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Em decisões contra emendas à Constituição, STF atende mais a carreiras da Justiça

Associações de juízes respondem por 35% do total de ações contra emendas aprovadas pelo Congresso

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Diego Werneck Arguelhes

Doutor em direito pela Universidade Yale e professor associado do Insper

Fabiana Luci de Oliveira

Professora da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos)

[RESUMO] Com base em pesquisa sobre disputas no STF relativas a mudanças constitucionais, autores apontam que regras sobre aposentadoria de magistrados e regime previdenciário de servidores são os assuntos mais contestados e que o tribunal foi particularmente ativo ao decidir contra alterações nas carreiras da Justiça, beneficiando interesses corporativos.

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O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu recentemente que a Lei de Responsabilidade Fiscal contrariou a Constituição ao autorizar estados e municípios endividados a reduzirem o salário de servidores. O próximo passo dessa discussão é familiar na política nacional. Se o STF decide que algo não pode ser feito por lei, o Congresso Nacional pode tentar de novo, com um instrumento mais poderoso: uma emenda constitucional (EC).

Emendas constitucionais são alterações na redação vigente de uma Constituição após a sua promulgação, de acordo com um procedimento formal previsto na própria Constituição. Adotam-se emendas para adaptar ou aperfeiçoar esse texto original, por quaisquer critérios decididos pelos legisladores. Conforme o tempo de vida de um texto constitucional avança, é natural que mudemos a Constituição, por emendas, em alguns pontos, para que não precisemos mudar de Constituição.

Embora emendas sejam, em alguma medida, parte típica da experiência constitucional de um país, o caso do Brasil chama a atenção. Foram 112 emendas aprovadas desde 1988 —106 emendas constitucionais e 6 emendas constitucionais de revisão, adotadas em 1993.

A singularidade do caso brasileiro parece ir além do simples número. A aprovação de emendas à Constituição se tornou parte integral e frequente da política brasileira. Como vêm observando Claudio Couto e Rogério Arantes em uma série de estudos, 55% das emendas que aprovamos desde 1988 adicionavam algo novo à Constituição.

Em especial, há frequente adição de dispositivos referentes a detalhes de políticas públicas, e não à estrutura fundamental da organização dos Poderes e dos direitos fundamentais.

Isto é, em muitos desses casos de alteração na Constituição, legisladores não fizeram emendas porque precisaram, mas porque escolheram, quanto a temas que, em princípio, não exigiriam nem justificariam mudar a Constituição. Como explicar que, em vez de caminho excepcional em caso de necessidade, a aprovação de emendas tenha se tornado parte do cotidiano do nosso processo político?

Dentre as várias explicações possíveis, está o fato de que, no Brasil, todos os juízes e juízas têm poder para declarar que certas mudanças legislativas contrariam a Constituição —o chamado “controle de constitucionalidade”. Assim, criar por emenda uma política pública pode ser uma tentativa de protegê-la, em tese, desse controle judicial.

Contudo, em casos como o da Lei de Responsabilidade Fiscal, mesmo que uma emenda venha a ser aprovada, o STF terá uma nova chance de decidir se o corte de salário de servidores é constitucional. Isso porque, além de definir procedimentos para a sua própria reforma, a Constituição coloca alguns pontos fundamentais —as chamadas cláusulas pétreas— fora do alcance das emendas.

As regras constitucionais sobre esse núcleo imutável, porém, deixam bastante margem para interpretação. Em seu artigo 60, parágrafo 4º, a Constituição proíbe emendas “tendentes a abolir” a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais. Esse arranjo cria grande espaço para interpretação judicial.

Ainda que legisladores criem emendas para proteger certas políticas públicas do controle de constitucionalidade, os juízes —o STF em particular— voltam à cena para decidir quais emendas valem e quais não valem.

Em estudo recente, utilizando um banco de dados de 6.470 ADIs (ações diretas de inconstitucionalidade) ajuizadas no STF no período de 6 de outubro de 1988 a 21 de junho de 2020, construído com apoio da Fapesp, analisamos o perfil das disputas levadas ao tribunal quanto às emendas constitucionais. Quem tem acionado o tribunal, sobre que temas, e que tipo de resposta essas forças políticas têm conseguido dos ministros quanto à definição do núcleo imutável da Constituição?

Identificamos nessas ADIs 140 pedidos de declaração de inconstitucionalidade de ECs. Essas ações contestam 37 das 112 emendas —uma a cada três. A primeira emenda contestada foi a EC 2/1992, que alterava a data de realização do plebiscito nacional sobre forma e sistema de governo. Contra ela, três ADIs foram propostas de uma vez.

Na decisão, por unanimidade, o STF reafirmou a sua competência para fazer esse controle de constitucionalidade de emendas, mas acabou validando integralmente a EC 2. Como é comum na dinâmica do tribunal, os ministros afirmam que poderiam fazer algo ao mesmo tempo em que deixam para um caso futuro o exercício, de fato, desse poder.

A EC 3/1993, que instituía o IPMF (primeira versão da CPMF), foi esse caso futuro. Foi contestada por governadores de cinco estados e pela CNTC (Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio). Em decisão liminar unânime, o STF suspendeu a emenda —a primeira declaração de inconstitucionalidade de uma mudança à Constituição por violação de cláusula pétrea. Os ministros viram na EC 3 ofensa ao princípio federativo e ao direito do contribuinte de não ter cobrado um imposto no mesmo exercício fiscal em que for instituído.

As ECs mais contestadas foram as grandes reformas previdenciárias (ECs 103/2019, 41/2003 e 20/1998), bem como a “reforma do Judiciário” (EC 45/2004). Juntas, as quatro respondem por 49% dos pedidos feitos ao STF. Em seguida, temos a EC 3/1993 (nove pedidos de inconstitucionalidade) e a EC 19/1998, referente à reforma administrativa do governo Fernando Henrique Cardoso.

Sessão plenária do STF (Supremo Tribunal Federal) - Pedro Ladeira - 31.ago.2017/Folhapress

Entre outras medidas, essa emenda extinguiu o chamado regime jurídico único, modificou as regras de remuneração e estabilidade dos servidores e adotou o controle das despesas e finanças públicas.

A EC 95/2016, conhecida como PEC do teto de gastos, havia atraído contra si oito ADIs até junho de 2020 —sendo que, em março de 2020, três dessas ações receberam petições de tutela de urgência diante da excepcionalidade da pandemia.

Mudanças na política fiscal e tributária respondem por um terço de todas as emendas aprovadas (37 ECs). Em segundo lugar, estão as políticas de direitos fundamentais (19 ECs), seguidas por emendas que alteraram vantagens e benefícios dos servidores públicos (17 ECs), que regulam o sistema político-eleitoral (15 ECs) e o funcionamento das instituições de Justiça (10 ECs).

As campeãs de judicialização tratam dos servidores públicos e do sistema político-eleitoral: cerca de metade das ECs nesses assuntos foram contestadas no STF. Chama a atenção também que 4 das 10 emendas que alteraram o funcionamento das instituições de Justiça tenham sido judicializadas.

Os três assuntos mais frequentes de contestação envolvem regras para aposentadoria de juízes, regime previdenciário de servidores e a contribuição de servidores inativos para a Previdência. Há também questionamentos a variados aspectos da remuneração de magistrados e remuneração e aposentadoria de profissionais das outras carreiras públicas da Justiça.

Nesse cenário, não surpreende que os maiores litigantes contra ECs sejam as associações de juízes, responsáveis por 35% do total de ADIs contra emendas (com destaque para a AMB e a Anamatra), seguidas de perto por partidos políticos (33%).

Parte do receio quanto à descaracterização da Constituição por meio de emendas envolve justificadas preocupações com a erosão de direitos fundamentais. Contudo, apenas 3 ECs com essa temática foram contestadas em ADIs. Na verdade, apenas um quinto das ECs contestadas diz respeito às regras do jogo democrático, à separação de Poderes ou aos direitos fundamentais. A esmagadora maioria envolve dispositivos que consagram políticas públicas que, em princípio, poderiam variar de um governo para o outro.

Em 1995, foram promulgadas cinco emendas que pavimentaram o caminho das privatizações, envolvendo exploração de gás canalizado, telecomunicações, petróleo e gás natural. Apesar de representarem drásticas mudanças na ordem econômica, não geraram ADIs. Em temas tão centrais e visíveis do processo político nacional, seria esperado que atores políticos derrotados tentassem sua sorte no STF, ainda que com baixa chance de vitória.

O fato de essas emendas não terem provocado qualquer questionamento no STF —nem sequer por parte de atores não estatais— pode sinalizar que sua aprovação resultou de um processo particularmente eficaz de negociação no âmbito do Congresso e junto à sociedade civil.

O STF tem sido relativamente ativo ao responder a essas contestações. Assim como o poder legislativo de mudar a Constituição, o poder judicial de impedir que ela seja mudada também é, no geral, considerado excepcional. Não é comum que seja reconhecido em textos constitucionais; e, nos países em que é reconhecido, sua utilização não é frequente.

Também nesse ponto o quadro brasileiro se destaca. Se considerarmos todos os casos em que o STF ou um de seus ministros interferiu, ainda que parcialmente e/ou em caráter liminar, no conteúdo de uma EC aprovada pelo Congresso, encontraremos intervenção judicial em quase 20% dos 140 pedidos.

Em cerca de 40% (15 de 37) das emendas contestadas em ADIs, o tribunal (ou um de seus ministros) suspendeu, limitou ou modulou as mudanças constitucionais aprovadas pelo Congresso. Por outro lado, em 35% dessas ADIs não houve ainda qualquer decisão. Se considerarmos apenas as ações com algum tipo de decisão, o STF concordou (ao menos parcialmente) com 27% dos pedidos de intervenção sobre ECs.

Quanto aos temas, o STF foi especialmente ativo contra alterações nas carreiras públicas da Justiça. Atendeu, por exemplo, a seis pedidos para impugnação da EC 41, cinco dos quais feitos por associações de carreiras da Justiça.

Derrotados no Congresso, grupos de interesse contrários a uma emenda se mobilizam para acionar o STF. Nessa dinâmica, observamos uma assimetria em benefício de interesses corporativos, sobretudo das associações de carreiras públicas da Justiça.

Em particular, as associações de magistrados se constituíram como as principais “usuárias” do STF no questionamento de ECs que acreditavam limitar seus direitos. E o tribunal tem respondido como um relevante órgão de deliberação corporativa, atuando de forma semelhante a um setor de recursos humanos da administração pública ao mesmo tempo que define o núcleo imutável da Constituição.

No Brasil, emendar a Constituição e questionar essa mudança no STF são parte cotidiana da política. O STF se consolidou como ponto de veto ativo, especialmente quanto a reformas que afetam corporações públicas.

Embora o número alto de emendas sugira que esse é um instrumento eficaz para o legislador, o veto judicial tem sido mais do que uma ameaça hipotética, em especial quando a mudança no status quo afeta carreiras públicas da Justiça.

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