Jorge Ben Jor lidera revolta contra totalitarismo em conto distópico

Dodô Azevedo imagina um Brasil devastado por governo fundamentalista e pandemia em 2032

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Dodô Azevedo

Cineasta e roteirista, edita o blog Quadro-negro, da Folha, e ministra o curso O cinema de Spike Lee

[RESUMO] Em 2032, na noite em que faria 90 anos, Jorge Ben Jor, único morador do Copacabana Palace, isolado pelo governo, inicia operação para libertar o país. No conto " Adúmáadán", autor imagina um Brasil distópico castigado pelo totalitarismo e pela pandemia, que dizimou pobres e negros.

Adúmáadán

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No ano de 2032, o governo decidiu que Jorge Ben Jor completaria 90 anos no dia 22 de março. Embora fechado há mais de uma década, o Copacabana Palace iluminou-se por dentro e por fora. Jorge Ben Jor, que surpreendente aceitou a determinação do Estado, era, já não se lembrava mais há quanto tempo, seu único morador.

Na ilustração, o músico Jorge Ben Jor usa uma roupa de astronauta. Ao fundo, detalhes da arquitetura do Copacabana Palace
Ilustração de Adams Carvalho - Adams Carvalho

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Jantou com a família na Sala do Amor, nome que o governo deu para o lugar em que Jorge podia receber visitas. Era uma sala especial do hotel, esterilizada, toda forrada em plástico branco. Para entrar na Sala do Amor, era necessário vestir um traje que Jorge mesmo achava parecido com o de um astronauta. No jantar, conheceu o primeiro neto, um bebê bochechudo envolto em plástico branco.

Comeram, beberam, riram, trocaram presentes, frascos de alfazema, e falaram do Flamengo, que conquistara seu 6º título mundial de clubes no ano anterior e mantinha-se como uma das maiores potências do futebol no mundo inteiro.

Jorge perguntou as coisas de sempre: “Como estava o Salgueiro?”. Quadra da Escola de Samba continuava fechada. “E como será a festa para são Jorge neste ano?” Igrejas também continuavam fechadas. “Terreiros também?” Terreiros também.

Terminado o jantar, e o tempo de visita, a família, grande, despediu-se. Os trajes de astronauta que todos vestiam impediam o toque de pele com pele. Já estavam acostumados. Foram embora em um veículo do governo. Uns poucos fogos de artifício estouraram no céu. Os que passeavam pelo calçadão aplaudiram.

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O brasileiro vinha batendo palma para tudo. Aquela era uma noite de verão de um dos melhores anos de nossa história, e o fim de uma das melhores décadas pela qual o país já havia passado. A economia dera um salto extraordinário. Bolsa de valores e bancos de investimentos comemoravam recordes impensáveis. O desemprego chegou a níveis mínimos. A saúde vivia seu auge. Educação e segurança pública também.

Os índices de analfabetismo despencaram. Os de miséria também. Não se viam mais mendigos nas ruas. Em 2032 o Brasil era, finalmente, uma potência mundial.

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A saúde havia dado um salto porque os hospitais públicos agora estavam vazios. O índice de analfabetismo despencara porque escolas públicas estavam vazias. E também estavam vazias as ruas, sem moradores de rua. Até presídios agora estavam abandonados, suas estruturas transformadas em novos shoppings centers. O turismo havia deslanchado, e turistas andavam felizes, viajando de norte a sul do Brasil, curtindo nossas praias, cerrados, montanhas e chapadas.

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O que vivia seus melhores dias era o turismo interno. Já havia dez anos que turistas estrangeiros estavam proibidos por seus países de virem ao Brasil. E já havia dez anos que turistas brasileiros foram impedidos de entrar em países estrangeiros.

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Nossos pontos turísticos estavam lotados. E também estavam lotados nossos cemitérios. Em pouco mais de 10 anos, após a primeira, a segunda e uma terceira e definitiva onda, a pandemia de Covid-19 havia dizimado 62% da população. Negros eram a maioria das vítimas. Em 2032, apenas 1,3% dos brasileiros eram negros ou pardos. E o Brasil estava radiante como nunca.

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Batizaram-se todos os cemitérios do país com o mesmo nome: “Cemitério dos Pretos Novos”. Eram numerados, do “Cemitério dos Pretos Novos 000000001”, em Brasília, ao “Cemitério dos Pretos Novos 10000000”, no Rio de Janeiro. Vida que começa do zero, termina no zero, pensava Jorge toda vez que se pegava refletindo sobre o assunto.

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A maioria dos negros ainda vivos trabalhava em atividades domésticas ou públicas, como garis e lixeiros. O restante —artistas, acadêmicos, esportistas— estava protegido pelo Estado, ou essa era a palavra que se usava pelo governo. Obrigados a ficar em isolamento social para evitar contaminação pelo vírus. A casa de Jorge Ben Jor já era, antes mesmo da pandemia, o Copacabana Palace. E o Brasil estava radiante como nunca.

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Doze anos antes, em 2020, a pandemia amedrontou um país que já transpirava medo desde 1538, quando o português Jorge Lopes Bixorda, arrendatário de pau-brasil, traficou para a Bahia os primeiros escravos africanos. Em 2020, quando o número de mortos pela Covid-19 chegou a mais de mil por dia, a imprensa orientou diariamente de forma grave e veemente: “Fiquem em casa”.

Mas hoje, em 2032, já não havia mais imprensa no Brasil. Todas as redes sociais também haviam sido banidas por conspirar contra o país. Os brasileiros eram informados a todo momento por uma espécie de WhatsApp estatal chamado “O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota”.

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Notícias eram enviadas a todo momento para o celular de cada cidadão brasileiro. Provas de que a Terra é plana. De que a Covid-19 era uma invenção da China para dominar o mundo. De que Marielle Franco tinha sido a chefe da maior rede de tráfico de drogas do Rio de Janeiro.

Também eram enviados artigos com títulos como “O mito da raça: por que militantes negros são racistas” ou “A esquerda é fetiche da burguesia”, escritos por intelectuais que nunca se interessaram, e por isso nunca souberam o significado de palavras como “Zazueira” ou “Exú”, e agora eram empregados pelo governo.

Vídeos mostravam desde mamadeira com bico em formato de pênis a sexo grupal em universidades. Além de um trecho do filme “Bacurau”, no qual americanos são mortos por um brasileiro transexual. Vídeos divulgados como exemplo de como era o Brasil antes do conservadorismo, e a Covid-19, chegarem ao poder.

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O número de mortos parou de ser divulgado quando chegou a 20 mil por dia, lá pelos idos de 2026. Percebeu-se que quanto mais pessoas morriam, melhor a vida dos vivos ficava. Nesta época, o slogan do governo era “Vai Passar”. Em 2027 foi substituído por “Vamos Viver Nossas Vidas”.

Ideia do próprio presidente, que Jorge Ben Jor chamava secretamente, para si próprio, de “espiga de milho”. Jorge mantinha seu celular desligado para não receber as notícias do governo. Jorge não estava feliz. Mas o Brasil estava radiante como nunca.

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No Copacabana Palace, Jorge Ben vivia a sua vida. Como ele foi parar ali? Tudo começou quando, aos domingos, com 8 anos, saía do subúrbio com a família para passear pela zona sul. Um dia, passou de carro pela porta do hotel e gritou, “olha o castelinho!”. E então passou a todo dia sonhar em morar em um castelinho. Conseguiu realizar seu sonho 63 anos depois.

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Foi por isso que em 2020, no início da pandemia, quando o Copacabana Palace fechou as portas, Jorge, que finalmente realizara o sonho de morar em um castelinho, recusou-se a deixar o hotel. Naquele ano, da noite para o dia, viu-se sozinho, em silêncio, ocupando uma das 239 suítes e apartamentos, todos deixados às pressas.

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Com o tempo, Jorge foi se acostumando com silêncios e vazios. Mas no início era algo que o incomodava demais. Tanto quanto a falta do que fazer durante o isolamento social.

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Para todo o Brasil, o isolamento social terminou no mesmo ano de 2020. Depois, foi-se viver o novo normal. A população acostumou-se rapidamente com o número de mil mortos por dia. Abriu-se o país. Aumentou-se a quantidade de infectados. Mesmo quando o número de mortos chegou a 5.000 por dia, parecia afetar-se apenas quem perdia algum parente ou pessoa próxima para a doença. No Brasil, os efeitos do afeto cada dia eram mais curtos.

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Quando, em 2021, recusamos uma vacina desenvolvida pela China, chegamos a 8.000 mortos por dia e a um total de 100 milhões de infectados, todos os países do mundo fecharam sua fronteiras a brasileiros. Houve manifestações nacionalistas na rua. Pessoas orgulhosas, vestidas de verde e amarelo, todas infectadas pela Covid-19. “We don’t need you!”, diziam a maioria dos cartazes.

Jorge Ben Jor via tudo por trás de uma cortina em seu quarto. Já havia reparado na ausência de negros nas passeatas nacionalistas que aconteciam em frente ao hotel desde 2020, antes da pandemia. Lembrava com horror o dia em que um senhor com a bandeira do Brasil havia arrancado da praia as cruzes que lembravam os mortos na primeira onda do coronavírus.

Em 2021 era evidente: da janela, não se viam mais negros na rua. Jorge olhava aquelas pessoas raivosas e pensava: “Eu quero ver quando Zumbi chegar”.

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Zumbi nunca chegou. E a Jorge Ben Jor, em 2021, não restava outra atividade que não fosse caminhar pelos corredores e salões do hotel. Todo dia, ao acordar, vestia um EPI (equipamento de proteção individual) que ele havia improvisado com plástico e fita adesiva. Depois, se punha a caminhar pelo hotel vazio. Um astronauta invertido, explorando o planeta onde ele mesmo vivia, mas não reconhecia.

Em um ano sem limpeza apropriada, o hotel havia se transformado em algo verde e amarelo. Ricas porcelanas cobertas de poeira amarela. Água verde nas torneiras de prata.

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Passava as noites na internet, se informando. Quando cansou da internet, ou, como anos depois ele mesmo reconheceria, quando sentiu falta de afeto físico, resolveu ir à biblioteca do hotel atrás de livros.

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Quando chegou à enorme biblioteca, descobriu, estupefato, que todos os livros reais haviam sido substituídos por objetos cenográficos. Lombadas de plástico imitando livros.

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Sem o que fazer, impôs-se, então, uma missão. Entrar em cada um dos quartos abandonados e revirar armários e gavetas atrás de objetos perdidos. De astronauta de um mundo em que ele mesmo vivia a escafandrista de um mundo submerso.

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Dedicou todos os dias do ano de 2021 a essa missão. As manhãs Jorge continuava dedicando a caminhadas matinais pelo hotel. Religiosamente, passava pelo hall que exibia a galeria de famosos que se hospedaram ali, desde 1923.

Fotos enormes e empoeiradas de quatro metros de altura, preto e brancas, autografadas. Errol Flynn, Gene Kelly, Frank Sinatra, Grace Kelly, Marilyn Monroe e Alfred Hitchcock nas paredes do salão verde. Bono Vox, Janis Joplin, Mick Jagger, Burt Reynolds e Al Pacino e princesa Diana no salão amarelo.

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Não havia negros nem brasileiros nas paredes. Mas Jorge já havia se acostumado com as idiossincrasias do castelinho que escolheu para viver. Amanhã seria um novo dia, pensou.

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No final das manhãs, ele ia até a sala onde os registros de hóspedes, da época em que eram escritos à mão, estavam arquivados. Passava horas manuseando-os. Adora caligrafia antiga. E o tipo de nome dos hóspedes que fizeram a história do hotel. Albert, Shultz, O’Rylley, Chesterton, McTiernan, Weintraub.

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Na parte da tarde, trabalhava. Entrava nos quartos abandonados. Lá dentro, agia com cerimônia. Astronauta pisando na Lua. Escafandrista nos destroços do Titanic. Silêncio.

Tudo o que encontrava, examinava, e, antes de colocar no saco plástico para levar até o achados e perdidos que havia organizado no salão nobre, anotava: “Mocassim R. Newbold. Pé direito. Falta o pé esquerdo. Uma camisinha usada. Nascer branco é metade do caminho andado. Um anel de prata. Quinta essência. Uma foto de uma família europeia posando e sorrindo ao lado de cadáveres de animais silvestres durante safári no Pantanal. Amanhã será um novo dia”.

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Porém, o item mais encontrado nos quartos abandonados no fundo daquele mar de ar eram remédios. Muitos remédios. Para pressão, para depressão, para coração, para fígado, para engordar, para emagrecer. Jorge os separava, levava tudo para o salão principal, onde mantinha seu achados e perdidos.

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No fim do ano de 2022, a montanha de sapatos, masculinos e femininos, que Jorge havia encontrado chegava ao teto de 8 metros do salão principal. Uma coisa o intrigava, e ele se sentia bem percebendo que ainda tinha a capacidade de ficar intrigado com algo: todos os sapatos que encontrava estavam sem o seu par.

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Naquele ano viu pela TV o Flamengo ser campeão do mundo mais uma vez, em um Maracanã que havia passado a chamar-se Ustra Arena, lotado. Jorge notou a ausência de negros no estádio. Naquela noite, não dormiu bem.

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Naquela noite, Jorge foi acordado por gritos que vinham da rua. Levantou da cama, olhou pela janela. Era um jovem homem negro muito alto e muito forte, nu, correndo pelo asfalto, gritando por ajuda. Corria e olhava para trás. Quem quer que o tivesse perseguindo, Jorge não viu. Porque foi direto ao telefone, ligar para a polícia. Que, pela primeira vez, não o atendeu. Quando voltou à janela, já não havia mais ninguém na rua. Foi dormir, e acordou pensando que talvez tudo tivesse sido um pesadelo.

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No dia seguinte, passeando pela ala do museu do Carnaval, parou na frente de quatro manequins em formato de mulheres negras, vestidas em pequenos biquínis de plumas. Geralmente, ele adorava passar por elas. Lembrava do Carnaval, lembrava da beleza da mulher negra. Dessa vez, ele mesmo não soube porque, achou feio as mulheres seminuas. Foi até o achados e perdidos e as vestiu com roupas esquecidas por hóspedes.

Em seguida, as pegou no colo, uma por uma, e as dispôs nas cadeiras em volta de sua mesa de jantar. Passariam a ser suas companhias de refeições. Mas, quando as posicionou, achou que ainda faltava algo.

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Era “A Redenção de Cam”, quadro de Modesto Brocos que brilhava no salão verde do terceiro andar. A pintura, de 1895, em excelente estado, foi também transportada com o mesmo cuidado para a sala de jantar. E a partir desse dia, Jorge Ben Jor fazia suas refeições, embalagens congeladas fornecidas pelo governo, acompanhado das manequins e de “A Redenção de Cam”.

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Em abril de 2024, fez quatro anos que não se ouvia música dentro do Copacabana Palace. Como em todas as noites antes de dormir, Jorge fazia sua oração a são Jorge e, antes de fechar os olhos, olhava para seu violão, encostado em um canto. Mas o violão não o via.

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No mesmo ano, Jorge Ben Jor notou, pela janela, que já não havia mais polícia nas ruas. O brasileiro passeava armado. Crianças iam com armas de brinquedo para a praia. Suas mães conversavam animadas na areia, tomado sol com Glocks 45 customizadas; umas floridas, umas verde e amarelas. Homens ricos chegavam com metralhadoras cromadas para jogar futevôlei. Jorge Ben Jor olhava para a alegria das pessoas. Não via nenhum negro.

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Em 2025, o governo construiu a Sala do Amor, e Jorge Ben Jor pode, finalmente, receber visitas de sua família. Foram os primeiros negros que viu em anos. As visitas eram monitoradas por agentes do governo. Jorge achou melhor não perguntar porquê. No mesmo ano, o Congresso aprovou um pacote de proibição de termos e números considerados pagãos. Foram, então, proibidas palavras indígenas, iorubás e números como o 47. Amanhã seria um novo dia, pensou Jorge.

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No mesmo ano, todas as emissoras de TV saíram do ar. Permaneceu apenas o canal OFF, que durante 24 horas mostrava pessoas brancas e felizes praticando esportes entre a natureza.

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No mesmo ano, explorando os porões do hotel com seu traje de astronauta, Jorge Ben encontrou um arquivo de jornais brasileiros, impressos, dos anos 80 e 90. Recortou um trecho de uma coluna escrita pelo jornalista Paulo Francis, para o jornal Folha de S.Paulo, na data de 16/09/1984.

Dizia o trecho: “As hordas estão nos portões dos ricos, dos bem-de-vida, dos meramente confortáveis, ou até dos que meramente comem, e o crescimento populacional, a impossibilidade de capitalismo e sovietismo atenderem a esses povos auguram um desfecho violento, uma série de desfechos. No ano 2000 haverá 6 bilhões de pessoas na Terra. Se a miséria gera hoje esse massacre generalizado, o que teremos dentro de meros 16 anos senão também uma geométrica progressão da violência?”.

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O futuro temido por Paulo Francis não aconteceu. As hordas não atravessaram os portões. No Brasil, finalmente reinava a paz. Todos eram cidadãos de bem. Brancos, armados, bem alimentados, felizes e infectados.

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Na manhã do dia 27 de outubro de 2027, Jorge Ben Jor acordou com um ensurdecedor barulho de pássaros. Como se milhares de gaivotas estivessem, em grupo, sobrevoando o Copacabana Palace. Ele pulou da cama, vestiu seu traje, e foi ao terraço ver. Não eram pássaros. Eram pipas. Milhares de papagaios de papel. Vinham dos morros da região. Pavão-pavãozinho, Cantagalo, Tabajaras, Cabritos, Babilônia, Chapéu Mangueira. Pipas flutuando frenéticas sobre o hotel. Quando Jorge tentou entender, todas as pipas caíram em cima dele, como uma chuva de pássaros que desmaiaram de cansaço. Ou como algo combinado, arquitetado.

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O chão do terraço do Copacabana Palace, brilhando sobre o sol, ficou coberto de pipas de todas as cores. Ainda tentando entender, Jorge agachou-se e pegou uma delas. “Estamos vivos”, escrito a mão, estava numa pipa. Em outra: “Estamos aqui”. Em outra: “Não estamos infectados”. Em outra: “As favelas resistem.” Em outra: “Charles anjo 45”. Em outra: “Favelas expulsaram o vírus em 2021”. Em outra: “O negro é lindo”. Em outra: “Não nos deixam sair”. Em outra: “Agricultura celeste”. Em outra: “Somos pacientes, assíduos e perseverantes”.

Em outra “Escolhemos com carinho a hora e o tempo do nosso precioso trabalho”. Muitas traziam escrita a frase “Viemos te buscar” ou “Temos um plano”. Em muitas outras havia números, símbolos e textos. Quando percebeu tratar-se de um gigantesco quebra-cabeça, levou todas as pipas caídas para dentro do hotel.

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Jorge Ben Jor passou um mês trabalhando arduamente na montagem do quebra-cabeça feito de pipas, no chão de carpete do salão verde do Copacabana Palace. Quando ficou pronto, Jorge percebeu uma extensa equação formulada por Paracelso, que envolvia enxofre, ouro, mercúrio e chumbo.

E trechos de textos, como do artigo “A Identidade como Fenômeno”, de Chesmehzangl, de um texto de José Agripino de Paula sobre Gàba ara, do sagrado Corpus Hermeticum de Hermes Trismegisto, de livros da fase budista de Crowley, dos escritos em iorubá sobre troca de almas, de artigos hindus sobre religamento quântico, algumas àwon orin transcritas em português, e instruções para a confecção de um Àtàkàn dourado.

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Ser resgatado para resgatar os seus. Jorge pôs-se a recolher ouro e outros metais dos sapatos e fivelas e joias encostados no salão de achados e perdidos. Qualquer outra substância, ele tinha de sobra nos remédios dos deprimidos e ansiosos ex-frequentadores do hotel. E melhor, tinha todo o tempo do mundo. Montou um laboratório de alquimia no Golden Room do Copacabana Palace e lá pôs-se a trabalhar escondido. Em 2027, apenas dois anos após a proibição de termos indígenas e africanos, já não havia no país um brasileiro que soubesse o significado, por exemplo, da palavra Adúmáadán. Amanhã seria um novo dia, pensou.

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O que Jorge Ben Jor havia batizado de Operação Paracelso ficou pronto cinco anos depois de trabalho duro. Em 2032, na noite de seu aniversário de 90 anos, Jorge jantou com a família, conheceu o neto bochechudo, foi até a janela assistir à queima de fogos e recolheu-se em seu laboratório secreto. Lá, despediu-se sem pressa e com tristeza de sua pele preta.

A única coisa que achava ruim no plano dos aquilombados sobreviventes que lhe enviaram as pipas era ter que pré-ocupar um corpo de um branco. Para Jorge Ben Jor, ser negro era uma alegria. Mas salvar os seus também era. Amanhã seria um novo dia.

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Quando amanheceu, chegaram os agentes federais. Prepararam a Sala do Amor para a visita mais ilustre de aniversário de 90 anos. O próprio presidente, o espiga de milho, que foi pessoalmente lhe dar um abraço e ser filmado para ser postado no WhatsApp estatal.

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Deram um abraço sob flahses. Jorge sabia que teria que tirar o traje de astronauta para dar o abraço, porque assim exigia o protocolo presidencial de um líder que era contra máscara ou qualquer outro equipamento de proteção contra vírus. Quando as peles de Jorge Ben e do presidente se tocaram, Jorge Ben Jor, ou o que os agentes federais achavam que era ainda Jorge Ben Jor, soltou um grito: “O que está acontecendo aqui?! Este não sou eu! Este não sou eu! Este não sou eu!”.

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O presidente, ou o que os agentes federais achavam que era ainda o presidente, recuou. Guardas o protegeram do surto da pessoa que eles achavam que ainda era Jorge Ben Jor, que se debatia, dando socos na própria cabeça e corpo, gritando: “Me tirem daqui! Jesus! Sou eu! Não estão reconhecendo? Eu não sou negro! Eu não sou negro!”.

Olhava para o próprio corpo e gritava de horror: “Eu não sou negro!”. Girou e espumou, até que foi sedado pela equipe de segurança e carregado desmaiado de volta para o quarto.

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O presidente, ou aquele corpo branco agora ocupado por Jorge Ben Jor, foi recolocado às pressas no carro presidencial. Perguntaram se estava bem. Respondeu, muito sério, que sim. O comboio presidencial partiu do Copacabana Palace de volta à base do Exército ali perto, no bairro da Urca. Ao chegar na base militar, o corpo branco do presidente agora ocupado por Jorge Ben Jor disse precisar tomar um banho.

Quando ficou sozinho, cheirou-se por todo o corpo, do sovaco à virilha, e quase desmaiou de nojo. Tomou um banho de uma hora. Pediu oito frascos de alfazema. Banhou-se com o perfume até se fartar. Depois pediu um violão. Estranharam, mas o presidente sempre fora, de qualquer forma, uma pessoa estranha.

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Sentado na cama, violão na mão, Jorge Ben Jor, agora ocupando o corpo do presidente, sorriu, porque veio a lembrança de que, no Copacabana Palace, o corpo negro de Jorge Ben Jor, vestido com o Àtàkàn dourado, agora ocupado pelo espiga de milho, iria, a qualquer momento, acordar gritando, horrorizado, que “não era negro”.

E que ele seria sedado novamente. E novamente. E todos os dias até o fim dos dias daquele corpo de 90 anos. Talvez, passando a viver até o fim da vida em um corpo negro, o espiga de milho aprendesse algo. Talvez não.

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No quartel da Urca, sentado na cama presidencial, violão e poder na mão, Jorge Ben Jor olhou-se no espelho, e por um momento se desesperou com a cor branca daquela pele. Então pensou em Paracelso, em Jorge Lopes Bixorda, na torcida do Flamengo, em Paulo Francis, nas pipas que haviam caído desmaiadas em cima dele, nos sobreviventes aquilombados, na Agricultura Celeste, no neto bochechudo embalado em plástico branco, em São Jorge, no 000000001, no 10000000, na “A Redenção de Cam”, em tudo o que passou confinado anos e anos no castelinho que havia sonhado desde a infância, e pôs-se a tocar violão. Compôs uma canção que batizou de “Eu Sou a Horda”. O Brasil que se preparasse. Porque amanhã seria um novo dia. Adúmáadán.


A palavra adúmáadán, título do conto, significa “negro e lindo” em iorubá, idioma da família linguística nígero-congolesa

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