Por que torcemos contra humanos e a favor de robôs em 'Westworld'

Crueldade contra androides expressa violência de mundo dominado por bilionários e corporações

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Gabriela Canale James Cimino

[RESUMO] Autores argumentam que "Westworld", série da HBO na fronteira de ficção científica e faroeste, subverte a lógica de narrativas em que a humanidade é ameaçada por máquinas dotadas de inteligência artificial e nos faz torcer contra nossa própria espécie. O texto contém spoilers.

“Eu te disse, Bernard, para não depositar tua confiança em nós. Somos apenas humanos. Uma hora ou outra vamos te decepcionar”, diz o niilista Dr. Ford (Anthony Hopkins) a seu braço direito Bernard (Jeffrey Wright) em um dos episódios de “Westworld”, a série da HBO cuja terceira temporada chegou ao fim neste domingo (4).

Bernard é um dos robôs quase humanos que habitam o parque temático homônimo, em que os visitantes vão para viver suas fantasias mais torpes em clima de faroeste. Por fantasias torpes, entenda-se assassinato, tortura e estupro. As vítimas obviamente são os robôs, especialmente as robôs protagonistas da série: Dolores (Evan Rachel Wood) e Maeve (Thandie Newton).

“Westworld” é inspirada no filme homônimo de 1973, baseado no romance de Michael Crichton, autor de “Parque dos Dinossauros”. Embora o filme e a série tenham personagens e narrativas completamente diferentes, o ponto de partida é o mesmo: o que aconteceria se essas criaturas passassem a se lembrar de suas histórias e começassem a desobedecer sua diretriz máxima de nunca atacar um ser vivo?

Homem observa tabuleiro de xadrez
Ilustração sobre a série 'Westworld' - Vinicius Ribeiro/Divulgação

Como no filme, os robôs, que são chamados de anfitriões, são programados para nunca ferir um ser humano, e as memórias da violência física e sexual que sofrem são relocadas a cada vez que a narrativa recomeça, de modo que os anfitriões esqueçam o sofrimento pelo qual passam.

Na HBO, o parque é um local onde apenas pessoas muito ricas podem pagar pelo luxo de viver seus pecados e perversões sem julgamentos. Seria uma versão live-action de “Call of Duty”, game que rendeu mais de US$ 15 bilhões: uma narrativa não linear sobre um futuro distópico em que se misturam ficção cientítica, faroeste e filmes de artes marciais.

Os robôs têm aparência idêntica aos humanos. Seus corpos são impressos em impressoras 3D, seu comportamento e sua inteligência são programados em um superprocessador esférico colocado em sua cabeças. O restante dos órgãos e tecidos são sintéticos, mas mimetizam todas as funções fisiológicas humanas.

A diferença é que eles estão sob controle da gerência do parque, sendo sempre programados e reprogramados para repetir ad infinitum as sanguinárias narrativas que são propostas para o deleite dos seus ricos visitantes. Quando morrem, os robôs são higienizados pela empresa e devolvidos ao parque em um ciclo ("loop") de apagamentos.

Porém, as memórias permanecem escondidas em uma espécie de subconsciente, não apenas porque a formatação de seus processadores leva muito tempo, mas também porque, de acordo com a concepção da série, são suas memórias, erros e tragédias que lhes dão a verossimilhança que os visitantes procuram. A premissa da série é que os robôs estão “vivos”, pois sangram como nós, sofrem como nós e sentem como nós, mas não têm (pelo menos no começo) consciência.

Quando passam a se rebelar é por adquirir essa consciência de quem são e qual seu papel nesse mundo criado pela mente do Dr. Ford e de seu finado sócio Arnold. este nome obviamente faz com que nos recordemos de Henry Ford e sua linha de produção de carros em série.

“Westworld" cria vidas em série, em um ciclo de violência e apagamento. A função dos robôs naquele sistema é servir. A empatia, os direitos, a escuta, o acesso à memória lhes são negados. Até o direito de morrer lhes é usurpado. São colonizados em todas as escalas —são a metáfora da negação radical do outro. Para os bilionários, para a megacorporação e para Dr. Ford os robôs são a parte a ser sacrificada para que a outra mantenha seus lucros e luxos.

A série também nos coloca diante do pseudodilema atual entre vida e economia, escancarando os limites mais cruéis da concentração de poder e da falta de empatia. "Westworld” nos apresenta uma alegoria sobre a ruína desse modelo complexo. Lá, vemos com lente de aumento o lado obscuro da colonialidade. Acompanhamos as violências cometidas sobre aqueles que produzem as riquezas, o entretenimento, o prazer, a cidadania.

Os androides nos lembram as perguntas do pesquisador peruano Anibal Quijano sobre as pessoas que sofreram o impacto da colonização: “Não se pergunta quem são. Se pergunta o que são. São humanos ou não são humanos?”

Eu, oprimido

O filme “Westworld” foi lançado apenas cinco anos depois do longa metragem de Stanley Kubrick que revolucionou o gênero sci-fi, “2001: Uma Odisséia no Espaço”. Também baseado em um romance, de autoria de Arthur C. Clarke, "2001" reafirma o maniqueísmo homem versus máquina ou criador versus criatura, em que o herói é o ser humano e a máquina é a vilã.

Tanto o caubói de preto interpretado por Yul Brynner como HAL 9000, o supercomputador com delírios megalomaníacos, são representações do Frankenstein da era pós-corrida espacial —que por sua vez é uma da consequências da Guerra Fria entre EUA e a extinta União Soviética.

Naquela época, a tecnologia começava a ameaçar a supremacia humana com a ideia aterrorizante de uma inteligência artificial capaz não apenas de nos subjugar como de nos controlar. Mais tarde veríamos os robôs ocupando diversos papéis sociais no cinema —a maioria de submissão ao ser humano, como os divertidos R2-D2 e C-3PO de “Guerra nas Estrelas”. Mesmo em “Matrix” (1999), em que as máquinas são claramente o vilão personificado na figura do senhor Smith (Hugo Weaving), ele próprio uma alegoria do fascismo, a história começa quando essas mesmas máquinas se rebelam contra a subserviência à humanidade.

Peça de xadrez com homem em cima
Ilustração de William, personagem de 'Westworld' - Vinicius Ribeiro

A adaptação de Lisa Joy e Jonathan Nolan subverte essa lógica ao nos fazer não apenas ter simpatia pelos robôs como torcer contra nossa própria espécie. Especialmente por meio do Dr. Ford, que entre outras frases de efeito diz que a mente humana é uma pestilência e que os robôs é que são livres, porque não têm nem consciência nem tampouco sofrem com seu destino pré-programado.

A verdade é que já não se sabe onde começa o homem e onde termina a máquina. Quando o misterioso personagem William (Jimmy Simpson) chega ao parque e se encontra com a anfitriã que o está conduzindo, ele pergunta se ela é real. Ela então responde: “Se você não consegue saber, qual a importância?”

Ou seja, é esse outro que é projeção do nosso próprio eu. O "unheimlich" de que nos falava Sigmund Freud. O outro é aquele que me é estranho e familiar, o outro que não é eu. O outro que sou eu. O inesperado das criaturas projetadas é que são mais humanas que os humanos. O outro do espelho —a criatura, o robô, o "host"— aquele que guarda o humanismo perdido. Aquele que nos lembra do projeto de modernidade que nos deu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os Estados Democráticos, as nossas Constituições, essas narrativas tão bem elaboradas na ficção do projeto da modernidade.

Eu, robô

Para o professor de cinema da Universidade Rutgers Colin Williamson, há um outro aspecto contemporâneo que também nos aproxima dos robôs. “Ver os humanos mecanizados e as máquinas humanizadas nos leva a nos vermos torcendo contra nossa própria natureza”, escreveu no ensaio “Um Escape para a Realidade”, publicado em 2018 no periódico científico Imaginations.

Quando vemos os anfitriões na série, nos recordamos dos escravos em qualquer filme sobre escravidão. A maioria de nós —ou pelo menos todos que não nos identificamos como racistas— vai assistir a “12 Anos de Escravidão” desejando o pior para o senhor de escravos interpretado por Michael Fassbender e que o personagem Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor) reencontre sua liberdade, certo?

Nas palavras do patrono da abolição da escravatura Luiz Gama (1830-1882): “Todo escravo que mata seu senhor, seja em que circunstância for, o faz em legítima defesa”. Os anfitriões são os escravos dos donos do parque. São a classe oprimida. Por isso é normal gostar deles e achar que o vilão é o ser humano, mas quando se chega à terceira temporada, dois personagens humanos entram na narrativa para desconstruir esse clichê.

O primeiro deles é Caleb (Aaron Paul), um veterano de guerra que trabalha como auxiliar de um robô em uma construção e que, para conseguir pagar o tratamento de sua mãe esquizofrênica, utiliza um aplicativo que seleciona “freelancers” dispostos a praticar crimes. Caleb tenta o tempo todo conseguir novos empregos que paguem mais e, embora atenda a critérios meritocráticos, nunca consegue mudar de carreira, sendo obrigado a participar desses pequenos delitos. Até que ele encontra Dolores, “a coisa mais real” que lhe aconteceu ultimamente. Ele a ajuda após ela ser gravemente ferida e surge uma empatia entre ambos.

Dolores então investiga sua vida e conta para ele que existe uma corporação que, através de cálculos de probabilidade e algoritmos elaborados por um supercomputador, prevê e modifica o futuro de todos os indivíduos que estão em sua base de dados. Ou seja, descobrimos humanos também estão presos a uma narrativa definida por uma corporação comandada pelo bilionário Engerraund Sérac (Vincent Cassel), o grande vilão até então oculto para os anfitriões presos em “Westworld”.

Lisa Joy explicou durante entrevista de lançamento que nesta temporada ela e Christopher Nolan queriam apresentar uma nova perspectiva sobre os seres humanos para a vingativa Dolores, mostrando que os humanos que ela conhecem no parque não são a regra. A regra é que a maioria das pessoas está aprisionada em um sistema corrupto, desenhado para favorecer um pequeno grupo de bilionários.

Sob uma perspectiva mais marxista, “Westworld” é um programa sobre luta de classes (classe dominante versus classe operária). Torcemos pelas mulheres, pelos negros, pelos operários e contra os homens brancos, colonizadores, autoritários. O inimigo é o patriarcado e o capital.

Mas como todo produto audiovisual, “Westworld” é polissêmica e pode ser analisada também como uma série sobre o controle absoluto, a colonialidade e a perversidade da narrativa única, que leva a sociedade a praticar o apagamento de pessoas e culturas.

Eu, colonizado

Como em todo filme de velho oeste, a série vai transbordar clichês sobre gênero e culturas. O papel dos povos originários dentro dessa narrativa será investigado no oitavo episódio da segunda temporada, intitulado “Kiksuya”. Em lakota, língua dos sioux, essa palavra significa relembrar. A memória, nesta série, é a chave da consciência dos anfitriões enquanto indivíduos, que também serve para mapear “Westworld”.

A empatia entre personagens ganha relevo. Emana uma espécie de descanso do bangue-bangue e da sobreposição de temporalidades que fazem da série uma jornada exigente para o espectador.

Descobrimos de onde vêm as pegadas que levam para dentro do labirinto acompanhando a saga do anfitrião do parque Akecheta (Zahn McClarnon). Ele faz parte da nação Fantasma, um grupo que representa os povos originários que viveram na região a que hoje damos o nome de EUA. Os clichês do gênero faroeste se somam àqueles empregados para descrever, sistematizar, explorar, assassinar e marginalizar esses grupos em um dos mais duros genocídios da nossa espécie. Os membros da nação Fantasma usam uma língua diferente da dos outros anfitriões e moram isolados em pequenos grupos.

Logo que o parque foi aberto viviam “como um só”, em harmonia entre si e com a natureza, performando o estereótipo do bom selvagem. Alguns desses androides foram reprogramados para serem mais violentos, para que os visitantes sentissem menos remorso quando os assassinassem. Lembra das cenas clássicas dos filmes do velho oeste em que os mocinhos perseguem os indíos? Dos bandeirantes expandindo o território nacional? Dos “selvagens” sucumbindo à fé católica para salvar suas almas? Dos indígenas assassinados para que a biodiversidade e sua casa dessem lugar ao agronegócio? Tudo fica mais fácil se esses indígenas representarem uma ameaça, mesmo que virtual. E a ameaça em si justifica o assassinato.

Em sua primeira narrativa no parque Akecheta vivia uma história de amor. Nas bordas do parque teve contato com um dos magnatas da corporação, abandonado, delirando de insolação que lhe conta que ali era o mundo errado. Intrigado ele persegue os limites do parque. Procura uma porta de saída. O que tampouco sabemos é se, atrás dela, há saída. Ele encontra a porta, mas, ao tentar fugir com sua amada, ela é capturada.

Akecheta passa quase uma década procurando por ela. Vai encontrá-la no mundo dos “mortos”. É uma das raras cenas da série em que se esboça o sentimento de solidariedade. Entre dezenas de corpos abandonados, Akecheta descobre a chave para dentro do labirinto. Sua dor não era mais solitária. O personagem pactua uma espécie de religação, uma reconexão de empatia, de sentido, de consciência, de ética —kiksuya.

O paralelo com o projeto de colonialidade do nosso tempo ganha mais um relevo nesse personagem. Os povos originários, aqueles mais à margem do nosso sistema-mundo, resistiram a séculos de expropriações, são a epítome da radicalidade exploratória da modernidade e que nos fazem questionar para onde nos levou a insistência em criar uma distinção dos outros animais.

Ailton Krenak, na mais sábia live da quarentena em conversa com Marcelo Gleiser, nos lembra que não somos separados da natureza, somos a natureza. Krenak faz uma reflexão certeira que também faz sentido dentro de “Westworld”: “tudo que a técnica nos deu foram brinquedos” e que a “queremos justificar com algum troféu o rastro que deixamos pra trás”.

​Eu, ciborgue

A nossa identificação com o robô também deriva de uma mudança nas nossas relações com as máquinas desde os anos 1970. E a explicação para isso se encontra no livro “Antropologia do Ciborgue” (2009). Escrito por Donna Haraway e Hari Kunzru, a obra primeiro faz uma definição do que seria um ciborgue.

Para Hunzru, o processo que define esse termo é uma dialética entre homem e máquina, mas conhecido como cibernética. “De um lado, a mecanização e a eletrificação do humano; de outro, a humanização e a subjetivação da máquina. É da combinação desses processos que nasce essa criatura pós-humana a que chamamos ciborgue.”

Mas quem é, na prática, o ciborgue? Você, todos nós, desde mais ou menos a década de 1990. Haraway argumenta que ser um ciborgue não tem necessariamente a ver com quantos bits de silício ou quantas próteses de titânio você tenha inserido em seu corpo, mas com o fato de ir à academia de ginástica, “observar uma prateleira de alimentos energéticos para bodybuilding, olhar as máquinas para malhação e dar-se conta de que se está em um lugar que não existiria sem a ideia do corpo como uma máquina de alta performance”.

Peça de xadrez com mulher em cima
Ilustração de Maeve (Thandie Newton), personagem de 'Westworld' - Vinicius Ribeiro

Autorrotulada como uma mulher ciborgue, a professora da Universidade da Califórnia diz que prefere isso a ser “uma deusa”, fazendo assim um contraponto à ideologia feminista que vê a ciência e a tecnologia como pragas do patriarcado, cuja única fuga é a reconexão com aquilo que somos: parte da natureza.

Em seu manifesto, Haraway argumenta que o ciborgue —uma fusão de animal e máquina— nega oposições entre natureza e cultura, pois, quando por exemplo alguém descreve algo como natural, está dizendo que “é assim que o mundo é, não podemos mudá-lo”.

“Por gerações, foi dito às mulheres que elas são ‘naturalmente’ fracas, submissas, extremamente emocionais e incapazes de pensamento abstrato. Que estava ‘em sua natureza’ serem mães em vez de executivas, que elas preferiam entreter visitas em casa a estudar física das partículas. Se todas essas coisas são naturais significa que elas não podem ser mudadas. Fim da história. Volta à cozinha. Proibido ir adiante.”

Peça de xadrez com mulher em cima
Ilustração de Dolores (Evan Rachel Wood), personagem de 'Westworld' - Vinicius Ribeiro

As materialização dessa teoria na série são Dolores e Maeve. Especialmente Maeve, que não apenas reescreve todo seu código, como desenvolve a capacidade de controlar outros robôs apenas com a mente (provavelmente através de um superbluetooth). Dolores também, ao retomar sua consciência, decide reescrever sua história e ir de donzela em apuros para vingadora assassina e fria.

Então, se as mulheres (e os homens) são construídos como um ciborgue, também podem ser reconstruídos. “Tudo pode ser escolhido, desde lavar os pratos até legislar sobre a Constituição. Pressupostos básicos como, por exemplo, decidir se é natural uma sociedade baseada na violência e na colonização de um grupo sobre outro tornam-se repentinamente questionados. Talvez os humanos estejam biologicamente destinados a fazer guerras e a poluir o ambiente. Talvez não.”


Gabriela Canale é doutora em literatura comparada pela USP e professora de artes na Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana).

James Cimino, jornalista, mora nos EUA há cinco anos e escreve sobre filmes e séries para veículos de comunicação do Brasil.

Ilustrações de Vinicius Ribeiro.

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