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Não podemos jogar fora direito ao anonimato para combater fake news

Patrocinaremos o autoritarismo se não preservarmos a identidade de algumas vozes

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Eugênio Bucci

Jornalista e professor da ECA-USP

Juliano Maranhão

Advogado, professor da Faculdade de Direito da USP e diretor do Instituto LGPD (Legal Grounds for Privacy Design)

[RESUMO] Medidas para frear a desinformação não justificam o enfraquecimento do direito ao anonimato, argumentam autores, que consideram que a exigência de identificação prévia não tem respaldo na Constituição brasileira e pode levar, em nome da proteção da democracia, à supressão de liberdades.

Fiquemos atentos. No calor dos debates sobre a responsabilização dos provedores de redes sociais na internet pelo fluxo avassalador de desinformação que carregam, podemos, inadvertidamente, pôr em risco a liberdade de expressão e a democracia.

É legítimo o anseio por impor limites à indústria das fake news, uma atividade clandestina, ilegal e muitas vezes criminosa, com o fim espúrio de manipular o cidadão e desacreditar a democracia. Essa indústria corrosiva favorece as doutrinas totalitárias, o racismo e o fanatismo anticientífico, além de bombardear sem tréguas as conquistas humanistas da modernidade. Quanto à necessidade de combatê-la, portanto, estamos todos de acordo.

No entanto, em nome de cerrar fileiras contra a desinformação antidemocrática e inconstitucional, vem ganhando adeptos o intento autoritário de varrer do mapa um direito que nos foi legado pelos costumes da melhor tradição liberal: o anonimato. Dar esse passo seria um erro terrível.

Homem com tela azul ao fundo
Mark Zuckerberg, fundador e diretor-executivo do Facebook - Josh Edelson - 1º.mai.2018/AFP

Estudando o legado histórico, percebemos que a democracia e a liberdade foram construídas por vozes que, não raro, só puderam se manifestar porque se fizeram proteger pelo recurso do anonimato. Vale citar três exemplos famosos.

Em 1689, o pensador inglês John Locke, vivendo no exílio, ocultou a própria identidade para publicar sua célebre "Carta sobre a Tolerância", que se converteria num marco da liberdade religiosa.

O segundo exemplo é mais significativo. Entre 1787 e 1788, uma série de artigos com o propósito de convencer os americanos a ratificarem a criação da Federação foi publicada em jornais como The Independent Journal e The New York Packet sob um pseudônimo enigmático: “Publius”.

Aqueles artigos realizaram a proeza histórica de levar o país a adotar a decisão nacional que deu origem ao Estado americano tal como ele se encontra estabelecido até nossos dias e —atenção para isso— eram anônimos. Somente mais tarde, John Jay, Alexander Hamilton e James Madison assumiram publicamente a autoria dos textos, reputados atualmente como pedra fundamental do pensamento político democrático nos Estados Unidos.

O terceiro exemplo é brasileiro. As famosas "Cartas Chilenas" circularam em Vila Rica com fortes sátiras contra o governador, sob os pseudônimos Critilo e Doroteu, poucos anos antes da Inconfidência Mineira. Execradas pela Coroa Portuguesa, as cartas, cuja autoria apenas em 1940 revelou-se ser de Tomás Antônio Gonzaga, tornaram-se, para os brasileiros, símbolos de libertação.

Hoje, desavisadamente, alguns argumentam que a Constituição Brasileira vigente veda expressamente o anonimato, razão pela qual a autenticação da identidade na abertura de contas em redes sociais não mereceria qualquer objeção. É verdade que o inciso IV do art 5o da Constituição Federal prevê ser “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, mas é um equívoco ler, nesse condicionamento, a imposição de um dever geral de identificação para qualquer forma de manifestação pública. Sejamos cautelosos nessa matéria.

O mesmo artigo 5o dispõe contrariamente ao dever de identificação. Em seu inciso XIV, lemos que “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Ora, o sigilo da fonte não deixa de ser uma forma, ainda que mediada, de anonimato. Diz a Constituição que esse anonimato será guardado pelo profissional da imprensa, pois só este conhece a identidade de sua fonte e não poderá ser obrigado por ninguém a revelá-la.

A garantia do sigilo da fonte, mais do que um direito da fonte ou do jornalista, firma-se como uma garantia dos freios e contrapesos em sociedades livres. A liberdade de imprensa, potencializada pelo sigilo da fonte, é preciosa exatamente por se consubstanciar em um meio legítimo pelo qual as sociedades livres vigiam o exercício do poder.

Por certo, a coexistência desses dois dispositivos, um vedando o anonimato e o outro garantindo o anonimato (por meio do sigilo da fonte), intriga os intérpretes da Constituição. Como compreender essa coexistência? Estaríamos diante de uma contradição insolúvel entre princípios discrepantes?

Para compreender esse ponto, é preciso, de início, perceber que a Constituição Federal reconhece claramente que o discurso, cuja liberdade é assegurada, pode lesar outros direitos fundamentais. Segue-se, então, da liberdade de manifestação do pensamento (inciso IV), a garantia do direito de resposta e da indenização por dano material ou à imagem (inciso V). Pelo mesmo motivo, estão previstas no mesmo artigo a vedação à censura (inciso IX) e a inviolabilidade dos direitos da personalidade (intimidade, privacidade, honra e imagem).

Daí a necessidade de olharmos para o propósito do condicionamento à liberdade que aparece no inciso IV. Seu objetivo é a mitigação do risco e do potencial de dano que alguns tipos de manifestação podem causar. Sendo assim, por se tratar de condicionamento ao direito fundamental à liberdade de expressão, a vedação ao anonimato deve ser interpretada como uma restrição mínima, não passando do estritamente necessário para proteger a liberdade do outro. Em outras palavras, esse condicionamento submete-se ao princípio geral e a ele apenas apresenta uma restrição específica.

Considerando que o dano pelo discurso é apenas uma possibilidade, decorre daí que a regra não pode ser a vedação prévia ao anonimato; a regra é a liberdade e, portanto, o princípio constitucional não impõe a ninguém, nem poderia impor, o dever geral de identificação prévia daqueles que exercem livremente o direito de se manifestar. Caso contrário, haveria uma presunção de que todo discurso seria abusivo, ao arrepio da presunção de inocência da qual, pela mesma Constituição, goza todo cidadão.

Logo, deve-se ler no texto constitucional não a obrigação de identificação prévia, mas apenas que o anonimato não elide a responsabilidade. Isso significa que, como princípio, a manifestação anônima é plenamente possível e legal; resguarda-se, apenas, a possibilidade de identificação para se assegurar uma possível reação contra o exercício manifestamente abusivo da liberdade de expressão.

Fica, assim, resguardada a possibilidade de controle apenas a posteriori da autoria do discurso abusivo com sua responsabilização.

Consideremos suficiente esse ponderado e seguro mecanismo constitucional, pois a ambição de eliminar ex ante a própria possibilidade de violação não raro leva à supressão de liberdades: hoje proíbe-se o anonimato; amanhã proíbe-se a própria manifestação do pensamento a pretexto do combate às fake news.

Com isso, resolve-se a aparente contradição entre os incisos IV e XIV. O que se deve depreender do diálogo entre os dois incisos é que o anonimato não pode ser aceito numa única circunstância: a de que esteja servindo como manto protetor para aquele que abusa da liberdade de manifestar seu pensamento para lesar o outro ou a própria democracia.

Resulta bastante claro, ao mesmo tempo, que o sigilo da fonte (uma forma especial de anonimato) não apenas é aceitável aos olhos da Constituição como é por vezes necessário para que o público seja informado sobre desvios do poder. Não fosse esse sigilo, o cidadão se sentiria exposto e desprotegido quando fosse denunciar a um repórter uma irregularidade cometida por autoridades e outros poderosos.

Enfim, a Constituição legitima, e não veda o anonimato. O que ela veda, isto sim, é o artifício do anonimato como esconderijo para o ilícito.

Quanto ao mais, o ordenamento jurídico brasileiro incorporou o recurso ao anonimato em muitos níveis. Temos, por exemplo, a possibilidade legal da denúncia anônima para assegurar àquele que acusa a prática de crimes graves a proteção de sua identidade.

Também no exercício do direito ao voto, a escolha do candidato é computada de modo anonimizado. No processo eleitoral, a lei não apenas institui o anonimato como o protege. Com seu voto, o eleitor expressa o seu pensamento de forma rigorosamente anônima e nem por isso ofende o disposto no inciso IV do artigo 5o da Constituição Federal.

No âmbito dos costumes e da cultura, assimilamos com naturalidade a preservação da identidade de algumas vozes, de tal sorte que, na literatura e no jornalismo, há muito convivemos ampla e harmoniosamente com pseudônimos e autorias anônimas.

Especificamente quanto à atividade na internet, o Marco Civil da Internet faz a sábia intervenção mínima em prol da segurança pública, ao obrigar os provedores a guardarem por seis meses os registros de acesso às aplicações, justamente para viabilizar a persecução de atividade criminosa, sem invadir a privacidade e liberdade dos usuários. Qualquer passo além deve ser extremamente cauteloso e merece o mais amplo debate.

Defender o anonimato não significa defender a prática de crime. Os criminosos que agora no Brasil propagam fake news, repletas de calúnias e difamações, embora procurem se escudar numa suspeitíssima alegação de liberdade de expressão, não passam de integrantes de milícias virtuais e precisam ser investigados, localizados, identificados, julgados e punidos. Em nada podem ser comparados a John Jay, James Madison e Alexander Hamilton, que publicaram seus artigos federalistas sob pseudônimo. Os agenciadores da desinformação nas redes sociais são apenas bandidos ocultos.

Em suma, não podemos jogar fora o bem do anonimato, esse direito consagrado, mais do que pelo direito positivo, pelos costumes democráticos. Se não cuidarmos dele, pagaremos com a nossa liberdade o preço medonho de uma vigilância extrema, desenhada nos moldes das distopias mais sufocantes. Sob a alegação de proteger a democracia, não caiamos na sanha desastrada de patrocinar o autoritarismo.

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