De panelaços a sexo na janela, escritor conta o que viu de seus vizinhos na quarentena

Ronaldo Bressane descreve dias de confinamento em um quarteirão do centro de São Paulo

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Ronaldo Bressane

Escritor, jornalista e professor de escrita criativa. Publicou, entre outros livros, o romance "Escalpo" (Reformatório)

[resumo] Morador do bairro República (centro de São Paulo), o escritor narra a atribulada nova rotina (com voos de urubus e drones, panelaços, obras ensurdecedoras e sexo às claras) de seus vizinhos dos prédios Louvre, Copan e São Luiz em tempos de isolamento social, quando janelas, reais ou virtuais, são das poucas formas de contato com o mundo.

O ar está violento: manhã linda, um vulto preto despenca bem em frente à janela. Corro e olho para baixo —foi um urubu dando rasante na fachada do prédio, só para em seguida abrir as asas, capturar a corrente de ar quente e catapultar seu voo circular no quarteirão em que moro, formado pelos edifícios Louvre, São Luiz e Copan.

Ufa. Não foi desta vez que alguém pulou do prédio rosa em que vivo. O bicho vai espiralando e “urubuservando” as avenidas São Luís, Ipiranga e Consolação até sumir nas mais altas alturas do azul. Ufa. O ar está violento, mas a carniça não chegou tão perto de casa. Ainda.

“Como vão as coisas?”, salta do meu celular uma janela. Tudo bem, tudo igual, nada mudou, respondo, adicionando um <3 ao amigo preocupado, outro escritor confinado com a esposa, para sua sorte. Paulo Scott me responde com um áudio, então vai ficar de castigo até eu responder a ele. Escritor não fala, escritor escreve.

Vista aérea do edifício Copan, no centro de São Paulo
Vista aérea do edifício Copan, no centro de São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Mas imagino sua angústia por não conversar: mesmo acostumados a viver quarentenados em uma lição de casa infinita, escritores gostamos de sair, beber, andar, aglomerar. E agora temos ao mesmo tempo a melhor e a pior justificativa para o que tentamos fazer toda a vida: não sair de casa.

Sempre temi pelo dia em que meus amigos se tornariam talking heads em quadradinhos, um álbum de figurinhas móveis, repetidas ou carimbadas, ou bem babadas e amassadas.

Agora é isso: com quatro aulas de quatro horas por semana, mais os chamados dos amigos, minha realidade é um permanente Zoom de zumbido sem besouro nem ímã nem a transcendência da cachaça, conversas com hora marcada em que um fala e o outro cala se não ninguém se ouve. O filósofo Luciano Floridi cunhou o conceito de pós-história para definir nosso tempo: quando o virtual for o real. Já é, flor.

Indo à janela, ainda busco o real. “O real está me sonhando/ o real por todo lado./ Não sou eu que vivo o medo;/ em seu tapete de sombras,/ por ele é que sou vivida”. Enquanto escrevo este texto, morre a poeta e tradutora Olga Savary. Nesta temporada a morte vem mandando recados. Estamos sendo vividos pela narrativa do vírus, e sua língua é a do medo.

No quarteirão, um triângulo nada amoroso se angula entre os envidraçados fundos do Copan, obra do comunista Oscar Niemeyer, o São Luiz, um condomínio marrom sem graça, e o meu, o róseo Louvre, obra do anarquista Artacho Jurado. Vivo nos fundos, felizmente com muito céu à vista. Os apartamentos do Copan são quitinetes. Os do São Luiz são de dois quartos. De lá vem o grito: “Mito!”

Edifício Copan à noite, no centro de São Paulo, visto da janela do escritor Ronaldo Bressane durante a quarentena
Edifício Copan à noite, no centro de São Paulo, visto da janela do escritor Ronaldo Bressane durante a quarentena - Ronaldo Bressane/Folhapress

Em segundos várias cabecinhas saem do Copan como pássaros-cuco pulam de um relógio: “Fascista!”, “Assassino!”, “Genocida!”, “Gado!”, “Fora Bolsonaro!”

A gritaria se estende por uns cinco minutos, às vezes uns dez, às vezes marcada por panelaços e vuvuzueladas, também vindos do Louvre e do São Luiz.

Aos poucos consigo distinguir tons, registros e sotaques diferentes de cada “Fora Bolsonaro”. Houve dias em que o gritaço começou pontualmente às 17h, às 18h, às 19h, às 20h e às 21h. Nas três quedas de ministros, os gritaços vieram acompanhados de um sonoro “Acabou”.

Mas não acabou ainda

O gigantesco jogo-da-velha luminoso que são os fundos do Copan parece a tela de um celular curvo. As janelas de três por três metros quadrados são dezenas de pequenas telas, ícones de aplicativos ou telas de pequenos filmes. É toda de vidro a quarta parede da quitinete —e não há distanciamento brechtiano ao morar de frente para os fundos do Copan. Da minha tela, noto que o que as pessoas mais fazem é se encurvar sobre telas. Estaremos todos no mesmo barco?

Há janelas apagadas ou fechadas com cortinas das mais diversas cores. Mas há também aquelas abertas e iluminadas, em uma paleta que vai do branco gelo ao roxo profundo, passando por ocres, beges, laranjas, azuis, verdes, vermelhos.

Sou míope e lamento não ter comprado um telescópio assim que me mudei para o Louvre. Tinha outras prioridades além de espionar os vizinhos dessa favela hipster, desse presídio hi-tec. E aprecio não ver direito seus rostos, só intuir o corpo, a cor da pele, a idade.

Vejo gente de todo tipo. A garota do apê da lavaluz vermelha com uma TVzona ligada o dia todo. O cara do apartamento vazio, luz branca, latinha na janela. O casal de idosos cujos móveis vieram dos anos 1950. Aquele idiota cujo laser verde deixa maluco meu gato, Neve. O casal que transa apoiado nos batentes da janela; ora um, ora outro.

O fantasma que mora na única kit adornada por uma bandeira do Brasil, janelas sempre cerradas. Gente comendo, bebendo, dando água para as samambaias, balançando na rede, brincando com algum bicho, dançando, falando no celular, os olhos fechados e as mãos nos ouvidos segurando os fones, fazendo yoga ao nascer do Sol. Pessoas empilhadas em apartamentos alugados a R$ 1.500. "Estou escrevendo sobre pessoas empilhadas na cidade enquanto os tecnocratas afiam o arame farpado”, descreveu Rubem Fonseca, outro que se foi nestes dias.

Meus vizinhos são solitários olhando telas. De TV, notebook, tablet, celular. “Humanidade: pessoas encurvadas em suas próprias casas, fixadas em pequenos objetos luminosos”, registraria um ET caso sobrevoasse as janelas dos edifícios de São Paulo. Ou de qualquer outra cidade do mundo. Não é comer, transar, ler, se exercitar: a coisa que as pessoas mais fazem quando estão em casa é fixar o abismo infinito das janelas que caem, impulsionadas pela barra de rolagem lateral. É como se os olhos estivessem em queda livre vendo as janelas de um prédio que nunca termina.

Já sei o próximo estágio da distopia: quando a internet cair. Quem sobreviverá?

Fujo para o mercadinho. Pelas vielas da Vila Buarque, alguns botecos abrem meia portinha. Num deles, um cartaz colado na entrada anuncia: “temos pão”. Tem muito boteco virando padaria no Brasil.

Dou uma olhada lá dentro: meia dúzia de pudins de cachaça no balcão e numa mesa, todos papeando com as máscaras nos pescoços ou nos queixos. Um mundo antigo: homens em volta de suas biritas, falando bem juntinho um do ouvido do outro. Salivando, cuspindo, arrotando. Não julgo.

Peço uma porção de torresmos. Por mais que eu frite torresmos numa técnica mista que usa airfryer, forno e frigideira, o melhor torresmo mesmo é o de boteco – é o chorume existencial de toda chapa, um suco de Anthony Bourdain. Enquanto o garçom frita o bicho, da calçada eu colo o ouvido nos cachaceiros.

“A cloroquina é eficiente. Tô tomando. Uma prima que é dentista deu a receita pra toda família.”

“Esses números de mortes são exagero da Globo.”

“Não adianta isolamento! Até as pessoas que estão isoladas em casa estão se contaminando!”

“Aqui está sua porção de torresmo. R$ 10.”

No céu tem pão, cloroquiner?

No grupo de whats do prédio: “Que absurdo, tem um drone voando na minha janela”. “Atira um sapato nele”, diz um. “Joga uma bolinha de gude”, fala outro. “Chama a polícia, que absurdo”, pipoca um terceiro.

 Edifício Louvre, na avenida São Luís, região central de SP
Edifício Louvre, na avenida São Luís, região central de SP - Gabriel Cabral/Folhapress

“Ei gente, calma!, é só um teste, sou eu”, diz uma vizinha do grupo, “vou trazer pra casa, calma, me desculpem”.

“Ufa, hahaha”, pululam emojis e figurinhas de alívio. “Boa noite, boa noite.”

A súbita aglomeração de gente dentro da janelinha do WhatsApp vira pretexto para que os vizinhos de Louvre peçam comida àqueles que transformaram a cozinha em restaurante (prestigie o comércio local). “Haozitos, tem focaccia de calabresa?”; “Kalu, tô no bonde da tortinha de limão!”; “Talitha, manda um arroz de pato mais uma fornada de pão de queijo?”. E nos encontramos na portaria para uma rápida reunião de condomínio, sempre a dois metros de distância, tensos e famintos – de contato humano.

Coronavídeo com o amigo Corsaletti: brindo com cachaça, ele com uísque, e pergunta onde está meu filho. Ele mora em uma cidadezinha no norte da Itália, caro Fabro, faz 18 neste ano e talvez não estejamos juntos para soprarmos essas velinhas. Minha filha também está longe, em um sítio no sul de Minas Gerais. Não sei quando verei de novo meus filhos, meus amigos, meus amores.

Neste ano resolvi não fazer aniversário, então nem chegarei à quinta década nem meus filhos envelhecerão. Fora as saudades e as incertezas, meu filho vai espairecer perto do rio Pó; minha filha aprende a andar a cavalo. Estão longe do meu abraço, mas a salvo.

Não posso ficar triste. Sofrer requer merecimento, mérito; existem escalas de valores para as dores? “Fique em casa", a classe média ilustrada ordena —mas João Pedro, 14 anos, foi assassinado pela polícia quando brincava com os primos, em sua casa, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro.

Não estamos no mesmo barco.

“Ei, moço da máscara?” Paro e a encaro. “Por que tá todo mundo usando máscara?” Vindo do mercadinho, explico à jovem travesti: epidemia, corona, perigo etc. Suas roupas estão sujas e seu cabelo parece duro como o de um playmobil. Poxa, obrigado por ter olhado na minha cara, ela sorri, banguela.

“Vejo todo mundo de máscara mas as pessoas correm de mim. Olha, hoje é meu aniversário. Você me ajuda a comprar um xampu? É R$ 14.” Por acaso é exatamente o que tenho na carteira e dou a ela. Passo-lhe também uma máscara das três que acabei de comprar na banca de jornal.

Lembro dos áudios que circularam pelo whats no começo da pandemia: não saia de casa, os moradores de rua se tornaram violentos e estão atacando as pessoas. A realidade, no entanto, é bem diferente.

Dias atrás, os vizinhos do Louvre que moram em frente à praça Dom José Gaspar viram um morador de rua sendo atacado por outros três, que moram sob a marquise da Galeria Metrópole. O rapaz foi esmurrado e chutado na cabeça até cair em plena avenida São Luís. Os vizinhos chamaram a polícia e o Samu, que apareceram horas depois.

Vista de São Paulo, a partir do edifício Copan, no centro da cidade
Vista de São Paulo, a partir do edifício Copan, no centro da cidade - Luiz Claudio Barbosa/Código19/Folhapress

No dia seguinte, soubemos pelos porteiros que o rapaz morreu a caminho do hospital. Eu vi na janelinha do meu whats o vídeo que os vizinhos fizeram do mendigo sendo chutado na cabeça no meio da avenida.

Feliz aniversário, digo à travesti, que vai rebolando até a farmácia comprar seu xampu.

Primeiro café expresso em 3 meses, arrisco? Fui ao clássico Floresta, térreo do Copan, que afinal abriu.

Só havia eu e outro cliente. Peço o café em um copo de papel. Momento tão esperado, a ser saboreado — hummm, aquela espuminha densa e forte é inigualável. Um sujeito sem máscara com a cara do Andrea Matarazzo (será que não era ele mesmo?) entra e pede um suco de laranja. Todos no café estão mascarados.

“Por que está sem máscara?”, perguntei. “Porque não quero usar. É meu direito. Cuide de sua vida”, disse, com sotaque quatrocentão, virando o rosto.

“É seu direito, mas você está errado. Não está vendo que as pessoas que trabalham aqui são idosas? Você mesmo é idoso. E se eu tossir na sua cara, tudo bem?”

“Fique à vontade”, disse, emendando um gole de suco. Já estava puxando o catarro na garganta pra escarrar na cara do coxinha. Mas gosto muito do Floresta. Ótimas recordações, vou ali há 30 anos. Seria uma descortesia com aqueles velhos tugas turrões.

“Tenha uma morte lenta”, desejei ao Matarazzo cover. Paguei e saí. A fé na humanidade, que nunca foi suave, tende a ficar mais amarga que café de torra escura.

Oito da manhã. O bate-estaca da obra da Consolação hoje vai a 100 decibéis, eu medi. E deve estar em uns 150 bpm. Impossível ficar na cama.

Subo ao terraço. É cedo, a hora dos mocorongos. Pessoas sem máscaras me estranham. São os chamados walking velhos, que zumbizam pra lá e pra cá. Sou o único de máscara.

Três idosas tomam sol perto da piscina fechada. Empoleirado na grade de proteção, um urubu.

O bichão está de olho nas idosas deitadas. Eu vi uma língua lambendo os beiços?

“Vêm aí dias piores”, sussurra Ingeborg Bachmann no meu ouvido.

“See you later, alligator”, me sopra o urubu, antes de piscar o olho e sair voando.

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