Festivais se voltam contra desigualdade de gênero no cinema

Mostra de Veneza, em setembro, terá participação recorde de diretoras; Gotemburgo, na Suécia, fez inédita seleção paritária entre homens e mulheres cineastas

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Helen Beltrame-Linné

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergmancenter, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima.

Walter Porto
Walter Porto

Editor de Livros e colunista do Painel das Letras

[resumo] Participação de quase 40% de filmes dirigidos por mulheres na mostra competitiva do Festival de Veneza, marca inédita nos últimos anos no evento, reacende debate acerca da disparidade de gêneros no cinema. Em janeiro, o Festival de Gotemburgo, na Suécia, buscou conciliar qualidade artística e políticas de representatividade em uma inédita seleção paritária entre homens e mulheres cineastas.

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A pandemia de Covid-19 cancelou festivais de cinema pelo mundo. Um dos mais tradicionais, o Festival de Cannes, se limitou a publicar a lista dos filmes escolhidos (e não exibidos), como uma espécie de chancela de qualidade dos títulos. Natural, portanto, que causasse surpresa o anúncio de que o histórico Festival de Veneza terá sua edição de 2020 no formato presencial de sempre, de 2 a 12 de setembro.

Contudo, não foi esse o destaque que prevaleceu nas manchetes. A realização de um evento público de grande porte no epicentro europeu da pandemia causou menos alvoroço do que o fato de haver, na seleção oficial, 8 filmes dirigidos por mulheres entre os 18 escolhidos para concorrer ao Leão de Ouro, prêmio máximo do evento.

Grupo de mulheres, entre elas Kristen Stewart (3ª a partir da esq.), Ava DuVernay (6ª), Cate Blanchett (7ª) e Agnes Varda (8ª), protesta no tapete vermelho do Festival de Cannes (França), em 2018, por mais igualdade e espaço na indústria - AFP

A disparidade entre os gêneros no cinema é um problema antigo e tão enraizado no meio que, em janeiro, o Festival de Gotemburgo, na Suécia, provocou forte repercussão ao fazer algo até então inédito: uma seleção paritária de filmes, com metade dirigida por homens e metade por mulheres.

A medida, apelidada de “visão 50/50”, era ilustrada numa peça publicitária do festival, em que um vendedor divulga o óculos 1D, uma espécie de parente do 3D com apenas uma lente. “Agora o mundo real pode parecer tão estreito quanto o mundo dos filmes!”, diz o animado narrador. Ao final, letreiros informam que 98% de todos os diretores de Hollywood são homens (na Europa, o percentual é de 81%).

Gotemburgo propõe que a direção cinematográfica, uma carreira que não tem afinidade a priori com nenhum dos gêneros, reflita a sociedade em geral. “Se a indústria de cinema visitasse o oftalmologista, ficaria claro que ela tem um sério defeito de visão. Partes do mundo não são vistas, e as perspectivas seguem embaçadas e imprecisas. Isto porque a indústria de cinema frequentemente usa somente um olho.”

A decisão do festival escandinavo não nasceu sem contexto. Em 2016, Anna Serner, diretora do Instituto Sueco de Cinema, havia lançado, no Festival de Cannes, a campanha “5050 em 2020”, cujo objetivo era atingir paridade de gênero na indústria cinematográfica.

O movimento ganhou força e, dois anos depois, 82 mulheres —incluindo medalhões como Cate Blanchett, Agnès Varda e Ava DuVernay— tomaram os degraus do Festival de Cannes em um protesto para escancarar o tamanho da desigualdade de gênero na indústria.

O número 82 não foi aleatório: era a quantidade de filmes dirigidos por mulheres que haviam participado da competição oficial até aquela 71ª edição do festival francês (as obras de cineastas homens eram 1.645). A Palma de Ouro, aliás, só foi entregue a uma mulher em toda a história —a australiana Jane Campion, que em 1993 dividiu a glória de “O Piano” com “Adeus, Minha Concubina”, do chinês Chen Kaige.

As lideranças dos maiores festivais do mundo assinaram o compromisso “5050 em 2020”, o que não resultou em mudanças concretas, mas permitiu o avanço das discussões sobre o tema. “Ao tornar transparentes seus dados históricos, os festivais viabilizaram que ativistas pudessem produzir pesquisas e colocar holofotes bem embasados na disparidade da indústria”, afirma Serner.

Pesquisadoras identificaram que na França, por exemplo, a média de orçamento das obras de ficção era 36% menor quando a diretora era mulher (isso num contexto em que apenas 23% dos filmes eram dirigidos por mulheres).

“A consciência da desigualdade de gênero agora não é mais uma opinião, mas um fato. Todos perceberam que não vivemos em um mundo igualitário”, continua Serner, elencando desdobramentos importantes nos últimos anos como o movimento #MeToo e as revelações sobre abusos do produtor Harvey Weinstein, condenado a 23 anos de prisão. “A conversa mudou.”

Ao fazer constatação similar na Suécia (somente 30% dos roteiristas são mulheres, e esse número cai à medida que aumentam as verbas dos filmes), Serner criou uma linha exclusiva para o desenvolvimento, por mulheres, de projetos com orçamento acima de 30 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 15 milhões).

Além disso, para estimular o financiamento igualitário de filmes, responsabilidade direta do instituto que ela comanda, a executiva decidiu rever a modalidade de escolha de projetos e estabelecer três critérios principais: relevância/urgência, originalidade e habilidade da equipe. A seleção ficou bem mais balanceada, sem necessidade de olhar quem estava sentado (ou sentada) na cadeira de diretor.

A atuação de Serner à frente do Instituto Sueco é o sonho de muitas feministas do audiovisual. “Mudanças concretas na forma de se fazer negócios e de organizar festivais viriam de forma mais rápida se conseguíssemos ter mais mulheres em posições de poder no audiovisual conscientes da problemática em torno da representatividade”, diz Marília Nogueira, uma das diretoras do Cabíria, projeto brasileiro que surgiu em 2015 como um prêmio de roteiro para histórias escritas e protagonizadas por mulheres e se expandiu, no ano passado, para um festival no qual 70 convidadas exibiram filmes e participaram de debates. Neste ano, o evento será inteiramente on-line, em novembro.

Ela elogia a iniciativa de Gotemburgo: “Foi uma ação corajosa que certamente iria causar, e de fato causou, muita polêmica. Sistemas de cotas são instrumentos que aceleram a mudança necessária em momentos históricos nos quais uma desigualdade muito grande precisa ser corrigida. Discordo que o critério de escolha de filmes deve ser apenas ‘qualidade’”.

Ainda que o gesto de Gotemburgo tenha magnitude inédita, iniciativas para promover filmes feitos por mulheres não são novidade. Em 2004, o Brasil viu o surgimento do Femina —Festival Internacional de Cinema Feminino, que seguiu exemplos estrangeiros.

“O Femina nasceu inspirado em outros festivais, especialmente o Frauenfilmfestival, na Alemanha, e o Films de Femmes, na França”, conta Paula Alves, fundadora do evento. “Ele surgiu com o objetivo incentivar a entrada de mais mulheres no mercado audiovisual, mas também de debater questões de gênero na sociedade em geral, não só no cinema.”

Em sua tese de doutorado, Alves constatou que, no período de 2011 a 2016, mulheres respondiam por apenas 16% da direção, 14% dos roteiros e 6% da fotografia dos longa-metragens brasileiros. Além disso, apenas 20% dos protagonistas eram femininos.

De lá pra cá, pouco mudou. “Houve um crescimento nas últimas décadas, mas a diferença entre a participação feminina e masculina ainda é muito grande. Iniciativas de paridade nos festivais de cinema não só lançam luz sobre as questões de gênero no audiovisual, mas também fomentam debates sobre equidade no mercado de trabalho em geral e também sobre violência e assédio, por exemplo.”

“Nos últimos anos, me pego olhando catálogos antigos do festival e me espanto. A questão de gênero simplesmente não era parte do pensamento de seleção”, afirma Ilda Santiago, diretora do Festival do Rio, que teve 40% de diretoras mulheres em sua programação de 2019.

Segundo ela, houve uma mudança de percepção, e hoje não é mais aceitável que elementos como gênero, raça e equilíbrio regional não sejam levados em conta. “Isso não se circunscreve a mulheres realizadoras, mas também a uma presença mais concreta de cineastas negros e negras, LGBTQ+, indígenas e outros.”

“Muito ainda deve ser feito para que os mecanismos de financiamento e produção sejam mais igualitários e possam, ao longo do tempo, resultar em um equilíbrio natural”, completa. “Mas estamos trabalhando pela paridade e adoraria chegar a esse patamar de 50% logo. Gotemburgo mostrou que é possível.”

Mas o assunto está longe de ser unânime no Brasil. “Se eu fosse cineasta, ficaria ofendida de ser selecionada apenas por ser mulher”, afirma Renata de Almeida, diretora da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Para ela, a curadoria deve primar pela qualidade e não somente por pautas igualitárias. “Um sistema de cotas pode ser aplicado em momento anterior, de desenvolvimento e capacitação. Assim, permite-se que os filmes dirigidos por mulheres sejam escolhidos por terem qualidade, como já ocorre na mostra há muitos anos.” A edição de 2019 teve cerca de 28% de diretoras em sua programação.

A contraposição entre qualidade e gênero teve que ser enfrentada pela organização do Festival de Gotemburgo, como admitiu Jonas Holmberg, diretor artístico do evento, a um grupo de jornalistas que incluía a Folha. “O problema era se as cineastas se sentiriam julgadas pelos critérios corretos. Espero que as selecionadas tenham se sentido escolhidas pelo mérito. Nós deixamos de fora um monte de filmes de mulheres, e de homens também.”

Holmberg reconhece que a principal motivação da mudança era quebrar a falácia de que os dois critérios se opõem: “Sabia que era possível traçar esse objetivo ambicioso de equidade mantendo a qualidade da programação. E acho que conseguimos. As pessoas vão ver que este não é um festival terrível com filmes ruins, mas um grande festival com grandes filmes”.

Anna Serner também rebate com frequência argumentos contrários à política de paridade do Instituto Sueco: “As críticas mais duras vêm daqueles que se sentem preteridos. As pessoas fingem que estão falando de qualidade, quando na verdade estão falando sobre suas próprias decepções”.

Por exemplo, diz ela, há homens argumentando que não foram selecionados por serem homens (“e sem eles o festival perderia qualidade”). E há mulheres desapontadas porque não foram selecionadas mesmo sendo mulheres, afirmando que a mostra não estaria sendo inclusiva de verdade (“então você tem que explicar que disse ‘não’ para o roteiro delas porque era ruim”).

É na oposição entre homens e mulheres que talvez resida o maior complicador das discussões de gênero. Sempre que se fala em abrir espaço para as mulheres, o outro lado da moeda parece ser, necessariamente, o encolhimento da participação masculina.

A vinheta oficial do Festival de Gotemburgo, um filmete de 45 segundos exibido antes de todas as sessões, mostrava uma mulher posicionando sua bota preta de salto alto sobre a cabeça grisalha de um homem.

Em sua origem, a cena integra o filme-experimento “Undersökningen” (o exame), em que 11 homens poderosos —um ex-ministro da Justiça, um ex-astro do hóquei, um ex-presidente da Interpol— são entrevistados pela diretora Anna Odell sobre temas como masculinidade e vulnerabilidade.

Ao final, todos eles (e até os próprios espectadores, na sessão experimental realizada pelo festival) são convidados a se sentar numa cadeira ginecológica. Dentre os cinco que se recusam a fazer isso está o homem da vinheta, o escritor Jan Guillou, que, por medo de ser ridicularizado, propõe como alternativa deitar no chão e ser pisoteado na cabeça pela diretora.

É precisamente o tipo de combustível que deixa os ânimos mais exaltados na discussão de gênero. A imagem provoca no espectador o desconforto da reflexão, mas turva a ideia de igualdade com a de uma nova submissão de sinal invertido.

O Festival de Berlim, por exemplo, optou por um caminho menos confrontativo. O evento fez história em 2019 ao ser o primeiro grande festival europeu a nomear uma mulher para o cargo de diretora-executiva.

A escolhida, Mariette Rissenbeek, esteve no Brasil durante a última edição da Mostra de SP e discutiu a questão da paridade de gênero. Contrária a favorecimento feminino na curadoria, ela defende que uma paridade maior nos comitês de seleção resulta, inevitavelmente, numa programação mais balanceada.
“Não se trata apenas da minha indicação. A Berlinale conseguiu chegar a uma paridade de gênero nos cargos executivos e nos comitês de seleção. Isso é um grande passo no aprofundamento da questão de gênero.” De fato, a última edição do festival teve 37,9% de filmes dirigidos por mulheres —ainda que apenas 6 dos 18 filmes na competição principal tivessem diretoras.

Na semana passada, a Berlinale anunciou outra mudança nesse sentido. Na próxima edição, em fevereiro, os prêmios de melhor ator e melhor atriz serão substituídos por melhor performance principal e melhor performance coadjuvante, sem distinção de gênero.

Experiências do outro lado do Atlântico corroboram a teoria da alemã. O Festival de Sundance, capitaneado por Robert Redford, cujos organizadores deixam claro que não aplicam cotas, vem tirando nota dez no quesito igualdade, não só de gênero mas também racial.

Em 2020, 56% dos filmes em competição dramática foram dirigidos por negros. Ampliando a amostragem para todos os filmes em competição, o número cai, mas continua impressionante: 44% de diretores negros e 46% dos filmes dirigidos por mulheres. O Festival de Toronto, outro grande farol para tendências, chegou em sua última edição a uma seleção com 36% de filmes dirigidos por mulheres.

Neste contexto, como avaliar o anúncio do Festival de Veneza? De fato, a participação feminina na mostra competitiva do festival passou de um único título dirigido por mulher em 2017 e 2018, e dois em 2019, para a marca de quase 40% em 2020. Será que o evento italiano abraçou a causa inaugurada em Gotemburgo?

Difícil ser tão otimista. Alberto Barbera, diretor do festival italiano, nunca escondeu sua posição sobre o tema: “Não faremos seleção com base no sexo do diretor, somente na qualidade do trabalho”.

De duas, uma: ou a qualidade dos filmes dirigidos por mulheres subiu astronomicamente no último ano, ou são outras as razões que explicam a seleção oficial deste ano.

Respostas possíveis aparecem numa observação do comportamento da indústria no contexto da pandemia de Covid. Inúmeros diretores homens optaram por retirar seus filmes do circuito e aguardar a redefinição do calendário do setor para escolher a melhor estratégia de lançamento —o que, sem dúvidas, abriu espaço para os longas dirigidos por mulheres, que aproveitaram a oportunidade de exibição.

Ao que tudo indica, ainda é preciso uma pandemia para que mulheres tenham chance de ocupar lugar de destaque no cinema.


O jornalista Walter Porto viajou a convite da Embaixada da Suécia no Brasil e do Instituto Sueco

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