trabalhadores na rua lutando por direitos, além de toda a gente “matável” por princípio: negros, pobres, marginalizados, todo tipo de desviados e resistentes ao enquadramento da heteronormatividade.

Claro que o cassetete atua em escala nacional. Mata ou aleija em São Paulo, em Goiás e país afora: em maio de 2019, um jovem de 18 anos, atacado pela bordoada do cassetete de um PM, morreu em Carapicuíba (SP) ao cair da motocicleta que se desequilibrou com o golpe; em abril de 2017, um PM de Goiânia quebrou o cassetete na testa de um estudante durante manifestação de rua. Aferiu-se depois que o golpe atingiu o rapaz a mais de 108 km/h. O jovem passou 11 dias internado em UTI e mais outros tantos no hospital.

Pouco tempo depois desse episódio, o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), chefe histórico da bancada ruralista latifundiária no Congresso, outro farsante bolsonarista hoje na “oposição” quando lhe convém, promoveu o PM a major da polícia.

No Rio de Janeiro, por sua vez, a bala traça o céu do morro, a dum-dum, dum-dum, dum-dum da arma de repetição, na caçada humana, no abate de crianças, adolescentes, mulheres e homens: todos pretos, as mortes automáticas, das armas automáticas, todos moradores das favelas, das “comunidades”.

Em abril de 2019 mataram um músico negro, metralhado por mais de 80 tiros disparados por um agente do Exército contra seu carro em Guadalupe (RJ). Em setembro de 2019, foi a menina negra Ágatha Félix, de 8 anos, durante uma operação policial no Complexo do Alemão.

Em 17 de maio deste ano, foi João Pedro, também negro, 14 anos, morto por um tiro de fuzil em São Gonçalo; em 20 de maio foi João Vitor, 18 anos, negro, na Cidade de Deus. O caso mais recente até o momento em que eu redigia este texto: no dia 25 de maio, Bianca Regina Oliveira, 22 anos, negra, foi atingida por um tiro no rosto logo após acordar em sua residência na Cidade de Deus.

No Rio, portanto, o núcleo de chumbo, a violência institucional genocida, a legitimação de uma coleção de cadáveres de negros. O colecionador tem nome e endereço: no primeiro ano do governo de Wilson Witzel (PSC), policiais responderam por 37,9% das mortes violentas na capital.

Em 2019, o Rio registrou o maior número de mortes cometidas por policiais em sua história. Segundo dados oficiais do governo fluminense (e quem confia nisso?), 1.810 pessoas morreram em intervenções policiais naquele ano.

Todos os verdadeiros nomes disso, da política de segurança pública nacional, já foram dados, por estudiosos e defensores dos direitos humanos: construção de um inimigo interno negro, desumanizado e brutalizado; estratégias e práticas de neutralização, disciplinamento e extermínio das massas empobrecidas pela economia neoliberal; impunidade ao assassino de uniforme e a seu chefe no Executivo; incentivo aos altos índices de letalidade da ação policial; apartação urbana; sistema de justiça criminal discriminador de classe e raça etc.

Vera Malaguti Batista explica que, na saída da ditadura, a propaganda da guerra às drogas fez com que passássemos da resistência à truculência policial, depois para sua naturalização e, agora, ao seu aplauso.

“Esta banalização produz figuras políticas no Executivo que participam pessoalmente em operações de ‘abate’ em áreas pobres. É este o vetor fundamental do processo que denominamos de constituição do sujeito matável.”

No Rio, e na política de segurança nacional, portanto, é o fuzil com suas partes, seus pinos, seus pintos, a arma longa, de longo e ligeiro alcance —o projétil deve ter sido inventado por um macho mirando-se nu ao espelho, extasiado com sua compleição de brutamontes por dentro e por fora.

Brutamontes no Executivo do genocídio brasileiro: Ronaldo Caiado se esconde atrás do anel de doutor médico (heil, Caiado da impunidade!). Doria se esconde por trás da fachada de líder empresarial (heil, Doria do cassetete). Witzel se esconde por trás do nome de Cristo (seu partido político é o “Social Cristão”). Mas Hitler também não era cristão? Era. Do Movimento Cristão Alemão, movimento racista e antissemita. Heil, Witzel do fuzil


Marilene Felinto, escritora, publica na Folha duas vezes ao mês. marilenefelinto.com.br

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.