Autonomia da arte é alívio em tempos de vírus e absurdos, diz Rodrigo Andrade

Pintor reflete sobre seus ideais artísticos em uma situação excepcional

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Rodrigo Andrade

Pintor e artista gráfico, participou duas vezes da Bienal Internacional de São Paulo (1985 e 2010) e teve sua obra reunida em exposição retrospectiva na Pinacoteca do Estado de São Paulo (2017/18). Autor, entre outros livros, de "Resistência da Matéria" (Cobogó)

[RESUMO] Impactado pela experiência de rever suas próprias obras em uma exposição fechada em decorrência do coronavírus, artista plástico comenta sua perplexidade diante das mudanças bruscas geradas pela pandemia, do capitalismo predatório que leva o mundo ao colapso e da ascensão da extrema direita, cenário em que a autonomia a e atemporalidade da arte podem representar algum alívio.

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Inaugurei a exposição “Criaturas Ornamentais” no dia 4 de março, e dez dias depois ela foi fechada em razão da pandemia de Covid-19, doença causada por um vírus mortal que paralisou o mundo e expôs a fragilidade da sociedade humana de modo cabal.

O corte no fluxo da vida social, econômica e cotidiana foi como despertar de um sonho e perceber que ele não era real, ainda que a vida durante a pandemia é que pareça um sonho que não acaba nunca, do qual queremos apenas despertar.

Seja como for, a vida humana no planeta mudou, e nem sabemos como. Desde as primeiras semanas de confinamento já se instaurou o absurdo de uma situação inimaginável, de um mundo travado que há pouco parecia lógico e eficiente e que, de repente, se mostra uma enorme máquina disfuncional.

Pintura abstrata com fundo verde e formas pretas
Vista da exposição ‘Criaturas Ornamentais’, inaugurada na galeria Milan em 4 de março e fechada em seguida devido à pandemia - Fábio Uehara/Divulgação

Quando voltei à galeria dois meses depois, a exposição ainda estava lá, fechada, e quando entrei na sala fui golpeado pela sensação de estranheza de vê-la ainda lá, intacta, idêntica, alheia ao mundo que havia mudado em poucas semanas.

Senti-me como se entrando num mausoléu egípcio ou salão romano, vendo aquelas pinturas pela primeira vez. Pareciam pinturas de outra era! O mundo era diferente quando elas foram feitas. Era outro mundo. E isso poucas semanas atrás!

A disparidade entre a proximidade temporal e a distância histórica gerou uma sensação de atemporalidade, e diria até de eternidade, como convém a pinturas de mausoléu.

Se pertencem a outra era, também foram feitas por outra pessoa, e eu de fato tive ali uma experiência de alteridade com minhas próprias pinturas. Elas se tornaram estranhas aos meus olhos por um momento, e já não podia mais apagar essa experiência que se tornou consciência.

Talvez o espírito expansivo e público das pinturas favoreça o contraste com o recolhimento imposto pelo isolamento social, mas a situação toda tem, além da dimensão global, dimensões existenciais profundas, e esse outro que fez as pinturas me parece “o estranho que vem ao nosso encontro num espelho” de Camus em “O Mito de Sísifo": “O familiar e no entanto inquietante… o absurdo”.

Vivemos o absurdo da pandemia (aspas de Camus): “Em que o vazio se torna eloquente, em que a cadeia dos gestos cotidianos é rompida”, onde “o mundo nos escapa porque volta a ser ele mesmo. Esses cenários mascarados pelo hábito tornam a ser o que são. E se afastam de nós”.

No caso do Brasil, ao absurdo da pandemia soma-se o absurdo do governo de extrema direita eleito em 2018. Aí parece mesmo que “a primitiva hostilidade do mundo, através dos milênios, se levanta de novo contra nós”.

No caso do Brasil, parece que voltamos à era dos impérios coloniais. O Brasil volta a ser ele mesmo. Mais de 30 anos de democracia, firmeza institucional, modernização, prosperidade e inclusão social, que pareciam sólidas, se afastam de nós, se desmancham num só golpe, devolvendo o Brasil à sua condição de quintal norte-americano.

Mas aí já não falamos de pandemia, mas da “era do capitalismo improdutivo”, em que o capital financeiro internacional drena a riqueza produzida pelas sociedades, tornando a administração pública inviável, além da violenta drenagem dos recursos naturais do planeta. Essa era foi descortinada pela crise de 2008.

Estudos realizados desde então, e somente desde então, apontaram que entre US$ 20 trilhões e US$ 30 trilhões, dos cerca de US$ 80 trilhões de PIB mundial, estão em paraísos fiscais fora de qualquer legislação e tributação. E que o 1% mais rico detém a mesma riqueza que o resto do mundo, ou que atualmente oito indivíduos possuem a mesma riqueza que a metade mais pobre.

A crise de 2008 descortinou o abismo, mas os cenários mascarados pela doutrina neoliberal onipresente voltaram a velar o que já foi visto, mas não reconhecido: que o atual sistema está levando o mundo ao colapso.

Agora, a pandemia escancarou ainda mais a visão do absurdo desse sistema, mas isso apenas revela o enorme vazio diante da nossa incapacidade de mudar a realidade, “porque durante séculos só compreendemos nela as figuras e os desenhos com que previamente a representávamos” (Camus).

Ao “mascaramento do cenário” soma-se, no Brasil, o oceano de fake news que decidiu a eleição e que continua afogando a realidade em águas turvas. Afinal, as fake news não apenas tornam mentiras verdades, como verdades mentiras, e no final não há verdades e mentiras. Tudo se resolve na força, mesmo.

É o capital financeiro internacional, aliado às milícias e às igrejas neopentecostais e aos terraplanistas (7% dos brasileiros, segundo o Datafolha). Há poucos anos atrás tudo ia bem. De repente, tudo se desfaz… o vazio (mais eloquente do que nunca), a desconfiança… e agora também o medo da morte que a pandemia traz!

A morte, ou a sensação dela, que, ainda segundo Camus, “nunca nos espantaremos o suficiente com o que todo o mundo vive como ‘se não soubesse’”, e que a pandemia, em alguma medida, nos obriga a saber, ou pensar, ou imaginar, pois ela pode estar numa maçaneta contaminada.

E as pinturas lá, atemporais, sublimes. Perfeitas. Como se tanto fizesse a qual era pertencem. Podem pertencer a qualquer tempo, ainda que saibamos o quanto obras de arte são produtos históricos em nossa cultura ocidental.

E aproveitando o impulso, dou um salto à dimensão histórica, e nessa escala a crise de 2008, a ascensão da extrema direita no mundo e a pandemia de 2020 ocorrem ao mesmo tempo. Marcam a mesma mudança de era. Inauguram a era do absurdo! Por isso renomeei a exposição para “Pinturas da Era do Absurdo”, para ser reaberta nos termos permitidos antes de finalmente encerrar-se.

A dimensão atemporal da arte, apesar das urgências contemporâneas que a movem, pressupõe uma dimensão essencial humana, em que formas, cores, configurações espaciais produzidas por um ser humano possam despertar alguma emoção em outro ser humano pela empatia, independentemente das culturas de um e de outro.

Isso é um ideal de arte, assim como é também aspiração dos artistas ultrapassar a si mesmos através da arte, sair de si, adentrar outra dimensão além do eu.

É bem como John Cage descreveu: “Quando você começa a trabalhar, todo o mundo está em seu estúdio —o passado, seus amigos, inimigos, o mundo da arte, e sobretudo suas próprias ideias—, todos estão lá. Mas enquanto você continua pintando, eles começam a sair, um por um, e você é deixado completamente sozinho. Então, se você está com sorte, até mesmo você sai”.

Porém, uma arte que ultrapasse o tempo, que ultrapasse o eu, que supere a cultura, que descubra o novo que toca o eterno, que busque o original tanto no sentido de algo nunca feito quanto no sentido de atingir as origens, que retire da história os meios de romper com o passado, em que idiossincrasias sejam atalhos para o universal, é na verdade uma arte baseada em valores historicamente construídos.

São valores modernos. Não é por acaso, nem por capricho, que Picasso foi buscar nas máscaras africanas alguns dos modelos primordiais para sua arte. Nem que o minimalismo tenha abolido o gesto manual do fazer artístico, buscando na indústria seus modelos.

Um queria escapar da sufocante academia europeia e de seu próprio virtuosismo técnico; o outro buscava escapar da própria da arte e sua automistificação. Queriam, de uma maneira ou outra, escapar de si (e isso me faz lembrar da máxima de Merleau-Ponty, “jamais somos livres de nós mesmos”, mas isso é outra história).

Então, a atemporalidade e a impessoalidade que vi nas minhas pinturas nada mais são do que projeções dos meus próprios ideais artísticos numa situação excepcional, em que aflorou subitamente o absurdo na sensação de ver em minhas pinturas um outro eu e um outro tempo.

Tela abstrata com fundo azul e formas pretas e verdes
'Homenagem ao palhaço (para Albers)' (2020), óleo sobre tela sobre MDF, de Rodrigo Andrade - Ding Musa/Divulgação

E, assim, declaro meu modernismo, minha concepção de forma significante, em que forma e conteúdo são inseparáveis, e de radical autonomia da arte.

Que o modernismo de hoje não é igual ao de Picasso e mesmo o do minimalismo é obvio, mas o chamado pós-modernismo (como esse termo envelheceu, como se esvaziou!) é ainda modernismo, mesmo que desprovido de qualquer conteúdo revolucionário ou valores universais.

Mondrian não é mais possível em nossa cultura de massas e realidades virtuais, mas nessa perda há também ganhos. Pensando bem, Mondrian viveu duas guerras mundiais e o nazismo e tinha dificuldade para pagar suas contas. Tenho que admitir: em termos de colapso da civilização, estamos ainda bem longe disso atualmente.

Não me sinto do tempo de Mondrian, longe disso, ainda bem!, mas me sinto um pouco de um tempo que se recusa a permanecer o nosso —e não sou o único a estar perplexo com esta era de capitalismo improdutivo e pandemia global somados à boçalidade e à truculência verde-amarela.

Enquanto boa parte da arte de hoje é instrumentalizada por questões sociais, reafirmo a autonomia das minhas pinturas em relação a qualquer ideia de pertinência temática de qualquer tipo, e assim reafirmo seu absurdo intrínseco.

A sensação de estar fora do tempo que a visita à minha exposição me causou foi na verdade uma enorme satisfação, teve algo até de alívio. Ainda bem que existe a arte! Nem sei definir de que tempo eram antes da pandemia, mas agora elas são pinturas da era do absurdo.

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