Como sair da névoa de fake news que coloca em risco a democracia

Para professor de direito, controlar acesso a redes sociais não é suficiente; é preciso reverter implosão da opinião pública

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Raphael Neves

Professor de direito constitucional da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e diretor científico do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento)

[RESUMO] Autor reflete sobre as limitações que o direito tem para lidar com o cenário atual de desinformação, ataques ao jornalismo profissional e ameaças à democracia. Em sua avaliação, é preciso fortalecer os mecanismos de formação e circulação da opinião pública para fazer frente a notícias falsas e bolhas ideológicas.

“A presente crise da democracia ocidental é uma crise do jornalismo.” A frase poderia ser dita hoje, mas foi escrita há um século pelo jornalista americano Walter Lippmann em "Liberty and the News" (liberdade e notícias).

É um livro que precisa ser lido e relido em tempos de fake news, ataques à imprensa e, claro, crise política. Pode nos ajudar a entender o impacto da internet e das redes sociais nas campanhas eleitorais e no aumento da polarização política, mas, sobretudo, a refletir sobre como os novos modos de comunicação têm implodido a opinião pública, colocando em risco a própria democracia.

Várias vezes cogitou-se que a proliferação das fake news tenha ajudado a campanha de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos. Também no Brasil e no México as eleições mais recentes foram marcadas pela disseminação de notícias falsas pelo WhatsApp.

Esses acontecimentos deram ensejo ao projeto de uma “lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na internet”, a chamada lei das fake news. Mas o fato é que o correto diagnóstico do problema precisa indicar as limitações que o direito tem para lidar com ele.

À medida que as pessoas mudam a maneira de se relacionar com as informações, a própria opinião pública entra em colapso. Chegamos a um ponto que os canais de informação, mesmo quando reagem e desmentem notícias falsas, já não conseguem gerar o resultado esperado, isto é, dar mais racionalidade ao debate público.

A pandemia causada pelo Sars-CoV-2 ajudou a escancarar a dificuldade que temos em separar o que é fato científico do que é mentira. A propaganda sobre as propriedades milagrosas da cloroquina, a tentativa de ocultar o número de mortos e os constantes ataques à imprensa são apenas alguns exemplos.

Antes disso, o bolsonarismo já havia se insurgido contra professores e universidades, ONGs que denunciam o aumento do desmatamento e até exibições artísticas. Não é por acaso que Olavo de Carvalho alcançou o status de “guru” nas redes de apoio ao presidente. Ele é quem melhor articula a tentativa de deslegitimar o conhecimento produzido por instituições formadoras de opinião.

O ataque às artes parece contraditório, pois acaba produzindo mais publicidade para o que se queria combater (pense na exibição do "Queermuseu", por exemplo). Mas importa, principalmente, outro resultado da reação conservadora: deslegitimar os espaços dentro dos quais a arte costuma ser reconhecida e validada. O que se tenta, portanto, também nesse caso, é demolir os mecanismos de formação da opinião pública.

É claro que o Brasil nunca foi um bastião da liberdade de imprensa e que Bolsonaro não é o primeiro presidente a atacar a mídia. Mas ele está na “vanguarda” desse processo mais amplo de implosão da opinião pública.

Sua chave de operação preferencial é a destruição dos canais tradicionais que produzem e distribuem conteúdo jornalístico. O fato de ter sido um deputado outsider provavelmente o ajudou a encontrar uma forma muito radical de atacar a divisão do trabalho que possibilita a formação e a distribuição da informação qualificada.

O futuro dirá se essa é a forma mais eficaz de atacar a democracia. Mandar fechar ou confiscar jornais, como ordenou Getúlio Vargas com O Estado de S. Paulo, instituir censores nas Redações, como fez a ditadura militar, ou ainda tentar regular a mídia com uma Lei de Meios, nos moldes do kirchnerismo, parecem medidas hoje um tanto antiquadas.

A implosão dos mecanismos de produção da opinião pública foi uma excelente oportunidade buscada por Bolsonaro para sacar pautas morais da cartola ou criar cortinas de fumaça enquanto sua agenda política permanece vazia.

A democracia representativa tal qual a conhecemos é uma forma de governo bastante exigente do ponto de vista da legitimidade. Para funcionar, pressupõe que os cidadãos tenham acesso aos fatos politicamente relevantes e sobre os quais decisões serão tomadas. Isso, contudo, não basta. Os cidadãos também precisam ter uma opinião sobre os fatos. É essa opinião informada, constituída no espaço público pelo contraste das interpretações, que influencia a tomada de decisão.

É claro que tal exigência soa bastante racionalista e pode até gerar certa desconfiança: será mesmo possível imaginar que a democracia funcione com tamanha expectativa de interesse e com tanta informação acumulada pelas pessoas? Não é tarefa das mais fáceis. Historicamente as instituições democráticas —como, por exemplo, Parlamentos, partidos políticos, direitos fundamentais que garantam a liberdade de expressão e de associação— foram criadas para atender essa exigência. Seria ingênuo achar que todo o aparato da democracia foi concebido tão somente como embuste.

"Liberty and the News", o ensaio de Lippmann, é dedicado a Charles Prestwich Scott, editor do jornal britânico Manchester Guardian (hoje apenas The Guardian), cuja carreira não só inspirou o autor como é um exemplo do papel exercido pelos jornalistas na democracia. A grande preocupação de Lippmann era o surgimento da propaganda do governo difundida por meio de algo que, para a época, representava uma novidade: a assessoria de relações públicas. O jornalista se pergunta como garantir a liberdade de informação e evitar a manipulação da notícia pelo Estado.

A indústria jornalística começava a se consolidar com diários de grande tiragem, e o espaço para pequenos jornais se reduzia. Por isso era importante saber como enfrentar a concentração das empresas jornalísticas e a diminuição da concorrência no “mercado de ideias” —o que aumentava o risco de a imprensa ceder aos interesses econômicos e políticos e deixar de cumprir seu papel de informar.

A massificação da indústria jornalística, porém, trouxe avanços à atividade. A fim de ampliar seu público, os diários passaram a adotar uma linguagem mais neutra. Foi o interesse comercial, e não o altruísmo, o fundamento da independência política da imprensa no século 20.

Em "Free Speech and Unfree News" (liberdade de expressão e notícias tuteladas), o historiador Sam Lebovic lembra que, nos Estados Unidos, entre os anos 1900 e 1920 (na chamada “era do progresso”), os jornais ganharam um tom impessoal, objetivo e confiável. A manifestação das preferências políticas ficou reservada aos editoriais e às colunas de opinião.

A padronização e a racionalização foram fundamentais para que temas de interesse comum a toda a esfera pública passassem a ser sistematicamente abordados pelos jornais e debatidos em suas páginas.

A reflexão de Lippmann concentra-se nesses aspectos, mas não para aí. Os governos, evidentemente, geram notícias falsas. E a concentração da imprensa e da mídia também continua existindo. A despeito disso, as redes sociais e a popularização dos celulares tornaram essas preocupações menos prementes.

Hoje qualquer um é capaz de produzir notícia em primeira mão, e a filmagem de um fato pode viralizar rapidamente. Embora ainda tenhamos dificuldade para saber o que acontece em uma guerra, para usar o exemplo de Lippmann, podemos acompanhar o drama das vítimas em tempo real, como foi o caso da refugiada síria Bana Al-Abed, que tuitou os horrores vividos por ela, uma criança, e sua família ao tentar escapar de Alepo.

Em segundo lugar, porque a internet permite que conteúdos sejam criados e divulgados sem muito custo, o que multiplicou as fontes de informação e quebrou a hegemonia que os grandes jornais exerciam sobre a difusão da notícia.

Finalmente, no lugar do jornal construído idealmente como um espaço comum e neutro, temos hoje um retorno ao conteúdo personalizado, construído graças a algoritmos que filtram nossas buscas e organizam nossas curtidas. Até o jornal The New York Times, que achou inadequado publicar a opinião de um senador que vai contra o que pensa a maioria de seus leitores, anuncia em sua página que pode “personalizar a organização das notícias considerando o histórico de leitura”.

Ou seja, os avanços da internet, em vez de produzirem uma esfera pública ampliada, provocaram a multiplicação de esferas quase privadas e uma enorme dispersão de temas.

Como é possível atender aos pressupostos da democracia nesse novo contexto? O quarto presidente norte-americano, James Madison, sabia que a unificação das antigas treze colônias em um único país poderia trazer um sério risco à liberdade. Segundo ele, quanto maior uma nação, mais difícil é determinar a verdadeira opinião pública e mais insignificante é o juízo de cada indivíduo.

Para Madison, o incentivo à livre circulação dos jornais seria um modo de contornar essa dificuldade. Ele pregava que cidadãos de todas as partes do país deviam debater temas comuns, o que fortaleceria sua influência sobre os governos e a própria opinião pública.

Não é por acaso que a liberdade de imprensa está assegurada na primeira emenda à Constituição americana: “O Congresso não fará lei relativa ao estabelecimento de religião ou proibindo o livre exercício desta, ou restringindo a liberdade de palavra ou de imprensa, ou o direito do povo de reunir-se pacificamente e dirigir petições ao governo para a reparação de seus agravos”.

Desde John Milton, passando por Stuart Mill, o liberalismo preocupou-se com a não intervenção do Estado em matéria de opinião e expressão. Mas Lippmann acredita que a tradição liberal errou ao designar apenas a liberdade de expressão como digna de proteção.

Para ele, a liberdade de imprensa precisaria ser assegurada dentro de um sistema de informação. É o fluxo de informações nutrindo a opinião pública que importa. Assim, a medida da liberdade deve ser a qualidade do que chega até os cidadãos como insumo para sua participação na tomada de decisão.

A internet, paradoxalmente, a despeito de ter criado imensas possibilidades de expressão e facilidades de acesso a jornais de todo o mundo, amplificou brutalmente o problema da transmissão de informações de boa qualidade. Como assegurar hoje que as pessoas se informem sobre os mesmos temas relevantes com dados confiáveis? A pulverização de assuntos e a proliferação de notícias anódinas transformaram-se em obstáculo para a qualidade do fluxo de informações.

A internet parece ter desfigurado a divisão de trabalho que está na origem do jornalismo profissional. Lippmann compreendeu como poucos que entre a testemunha ocular dos fatos e o leitor dos jornais há um vasto e custoso aparato de edição e transmissão. Essa mediação é relativamente simples quando se trata de reportar um jogo, uma viagem ou a morte de uma celebridade.

Em se tratando de questões complexas, como as que envolvem políticas públicas, por exemplo, a exposição precária dos fatos pode causar sérios problemas. Lippmann define por isso o trabalho do editor como “um dos ofícios verdadeiramente sagrados e sacerdotais na democracia”: o de decidir qual fato e qual questão, dentre inúmeros, são mais importantes para a formação da opinião, para os quais se deve direcionar toda a atenção. Sem muito exagero, ele afirma que o jornal é a “bíblia da democracia”.

Mais tarde, Lippmann acabou cedendo a uma grande desconfiança sobre a existência de pessoas bem informadas capazes de produzir uma opinião pública qualificada. Passou a considerar que mesmo os cidadãos versados nos mais diferentes assuntos podem ser manipulados e enganados por estereótipos.

Em trabalhos como "Opinião Pública", de 1922, e "O Público Fantasma", de 1925, o jornalista americano deixa para trás o que julga ser um ideal intangível e passa a defender uma visão mais elitista da política. Na nova ótica que adotou, cumpre aos cidadãos apenas referendar pelo voto, de tempos em tempos, os políticos, que são de fato os que tomam decisões substantivas e complexas a partir da opinião de experts.

Em "O Público Fantasma", ele expressa solidariedade ao cidadão comum, mas acredita que esse tenha sido sobrecarregado com uma tarefa impossível: “Ainda que os negócios públicos sejam o meu principal interesse e eu dedique a maior parte do meu tempo a acompanhá-los, não consigo encontrar tempo para fazer o que se espera de mim na teoria da democracia; isto é, saber o que está acontecendo e ter uma opinião que vale a pena expressar a respeito de cada questão com a qual se defronta uma comunidade que se autogoverna”.

A mudança de rota gerou a reação de um dos maiores filósofos americanos, o pragmatista John Dewey, em um livro magnífico de 1927, "O Público e Seus Problemas". O debate Lippman-Dewey é um dos grandes momentos da teoria democrática e mereceria ser estudado pelos que acreditam que a tradição liberal nos Estados Unidos se resume apenas à defesa incondicional do individualismo.

Dewey compartilha da visão de Lippman de que a sociedade contemporânea transformou radicalmente o papel político dos cidadãos. Em um capítulo sobre o “eclipse do público”, o filósofo reconhece que as condições de fundação da democracia americana já não são as mesmas que Alexis de Tocqueville descrevera tão bem no século 19, quando as pessoas em pequenas vilas se reuniam para discutir e deliberar sobre assuntos locais.

Dewey, entretanto, recusa a saída elitista adotada por Lippmann, ao afirmar que o conhecimento é produto da sociedade e não pode ser entendido em termos meramente tecnocráticos. Quem usa o sapato é quem sabe onde lhe aperta, ele diz, mesmo que seja o sapateiro-especialista a pessoa mais indicada para resolver o problema.

Sem o input das pessoas, sem que elas possam articular suas próprias necessidades, o trabalho de experts não tem sentido: é preciso que alguém sinta antes o calo doer para que o sapateiro tenha o que fazer.

O que interessa aqui é a convergência de ambos em relação à necessidade da divisão de trabalho para a produção e disseminação da informação. Sem dispor da eloquência de Lippmann e sem entrar em detalhes sobre o papel do jornalismo na execução dessa tarefa, Dewey reitera que a opinião pública será meramente opinião, em sentido pejorativo, se for intermitente, isto é, quando os métodos de investigação e divulgação não forem permanentes.

Em um exemplo que poderia se encaixar perfeitamente na discussão sobre a cloroquina, Dewey diz que nada garante que o procedimento bem-sucedido usado por um médico para tratar de um paciente durante uma emergência possa ser usado em outras situações, pois a cura de uma dada doença só pode ser encontrada por meio de uma investigação contínua. De modo semelhante, ele conclui, a opinião pública sobre questões políticas precisa se manter em alerta constante.

Assim como o médico socorrista conta com a ajuda de especialistas e pesquisadores para que todo o conhecimento produzido chegue até ele no pronto-socorro, o cidadão comum pode se valer de uma vasta rede de informação para se posicionar sobre determinada ação do governo.

Além do jornalismo, também fazem parte desse sistema de informação universidades, institutos de pesquisa, associações da sociedade civil e órgãos especializados do próprio Estado. Juntos, eles mantêm o fluxo de informações que alimenta a esfera pública.

O filósofo Jürgen Habermas —autor do clássico "Mudança Estrutural da Esfera Pública", de 1968— já expressava em 2006 preocupação com a internet em um texto sobre comunicação na sociedade de mídia. Se em regimes autoritários a internet pode servir para driblar a censura do Estado, nas democracias ela tende a produzir uma imensa fragmentação da deliberação pública.

É por isso, diz Habermas, que “dentro das esferas públicas nacionais estabelecidas, os debates online dos usuários da web apenas promovem a comunicação política quando os grupos de notícias cristalizam-se em torno dos pontos focais da imprensa de qualidade, como, por exemplo, jornais de circulação nacional e revistas políticas”.

Quais alternativas para aprimorar a democracia e tentar restabelecer o espaço da opinião pública diante desses paradoxos criados pela internet?

Uma delas implica assumir que os cidadãos têm agora um ônus ainda maior do que aquele sinalizado por Lippmann nos anos 1920. Ou seja, de que as pessoas precisam ser mais críticas e questionar de forma incessante as informações que recebem.

Em Atenas, a tragédia tinha a função de confrontar os cidadãos com dilemas morais, como os de Antígona e Creonte, e prepará-los para emitir juízos políticos e governar a cidade. Para tomar um termo emprestado da Antiguidade, talvez seja preciso uma nova “virtude cívica” a fim de fazer com que o público que recebe o link ou o texto falso pelo celular dele suspeite sempre e busque em páginas mais confiáveis a validação de tal conteúdo.

É com uma ponta de esperança que observamos o aumento de buscas e acessos aos grandes portais jornalísticos durante a pandemia. O problema é que essa prática precisa ser constante, do contrário, não há discurso racional que possa mudar no curto período das campanhas eleitorais no Brasil uma “opinião” falsa articulada e martelada ao longo de anos.

Também os sites de checagem dos fatos tentam recompor, no mesmo ritmo frenético em que as mentiras são criadas, os mecanismos de validação da informação. É uma medida bastante positiva, mas insuficiente, pois é sempre reativa —consiste o tempo todo em desmentir—, enquanto a informação verdadeira resta a ser produzida.

No entanto, é ingênuo acreditar que a informação relevante e de qualidade possa circular sem estruturas adequadas e que a opinião pública será formada espontaneamente. Ao invés de debatermos temas comuns e estarmos abertos a diferentes posicionamentos, criamos bolhas de pessoas ensimesmadas que servem para retroalimentar ódio e ressentimento.

Há um século, Lippmann apostava no fortalecimento da imprensa profissional e no fim da complacência com o mau serviço jornalístico. O avanço viria quando se tivesse aprendido a buscar a verdade, revelá-la e publicá-la ao invés de discutir ideias em uma “névoa de incerteza”.

Para sairmos da névoa em que nos encontramos hoje, será preciso mais do que controlar o acesso às redes sociais. É preciso reconstruir as fontes de onde brota a opinião pública e os canais que a fazem circular.

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