Descrição de chapéu
Governo Bolsonaro

Foi para isso que os militares voltaram ao poder?

Apesar de insatisfações, generais não são pelotão destacado da tragichanchada bolsonarista

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[RESUMO] Cultivada desde o início do governo, a imagem de um presidente domado por generais que se orientam por princípios racionais esconde o fato de que Bolsonaro e seus oficiais formam um único pelotão. De certa forma o Exército é o partido da ordem bolsonarista. Volta dos militares ao poder regenera um padrão histórico inaugurado já na Proclamação da República.

Vai se repetindo como tragichanchada a volta dos militares ao poder central sob a liderança do capitão que o general Ernesto Geisel definiu como “mau militar”, depois de enxotado do Exército por insubordinação no final da década de 1980. Jair Bolsonaro, aquele tipo que fardados de sua época chamariam de “espiroqueta”, vem submetendo os estratos estrelados do Exército a sucessivos constrangimentos, não apenas de ordem pessoal, mas também institucional e política.

É preciso, porém, resistir à ideia ingênua de que os generais embarcados no projeto eleitoral bolsonarista, ora em altos postos da República, constituem um destacamento à parte, separado do presidente da República, por eles monitorado em nome de princípios de racionalidade democrática e técnica.

A imagem de um personagem inconsequente e despreparado domado como um drone rebelde pelos controles do generalato foi cultivada desde o início do governo, mas não parece consistente o suficiente para obstruir a evidência de que se trata, desde a campanha, de um único pelotão —de certa forma, o verdadeiro partido da ordem bolsonarista é o Exército.

Jair Bolsonaro e Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional - Adriano Machado - 11.fev.2020/Reuters

Não há dúvida de que tudo é perpassado por contradições, divergências, nuances, mas na hora da ação a tendência é prevalecer o “esprit de corps” e o plano de retomada das rédeas da nação para assegurar os objetivos permanentes —a começar pelo controle da Amazônia (sempre ameaçada “pelo estrangeiro”), passando pelo aparelhamento das Forças e pela contenção do esquerdismo e da corrupção política.

Depois de um raro interregno, em que parecia se ajustar a novo papel, o retorno da caserna às lides políticas nos últimos anos é, na realidade, a regeneração de um padrão histórico que tem início já no ato inaugural da República —um golpe militar, ao qual se seguiram dois presidentes marechais, Deodoro e Florano Peixoto.

Até a década de 1930, quando patrocinaram rebeliões e tiveram mais um representante na Presidência, Hermes da Fonseca, os militares mantiveram-se ativos na política. Promoveram e continuaram a atuar no período getulista; a seguir depuseram o ditador civil e, no pós-guerra, Eurico Gaspar Dutra representou mais uma vez a corporação ao poder.

Após breve intervalo democrático, pontuado por escaramuças, pressões golpistas e candidaturas frustradas, a deposição de João Goulart sob o manto da Guerra Fria instaurou, com o golpe aliado a civis, a ainda pulsante ditadura, que Bolsonaro e seus companheiros de jornada tanto prezam e desejam, ao que parece, em outras bases restaurar.

Relegados provisoriamente a segundo plano na redemocratização, os militares mantiveram-se como garantidores da ordem, prerrogativa legal que serviu para, aos poucos, trazer o Exército de volta à cena, o que se viu nos últimos anos em sucessivas GLOs (Operações de Garantia da Lei e da Ordem), que culminam com a intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro, sob o governo Temer. À época —e isso faz pouco tempo— oficiais foram conduzidos a cargos estratégicos e assistiu-se a uma série de manifestações políticas, algumas francamente ameaçadoras, de generais da reserva e da ativa.

Pode-se argumentar com certa pertinência que não estamos mais em tempos de tanques na rua e cerco armado ao Congresso e ao STF, mas são constantes —e às claras— as investidas contra o escopo democrático, num momento ainda marcado por grave crise da política e exasperante polarização.

É incerto se a aventura de Bolsonaro contará com apoio incondicional e duradouro de seus generais de pijama e comandantes da ativa. Há relatos de divergências, cisões, insatisfações. Não se pode desconsiderar a arraigada tradição golpista, que, acochambrada a padrões democráticos, poderá levar o capitão à prancha e empurrá-lo para os tubarões.

Certo é que o governo civil-militar de Bolsonaro, que alojou na máquina pública quantidade espantosa e injustificável de quadros egressos das Forças Armadas, vai saindo pela culatra, em meio a desatinos que se acentuam com a pandemia da Covid-19. São tempos de incerteza, que põem em risco a democracia e a perspectiva de desenvolvimento econômico e social do país —esta já embaçada desde a adesão de setores da elite a devaneios insensatos, cujas piores consequências estão sendo colhidas.


Marcos Augusto Gonçalves é editor da Ilustríssima e editorialista da Folha.

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