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Mandatos coletivos pelo país afrontam machismo e racismo no Parlamento

Bancadas podem ser fresta que se abre na parede grosseira da política brasileira

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Marilene Felinto

Escritora, é autora de "As Mulheres de Tijucopapo" e mantém o site marilenefelinto.com.br

[resumo] Em sua estreia como colunista da Ilustríssima, Marilene Felinto comenta a atuação dos mandatos coletivos nas assembleias legislativas de alguns estados, como São Paulo e Pernambuco. Novidade introduzida na eleição de 2018 pode ser um passo para o futuro da efetiva representatividade democrática no país, avalia escritora.

A mais nova forma de participação política no Parlamento brasileiro ousa introduzir nomes também novatos à pauta: codeputada (e não deputada), mandata (e não mandato), coletividade, ativismo, pluripartidarismo e/ou apartidarismo, antirracismo, anticapitalismo, antifascismo, diversidade, horizontalidade (ausência de hierarquia), feminismo, transvestigênere (termo amplo, somatória de percepções identitárias do universo trans).

A novidade, introduzida na eleição de 2018, são os mandatos coletivos que conseguiram eleger seus representantes nas Assembleias Legislativas de São Paulo (Bancada Ativista) e Pernambuco (Juntas). Há iniciativas do tipo também na Câmara dos Vereadores de Alto Paraíso (GO) e em Minas Gerais, onde o coletivo Muitas criou a “Gabinetona”, atuação conjunta de quatro parlamentares nas três instâncias do Legislativo.

A Bancada Ativista é composta por nove integrantes —sete mulheres (uma trans negra, duas negras, três brancas e uma indígena) e dois homens (um negro e um branco). A Juntas tem cinco mulheres em seu quadro, sendo duas negras.

Sem reconhecimento na legislação eleitoral, esses grupos têm como porta-voz oficial a pessoa cujo nome foi votado nas urnas na eleição. Em São Paulo, Mônica Seixas (PSOL), jornalista; em Pernambuco, Jô Cavalcanti (PSOL), vendedora ambulante e sindicalista.

Pois essas “mandatas” coletivas, se não fazem ainda a necessária revolução anticapitalista dentro do sistema político-partidário apodrecido, são talvez um passo para o futuro da efetiva representatividade chamada democrática.

Se alguma mudança vier nesse campo, será somente quando os espaços de poder forem ocupados por gente negra, indígena, transvestigênere, gay, lésbica, não binária, anarquista, socialista, partidária, apartidária etc., tudo aquilo que bata de frente com o Parlamento heteronormativo branco de direita liberal, arcaico e truculento.

No quesito diversidade, aliás, justiça seja feita ao PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). Não sou filiada ao PSOL nem a nenhum outro, mas é preciso reconhecer o esforço desse partido para incluir em seus quadros diversidade de gênero, de raça, de classe, de orientação sexual, tema pouco importante em outros grupos de esquerda.

Exemplo notório disso é estarem sob a legenda do PSOL os três únicos representantes trans no Parlamento nacional: Erica Malunguinho, deputada estadual por São Paulo, eleita em 2018; Erika Hilton, codeputada da Bancada Ativista, e Robeyoncé Lima, também codeputada pela Juntas.

Mas é claro que, em suas respectivas casas legislativas, as bancadas coletivas vão abrindo caminho a tapa, como quem tira leite de pedra.

Abalam a estrutura estofada das poltronas em que se acomoda desde sempre a velharia política viciada em legislar em interesse próprio e para a manutenção do “CIStema” (termo dos coletivos, em que “cis” indica privilegiar o sexo biológico para identificação de gênero, desconsiderando a autopercepção na orientação sexual de um indivíduo).

As mandatas enfrentam todo tipo de resistência e preconceito: somente a representante oficial tem direito ao microfone, a assento nas comissões, ao trânsito pelo plenário da casa. Para não falar dos casos explícitos de racismo, misoginia, homofobia e transfobia de que são vítimas.

“Nossa chegada ao Parlamento paulista chocou, e eles estavam preocupados como seria a participação e atuação desses corpos dentro da Assembleia”, disse recentemente Erika Hilton ao jornal Brasil de Fato. “[...] Em um ano, a relação não melhorou, ela ficou blasé. Eles fingem que nos toleram e fingimos que não nos importamos com tudo que eles têm feito.”

A despeito do clima inóspito, as bancadas vêm trabalhando duro. Em tomadas de decisão sempre consensuadas entre todos os membros dos grupos, atuam no Parlamento e nas ruas, protocolam projetos com foco na alteração das condições de vida dos excluídos.

Na página do Facebook da Juntas, por exemplo, chama a atenção um vídeo em que diversos coletivos populares (na voz de mulheres negras e jovens) denunciam as condições do sistema prisional em Pernambuco. Ora, quem, neste país, se interessa pela vida dos presos?

Nas ações da Bancada Ativista, por sua vez, destaque para o papel aguerrido da mandata na oposição à PEC 18/2019, que alterou a Previdência dos servidores estaduais em fevereiro deste ano, roubando-lhes direitos adquiridos.

A hierarquia vigente nos mandatos coletivos é apenas a da ordem alfabética dos nomes dos membros. Se isso ainda não significa “poder para o povo preto”, “poder para o povo excluído”, pode ser uma fresta que se abre na parede grosseira da política brasileira.

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