Racismo e desigualdade moldam autocracia burguesa no país, escreveu Florestan Fernandes

Nascido há cem anos, sociólogo foi um dos grandes intérpretes da resistência do Brasil à democratização

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Antonio Brasil Jr.

Professor do Departamento de Sociologia da UFRJ e autor de "Passagens para a Teoria Sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani" (Clacso/Hucitec)

[RESUMO] No centenário de nascimento do sociólogo, comemorado nesta quarta-feira (22), pesquisador revisita seu legado intelectual, explorando suas reflexões sobre o papel das iniquidades e dos privilégios na sociedade brasileira, e argumenta que levar seu pensamento a sério é urgente em tempos de ascensão autocrática.

“Como se fosse uma hidra, a desigualdade racial se recupera a cada golpe que sofre.” Essa frase, extraída do livro “A Integração do Negro na Sociedade de Classes”, publicado por Florestan Fernandes em 1965, condensa bem um aspecto aparentemente desconcertante da sociedade brasileira.

Nossas desigualdades —a racial é uma de suas mais evidentes— se recompõem permanentemente, mesmo em meio a transformações estruturais profundas. Esse nó, simultaneamente teórico e político, enfrentado de modo corajoso e criativo com os recursos da sociologia, é o que comunica a obra de Florestan Fernandes (1920-1995) aos seus leitores no centenário de seu nascimento, comemorado nesta quarta-feira (22).

Entender como e por que a formação do capitalismo entre nós não gerou uma sociedade minimamente civilizada e democrática foi uma verdadeira obsessão de Florestan. Obsessão que, claro, exprimia sua própria trajetória social, uma penosa e difícil travessia de suas origens sociais plebeias para o posto de catedrático de sociologia na USP.

Florestan Fernandes sentado em uma poltrona florida, com a mão direita apoiada em uma bengala
O sociólogo Florestan Fernandes em 1995 - Eder Luiz Medeiros - 20.jan.1995/Folhapress

Chamar a atenção para os limites que a sociedade brasileira impunha —e impõe— a uma efetiva igualdade de oportunidades para os seus diferentes grupos e classes sociais é um aspecto crucial de seu pensamento. O que se liga a uma pergunta básica, que percorre a sua obra do começo ao fim: como é possível explicar uma sociedade que se organiza contra a democratização?

Esse incômodo sempre acompanhou a teorização de Florestan, colocando-o em tensão com os seus contemporâneos. Afinal, como suas pesquisas colocaram em evidência ao longo dos anos, as desigualdades raciais não se resolveriam automaticamente com as mudanças sociais, a urbanização acelerada não faria os nossos problemas mais agudos de integração social desaparecer —pelo contrário, tornaria a pauperização e a anomia mais explosivas— e a industrialização recriava desigualdades antigas e suscitava novas, além de aprofundar as formas de dependência em relação às economias centrais.

Tudo somado, Florestan analisou o caso brasileiro como bastante revelador do que denominou de autocracia burguesa, uma forma de expansão do capitalismo típica das sociedades periféricas, que se mostrava compatível com níveis alarmantes de desigualdade social, racial e regional.

Entender como a autocracia burguesa se realizou na sociedade brasileira ao longo de sua formação histórica foi o grande feito de “A Revolução Burguesa no Brasil” (1975), livro que completou 45 anos e acaba de ser relançado pela editora Contracorrente.

Ainda que a obra de Florestan seja longa, múltipla e heterogênea, reputo que não é de todo descabido tomar os dois livros a que me referi aqui como os principais marcos da atualidade de seu pensamento.

Em vez de tomá-los como representativos de diferentes etapas de sua obra, parece-me mais produtivo lê-los conjuntamente como explorações, feitas por meio de diferentes prismas, do problema da autocracia burguesa. O termo só aparece em toda a sua nitidez e seu aprofundamento conceitual no livro de 1975, mas seu arco de problemas já está presente com vigor na pesquisa sobre o negro.

É na investigação sobre as relações entre brancos e negros em São Paulo que Florestan, por meio de uma investigação, em suas palavras, por dentro do drama negro, descortina uma série de mecanismos sociais que, ao operar nas interações concretas dos agentes, naturaliza as bases da autocracia burguesa.

Esses mecanismos ajudam a entender como foi possível ritualizar no cotidiano das relações sociais, em meio a uma modernização vertiginosa, formas de convívio que pareciam antes típicas de uma ordem social do passado, de corte escravista e senhorial.

Sem esse suporte nas relações do dia a dia e sem o enraizamento de ideais antidemocráticos no universo valorativo dos agentes sociais não teria sido possível esse processo histórico de longa duração, que é a implantação de um estilo autocrático de capitalismo no Brasil, tão bem discutido por Florestan na terceira parte de “A Revolução Burguesa”.

Vejamos dois desses mecanismos. Um deles, sem dúvida fundamental, é a dificuldade crônica para a ação coletiva dos setores subalternos, em particular da população negra, estudada em “A Integração”.

Além de ser o grupo social que teve o pior ponto de partida na transição do mundo rural à sociedade urbano-industrial, que remodelou em poucas décadas a cidade de São Paulo, objeto empírico do livro, a população negra também sofreu a concorrência perniciosa dos imigrantes europeus, que ocuparam os principais postos de trabalho abertos no eixo dinâmico da economia nacional.

Não só os brancos eram sistematicamente preferidos no mercado de trabalho como também não carregavam as marcas objetivas e subjetivas da condição anterior de escravizado ou liberto. Em pouco tempo, a população negra foi jogada a uma condição de pauperismo e de desorganização social crônica, da qual não escaparam nem os laços sociais mais fundamentais, como os familiares.

Alijada, em sua grande maioria, do próprio processo de proletarização —ou dele participando tardiamente—, uma parcela expressiva da população negra ficou condenada ao desemprego ou à vida de trabalhos temporários e degradantes, tornando a simples sobrevivência na cidade um enorme desafio.

Nessa situação, as relações de solidariedade e de identificação coletiva se reduziram ao mínimo, já que mesmo as técnicas habituais de ajuda mútua a familiares, vizinhos e parentes se dissolviam na condição anômica de existência. A brutal escassez de recursos generalizou comportamentos que, no lugar da cooperação e do protesto coletivo, resultaram na instrumentalização e no parasitismo do outro, uma espécie de individualismo agreste, na expressão do autor.

Mesmo indicando esses limites, Florestan não deixou de apontar o surgimento concomitante de visões críticas ao status quo, que ganham corpo em diferentes espaços de sociabilidade da população negra e que se articulam publicamente nas décadas de 1920 e 1930 no associativismo negro da capital, sobretudo pela Frente Negra Brasileira.

Outro mecanismo fundamental discutido em "A Integração" é a dinâmica de reversão de lealdades imposta à população negra que ascende socialmente, processo que Florestan chama de acefalização, ocorrido porque o negro que melhora de condição é a exceção que confirma a regra e, por consequência, deve respeitar o pacto de silêncio exigido pelo mito da democracia racial.

Em outras palavras, aquele que ascende, a fim de usufruir minimamente das garantias e direitos associados ao seu novo status, deveria abdicar de criticar aberta e publicamente as desigualdades, atrelando o seu destino aos interesses e valores de uma sociedade fundada no privilégio e na exclusão racial e social.

De novo, Florestan não sugere que essa adesão tenha sido simples ou automática. Ao contrário, ele discorre longamente sobre os custos terríveis, subjetivos e objetivos, do intenso autodisciplinamento imposta aos grupos negros que ascenderam socialmente. Além disso, assinala também a importância da classe média negra como um fermento de dissolução do monopólio racial da riqueza, do reconhecimento social e do poder político por parte dos brancos, até então monolítica.

Nesses dois mecanismos, Florestan indica alguns processos que ajudam a explicar a persistência da autocracia burguesa no Brasil. Como ele mesmo afirma na abertura de "A Integração", se trata de ver “como o Povo emerge na História” (ambos termos grafados em maiúscula no original), isto é, quais são as condições dadas ao protagonismo popular na história brasileira.

A análise do livro, no entanto, recai sobre a própria improbabilidade de uma ordem democrática no Brasil, já que o processo de modernização carrega consigo limites estruturais muito tenazes à ação transformadora “desde baixo” —o que não quer dizer, obviamente, que os setores populares não tenham tentado a todo custo levar esses limites adiante ou mesmo eliminá-los em ações individuais, rebeliões, organizações coletivas e movimentos de todo tipo, como o próprio autor destaca em diferentes momentos do livro.

O estudo da questão racial o leva diretamente ao problema da democracia: a nitidez da exclusão sistemática da população negra ajuda a discernir, com maior ou menor clareza, os limites mais gerais à reversão das desigualdades e dos privilégios que estruturam a sociedade brasileira. Das margens da sociedade se vê melhor o conjunto das relações sociais, na interpretação aguda de Elide Rugai Bastos sobre o significado teórico da sociologia de Florestan.

Em "A Revolução Burguesa", o autor complexifica o argumento, perseguindo como esse bloqueio sistemático à democratização da sociedade brasileira se liga às estruturas assimétricas que organizam o capitalismo em escala global. A compatibilização entre inovações modernizantes e estruturas sociais extremamente desiguais, herdadas do passado colonial, é um requisito necessário para o capitalismo difícil da periferia, em sua interpretação.

Além disso, a reduzida margem de manobra daí decorrente, disponível aos setores propriamente burgueses no plano externo, não deixaria de se traduzir em uma margem imensa de arbítrio e de irresponsabilidade coletiva “desde cima”, limitando os benefícios da mudança social ao círculo dos privilegiados de primeira, segunda e terceira ordem, em particular os setores de elite e os vários estratos sociais médios que se avolumaram ao longo do processo, sem generalizá-los ao conjunto da sociedade.

Lidos em conjunto, os dois livros trazem recursos poderosos para pensarmos, em diferentes dimensões e escalas de análise, como uma sociedade pode se mostrar tão avessa à democratização, seja no plano de suas interações sociais básicas, seja nos macroprocessos sócio-históricos de expansão do capitalismo.

Florestan Fernandes sorrido, com as mãos no bolso. Ao fundo, estante de livros
O sociólogo Florestan Fernandes - Folhapress

Durante as três últimas décadas, em que parecíamos construir uma sociedade mais plural, com mais igualdade de oportunidades e maior inclusão econômica, racial e de gênero, a pergunta incômoda de Florestan escapou a muitos de nós, cientistas sociais. Como Gabriel Cohn nos ensinou a ler, autocracia não é sinônimo de ditadura ou de autoritarismo político, embora lhe seja obviamente afim.

A discussão sobre a autocracia burguesa implica olhar para as bases do poder na sociedade e não somente para as formas de exercício —formalmente democráticas— do poder político. Agora que a autocracia saiu novamente das sombras, levar a sério o programa de pesquisa de Florestan Fernandes se torna urgente.

A Revolução Burguesa no Brasil: Ensaio de Interpretação Sociológica

  • Preço R$ 78 (536 págs.)
  • Autoria Florestan Fernandes
  • Editora Contracorrente
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