Três propostas para evitar uma tragédia irreversível na Amazônia

Ainda que Executivo não queira agir, há medidas de fácil execução que podem ser implementadas por governadores, Congresso e bancos, dizem pesquisadores

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Ilona Szabó de Carvalho

Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “A Defesa do Espaço Cívico”

Brenda Brito

Doutora em ciência do direito pela Universidade Stanford e pesquisadora associada ao Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia)

Daniel Azeredo

É procurador da República do Ministério Público Federal.

[resumo] Crises sanitária, decorrente da pandemia, e ambiental, com o crescente desmatamento, que atacam a Amazônia neste momento refletem erros do modelo político-econômico que predomina na região há décadas. A exploração predatória e o enfraquecimento da fiscalização podem ser revertidos com propostas de fácil implantação que não dependem do governo federal, como maior transparência e difusão de dados ambientais e leis mais rigorosas.

A Amazônia vive neste momento uma combinação de crises que reflete os erros históricos do modelo político-econômico que predomina na região.

Primeiro, a crise sanitária: quatro dos estados da região estão entre as cinco unidades da federação com mais casos de Covid-19 por 100 mil habitantes no Brasil, de acordo com dados organizados pelo site InfoAmazônia.

Segundo, a crise ambiental, que tem impacto direto na questão sanitária, já que o desmatamento segue aumentando e tende a piorar, com as queimadas, os problemas respiratórios. Para enfrentar as duas crises, temos que começar reconhecendo a falha grave de governança no país.

Faltando dois meses para o fechamento da medição do desmatamento anual, que ocorre de agosto de um ano até julho do ano seguinte, o sistema Deter do Inpe já indica uma área de alerta de desmatamento de 6.312 km², muito próxima a do ano anterior. Algumas estimativas indicam que a taxa final deve superar a do ano passado, de 10.129 km², a maior da última década e 34% superior à de 2018.

As duas crises refletem um histórico de decisões político-econômicas inadequadas para a vocação da região, que acabam privilegiando a expansão de uma economia predatória dos recursos naturais. Esse modelo beneficia a concentração de renda nas mãos de poucos e resulta em prejuízos para a população local, que sofre com índices socioeconômicos abaixo da média nacional.

Nem sempre foi assim. Entre 2005 e 2012, a Amazônia passou por avanços socioambientais e econômicos. Nesse período, o desmatamento na região caiu quase 80% e, ao mesmo tempo, o PIB agropecuário aumentou, mostrando que é viável conciliar economia e conservação.

Mas os setores mais retrógrados usaram de sua influência política para agir contra essas conquistas, já que se beneficiavam da ilegalidade e destruição do nosso patrimônio ambiental. A partir de 2019, o enfraquecimento dessas políticas ganhou um novo patamar.

São muitos os exemplos de medidas que provocaram a aceleração da destruição, como o enfraquecimento de fiscalizações com desarticulação de equipes ou com a redução de crimes ambientais autuados. Ou ainda a paralisação do Fundo Amazônia, fundamental no apoio financeiro para a redução de desmatamento.

Há também a tentativa de legalizar a grilagem em terras públicas associadas a desmatamento, que por pouco não se materializou com a medida provisória 910/2019. Uma forte reação da sociedade fez com que a MP perdesse a validade, mas o tema ainda está na pauta do Congresso Nacional, agora por meio do projeto de lei 2633/2020.

E toda essa estratégia foi exposta na fala do ministro Ricardo Salles durante a reunião ministerial do dia 22 de abril. Ele afirmou que a pandemia oferecia a oportunidade de deixar a boiada passar sobre as conquistas legislativas socioambientais construídas ao longo de décadas.

Isso é ruim para a imagem do Brasil e para a retomada dos investimentos internacionais —e uma pá de cal em acordos comerciais, como o União Europeia-Mercosul. E ainda vai piorar, já que a estação da seca está chegando na Amazônia, quando os desmatadores aproveitam para queimar as árvores derrubadas.

A fumaça das queimadas afeta a saúde de milhares de brasileiros em todo o território nacional, o que será especialmente cruel neste ano, diante dos problemas respiratórios em parte da população já provocados pelo coronavírus.

Os boicotes comerciais poderão ser muito maiores e com impacto devastador em um país já muito afetado pela Covid-19 e por uma crise econômica que se anunciava antes mesmo de a pandemia chegar.

Temos os satélites que mostram os problemas com clareza, as tecnologias para resolvê-los e os melhores cientistas do mundo alertando sobre os perigos eminentes e propondo soluções. O que nos falta é vontade política.

E assumindo que nosso Poder Executivo não é capaz ou não está disposto a agir, o que pode ser feito de imediato por governos estaduais, Congresso Nacional e bancos públicos e privados comprometidos com a redução do desmatamento?

A boa notícia é que há propostas concretas que, se implementadas, diminuiriam as ilegalidades e coibiriam ações criminosas. Selecionamos algumas que podem ser adotadas de forma independente e paralela. Em conjunto se fortalecem, mas não necessariamente dependem umas das outras.

A primeira é dar total transparência à base de dados que permitem o monitoramento mais detalhado do cumprimento da lei ambiental. Nesse momento, trata-se principalmente de tornar o CAR (Cadastro Ambiental Rural) 100% público.

O CAR é um mapa autodeclarado de imóveis rurais, com o qual é possível avaliar se há desmatamentos ilegais nessas áreas por meio do cruzamento com imagens de satélite. Hoje, os dados do cadastro não são totalmente abertos ou verificados e ainda podem ser usados para facilitar a apropriação ilegal de terras.

O Ministério Público Federal (MPF) estima que cerca de 30% dos registros são fraudulentos e identificou 10 mil imóveis no CAR sobrepostos a terras indígenas. Tais cadastros podem estar associados a crimes ambientais e violações de direitos humanos nessas áreas.

Existe um precedente para essa abertura de dados: a Declaração de Origem Florestal (DOF), um documento que certifica a origem da madeira e que já é público.

Muitos procuradores da República apoiam essa ação. O MPF tem usado a base do CAR, por exemplo, para apoiar ações civis públicas contra desmatamento ilegal, uma iniciativa chamada de Amazônia Protege.

Ao longo de três anos, já foram mais de 3.400 ações, um esforço que precisa ser continuado e fortalecido, especialmente no atual contexto de redução da fiscalização ambiental do Poder Executivo.

Para isso, é fundamental também abrir os dados de todos os pedidos de titulação de terras no Brasil e não apenas do Incra, que já estão em parte disponíveis na internet, mas especialmente os de órgãos de terra estaduais, que divulgam em média apenas 22% das informações obrigatórias por lei.

Outra boa notícia é que a abertura desses dados não depende apenas do governo federal. Os estados são os responsáveis pelo CAR em seu território e podem dar a devida transparência se realmente tiverem a intenção de assumir a linha de frente no combate ao desmatamento, como alguns governadores têm declarado.

A segunda proposta é que as informações verificadas no CAR devem ser uma condição para a aprovação do crédito pelos bancos. Muitas instituições financeiras continuam emprestando para empresas envolvidas no desmatamento ilegal. A tecnologia para que evitem participar de ações ilegais já está disponível hoje.

Basta cruzar as informações do CAR com dados de sistemas de monitoramento de desmatamento, como o Prodes, do governo federal, ou ainda da iniciativa MapBiomas, que também oferece dados de desmatamento com precisão.


Porém, a legislação ainda tem lacunas para a adoção dessa prática. Isso porque desde 31/12/2018 o acesso a crédito rural precisa obrigatoriamente do CAR, mas não há exigência de que as informações tenham sido validadas pelo órgão ambiental.

Assim, os bancos podem emprestar para imóveis com CAR que ainda não passou por verificação, ou ainda para áreas com CAR pendente, que estão passando por verificação e possuem inconsistências a serem corrigidas.

Além disso, os bancos deveriam exigir a adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) para os imóveis que possuem desmatamento ilegal.

Além dessa exigência, precisam também fazer checagens periódicas para garantir que regras ambientais sejam cumpridas ao longo do tempo e não somente na assinatura dos contratos. E, para estimular boas práticas, deveriam oferecer condições melhores de empréstimos para os imóveis sem pendências ambientais.

Por fim, devemos fechar as lacunas legislativas e de investigação para poder processar os “peixes grandes” raramente pegos por destruição ambiental. Um exemplo é a ausência na legislação do crime de grilagem de terras.

Operações conjuntas de órgãos ambientais, MPF e Polícia Federal já demonstraram a existência de grandes quadrilhas especializadas na invasão e venda de terras públicas, associadas a desmatamento ilegal. Os casos descobertos são processados como delitos ligados à formação de quadrilha, crimes fiscais e ambientais.

Do ponto de vista do roubo de terra pública, o tipo criminal aplicado tem pena muito baixa. Trata-se da invasão de terra pública com intenção de ocupá-la, crime previsto pela lei 4947/1966, mas cuja pena é de detenção de 6 meses a 3 anos.

Aqui há uma oportunidade para o Congresso Nacional contribuir com o combate à grilagem e ao desmatamento, propondo e aprovando uma lei para ampliar a pena desse crime e incluir agravantes, como grilagem em terras indígenas e unidades de conservação.

Temos pouco tempo para evitar que o desmatamento da Amazônia chegue ao limite indicado pela ciência a partir do qual a floresta sofrerá danos irreversíveis, o chamado tipping point. Os impactos para o Brasil e para o mundo da perda dos serviços florestais que a região oferece são brutais.

Alguns deles são o aumento da temperatura e perda de chuva no Brasil e países vizinhos. As três propostas apresentadas neste artigo podem ajudar a evitar essa tragédia. Elas são de fácil execução e não dependem do governo federal. O que falta, então, para serem colocadas em prática?

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