Descrição de chapéu

Por que haverá golpe

Como uma criança intolerante, Bolsonaro enxerga cadeirinhas como opressão e precisa destruí-las

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Luiz Meyer

[RESUMO] Psicanalista argumenta, a partir de atos e falas de Jair Bolsonaro, que a mente do presidente é governada por uma criança ressentida, à semelhança de um filho que reage com violência ao ser colocado em uma cadeirinha de um carro.

Em oposição ao que é popularmente difundido, a psicanálise não explica tudo. Atenta às brechas que podem emergir na fala do paciente em livre associação, ela estabelece conexões que para ele são conscientemente insuspeitas no interior dessa fala. Então, as alinhava propondo-lhe uma percepção e uma compreensão alternativas à sua autorrepresentação e ao sentido do seu relato.

A somatória desses encadeamentos habilita o analista a propor ao paciente uma hipótese sobre a estrutura de sua organização psíquica sem, entretanto, estabelecer relações de causa e efeito. A psicanálise é, pois, uma atividade descritiva e não explicativa.

Esse procedimento, quando empregado fora do consultório, tende a ser redutivo e/ou determinista, terminando mais por provar o acerto da teoria que a compreensão do objeto. Freud, entretanto, em um ensaio que se tornou seminal, arriscou-se, com êxito, a uma incursão desse tipo. Refiro-me à sua análise das memórias do presidente Daniel Paul Schreber (Schreber era membro do Judiciário, e o posto de presidente relaciona-se à sua posição na corte de Justiça).

Freud jamais o conheceu pessoalmente. Mas, a partir do livro em que essas memórias são narradas —material público, portanto—, no qual ele descreve em minúcias suas experiencias delirantes e alucinatórias, basicamente de cunho paranoide, Freud (1911) pôde tecer várias hipóteses a respeito dos fatores que impulsionaram Schreber a organizar seu psiquismo e sua visão de mundo, tal como os descreve na publicação.

As interpretações de Freud dão coerência a elementos aparentemente díspares que ali são narrados. Freud não “explica” a psicopatologia de Schreber (e, é claro, não faz nenhum juízo de valor); ele apenas descreve a exigência de sua lógica interna e aponta os elementos que a compõe.

Jair Bolsonaro até agora não escreveu suas memórias. Penso, entretanto, que o rastreamento de suas falas e atos (e de seus filhos, com quem ele forma uma entidade simbiótica) constitui um gênero de memorial que se presta a um exercício semelhante. Ele não visa um diagnóstico, o que seria antiético, mas é possível mostrar que seu discurso e seus atos possuem uma coerência que lhes confere organicidade e apontam a existência de um elemento organizador nuclear inerente a essa coerência.

Vou evocar de forma suscinta alguns exemplos já conhecidos de seu comportamento e de suas expressões. Deles fazem parte o protesto rumoroso contra o soldo que recebia, os planos para explodir quartéis e plantar bombas em lugares estratégicos do Rio de Janeiro, sua pregação por uma guerra civil que “mataria uns 30 mil” para “fazer o que o regime militar não fez”, seu desprezo pelo voto e seu incentivo à sonegação, sua intenção de dar um golpe e “fechar o Congresso” “no mesmo dia”, caso fosse eleito presidente, seu elogio ao torturador e à tortura, seu desprezo pelo STF, que pode ser fechado apenas “com um soldado e um cabo”, seu saudosismo do AI-5, seu armamentismo compulsivo e sua obsessão em facilitar infrações e aliviar punições etc.

Há um eixo que percorre essa listagem, lhe dá coesão e coerência e que tem sua melhor representação em duas de suas frases recentes: “cala a boca”, dirigindo-se a um jornalista e “quem manda sou eu”, dito ao corpo de seus ministros.

Para encerrar esse ementário, que evidentemente lembra um prontuário, vou me deter de forma mais detalhada em uma iniciativa sua, de aparência deslocada e mesmo algo bizarra. Ela é, entretanto, como se verá, paradigmática e uma vez rebatida sobre tudo o que foi até aqui enumerado vai lhe conferir transparência. Refiro-me ao seu empenho em anular a multa para os pais que não utilizarem a cadeirinha para transporte de crianças (atitude considerada infração gravíssima).

Muitos dos leitores já tiveram a oportunidade de observar o que ocorre quando os pais tentam acomodar sua criança pequena à cadeirinha do banco de trás. A dificuldade da operação é diretamente proporcional às contorções da criança que protesta e se rebela face à limitação imposta. Como ela não entende que a atitude dos pais visa protegê-la, ela interpreta esse gesto como uma demonstração de autoritarismo e hostilidade, um comportamento que visa aprisioná-la.

Compreende-se que sua reação, tendo os pais como alvo, seja violenta. Cada vez que a porta do carro é aberta e ela é dirigida à cadeirinha acende-se em sua mente um sinal amarelo alertando-a para o que considera uma opressão iminente.

À medida que a criancinha vai crescendo e se desenvolvendo, seu comportamento muda. Ela começa a ver sentido no comportamento dos pais, que deixa de ser percebido meramente como coerção e passa a ser visto como uma regra, integrada a outras, voltada para resguarda-la de perigos frente aos quais ela se encontraria indefesa. Passa mesmo a sentar na cadeirinha de moto próprio e a afivelar o cinto sozinha.

A abordagem continente e pedagógica de pais sintônicos entre si produziu compreensão e crescimento. Mas nem sempre é o que ocorre: eles podem agir de forma negligente, desarmônica e competitiva. Nesse caso sequer perceberão —entretidos que estão em provar qual deles tem razão— que a criança, sentindo-se livre, assumiu o volante e segue em disparada.

Bolsonaro é a encarnação de um corpo adulto cuja mente é habitada e governada pela criança ressentida. Tudo que se antepõe “a sua ação-intenção” evoca a cadeirinha de contenção e provoca sua cólera, sua prepotência, sua agressividade e o torna voluntarista.

Não estamos diante de um bufão histriônico que bate bumbo na praça de uma pequena cidade do interior. O número que encena é a expressão da criança intolerante, assombrada pela cadeirinha, que se apresenta como o redentor que vai borrar todos limites e limitações, valendo-se de um discurso raivoso, apalhaçado e de fácil compreensão que consegue fascinar uma plateia desiludida e em penúria. É compreensível que passe a acompanhá-lo, formando uma legião de batedores de bumbo.

No início deste texto escrevi que os atos e as falas de Bolsonaro possuíam uma coerência conferida por um elemento organizador nuclear. Se as minhas especulações forem verdadeiras, ele não tem saída. Encurralado por uma mente que serve a criancinha com quem está identificado, que não aceita nem suporta modalidade alguma de “cinto”, ele precisa, para solucionar a ameaça que continuadamente o atormenta, criar um mundo em que todas as cadeirinhas sejam destruídas. Dai a razão deste escrito chamar-se "Por que haverá golpe".


Luiz Meyer, psicanalista, é autor de "Rumor na Escuta: Ensaios de Psicanálise" (Editora 34).

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