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Sérgio Alpendre

Formato on-line traz chance de festivais de cinema serem mais ousados e independentes

Adotada na pandemia, exibição de filmes pela internet veio para ficar e pode favorecer artistas, curadores e público

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Sérgio Alpendre

Crítico de cinema e curador

[resumo] Adotado na pandemia, formato on-line para festivais de cinema pode se fixar como novo padrão capaz de mitigar vícios desses eventos, propiciando mais acesso ao público, visibilidade aos artistas e ousadia e independência aos curadores.

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A moda veio para ficar: Festival de Curtas da Kinoforum, Fantaspoa, Ecrã, Cinefantasy, Olhar de Cinema e Mostra Internacional de São Paulo são alguns dos eventos cinematográficos que foram ou serão realizados em formato on-line.

Congestionamentos na rede e imagens momentaneamente travadas se tornaram uma constante da cinefilia nestes dias de pandemia, mas sempre vale a pena garimpar pelas páginas desses e de outros eventos pela internet.

Na verdade, os festivais on-line tendem a povoar nosso horizonte por muito tempo, talvez para sempre, havendo ou não pandemia, havendo ou não a possibilidade de termos também sessões presenciais. Descobriu-se a pólvora ou caíram as amarras discutíveis que impediam a prática?

Trata-se de uma questão de visibilidade. Quem não se interessa pela maior possibilidade de seu filme ser visto por meio das exibições na internet? Redes sociais como Twitter, Facebook e Letterboxd mostraram o sucesso das plataformas de streaming adotadas pelos festivais, numa tendência já antecipada pelo êxito do YouTube, da Netflix e das lives.

É também uma questão de acessibilidade. O morador de uma cidade que nunca tem festivais de cinema poderá, enfim, acompanhar de sua casa um desses eventos —antes os fãs de cinema precisariam gastar com viagem e hospedagem para participar de alguma mostra.

Qualquer interessado poderá acompanhar os filmes no momento em que eles são comentados nas redes sociais. Os festivais, assim, se democratizam mais um pouco, faltando agora o segundo passo: boa internet para todos.

O padrão anterior desses eventos —exibições em praças, cinemas tradicionais ou palácios luxuosos— provavelmente dará lugar a um novo, em que os filmes serão vistos pela internet e analisados por críticos e cinéfilos de todo o país.

Nesse cenário, raramente veremos um filme de grande qualidade (estética ou temática) sendo rejeitado em bloco por vários festivais, ou, ao contrário, um filme medíocre, cujo único mérito era ter agradado algum curador mais famoso, automaticamente selecionado para a maior parte dos outros eventos.

No mundo pré-pandemia, um filme passava, digamos, na Mostra de Tiradentes, ou no Festival de Gramado, ou ainda no Festival de Brasília, para ficarmos nos três maiores festivais nacionais. Tendo sido chancelado por um deles, acabava também exibido em outras mostras menores, independentemente de sua qualidade e do interesse de um ponto de vista curatorial.

Sabemos que nem sempre se programam os melhores filmes. Muitas vezes a seleção responde a outros critérios, como a aposta em tendências ou a relação do longa com algum tema do momento. Esse é um processo complexo, que não se faz sem erros, mas o curador que apenas persegue o mesmo caminho de outros, sem cuidado e critério na seleção dos filmes, não desempenha bem sua função.

A repetição de alguns filmes celebrados pela cinefilia de internet e por críticos assíduos no circuito de festivais em vários eventos pelo país se dá por dois fatores que não se excluem: a) a insegurança de alguns curadores para escolher um caminho menos óbvio, para dar destaque a filmes preteridos nos festivais de maior peso; b) a possibilidade de habitantes de fora dos grandes centros verem os filmes mais comentados por cinéfilos de cidades que recebem os festivais mais tradicionais. Se eliminarmos ou diminuirmos bastante a necessidade do segundo fator, o primeiro também será afetado.

No caso de termos festivais híbridos no Brasil pós-pandemia, opção mais provável se o bom senso prevalecer, as sessões presenciais atrairão menos pessoas, não numa diferença que prejudique os eventos, mas suficiente para que haja um ajuste na proporção dessas sessões. E se um filme já tiver sido exibido em um festival on-line, a única razão para exibi-lo em outro é a possibilidade de revisão numa tela grande. A ideia de visibilidade local fica enfraquecida.

Com essa nova variação, os festivais precisarão se reinventar, o que é sempre positivo. Aqueles que não entenderem que é necessário pensar em cinema e garimpar filmes independentemente de premiações anteriores perderão o bonde do on-line e repetirão, nesse novo formato, os mesmos vícios do formato antigo.

A crença de que o melhor cinema está no que foi anteriormente premiado ou mesmo selecionado é uma falácia que precisa ser superada.

Tomemos um exemplo. “Retratos da Histórica Vila Maria Zélia” (2014), de Patrícia Helena dos Santos, é um dos melhores curtas brasileiros dos últimos 20 anos. Suas imagens poéticas, a seu modo fantasmagóricas, sondam o espaço com precisão de quem tem olhar para cinema. É um curta formalmente muito belo, e conceitualmente inteligente, sem a preocupação de se encaixar em temas ou estilos do momento.

Por não ter entrado no radar dos festivais mais importantes (jamais passou no Curta Kinoforum, o mais famoso dos dedicados a esse gênero), não apareceu em diversos outros.

Recentemente, com a pandemia, a diretora e o produtor resolveram disponibilizar o curta no YouTube. Conseguiram um número razoável de visualizações, mas muito aquém do que merecia. Estivesse em algum festival on-line, seria muito mais visto, pois o impulsionamento natural de visualizações do evento o ajudaria. Como é um curta de 2014, não há mais espaço para ele, a não ser em alguma retrospectiva.

Como esse curta, há vários filmes à espera de um olhar cuidadoso e retrospectivo que não se contente em seguir correntes ou seleções prévias, que seja movido por um genuíno interesse em cinema e que entenda que o novo pode estar num passado recente, eventualmente até num passado distante.

Mesmo no caso de festivais internacionais, como a Mostra de São Paulo ou o Festival do Rio, é possível lamentar uma série de ausências não motivadas por problemas de calendário ou investimento, mas por escolhas. O cinema português, por exemplo, é sempre representado de maneira insatisfatória. O francês e o espanhol também, entre outros exemplos possíveis.

Há muitas coisas acontecendo no cinema mundial fora das grifes autorais e dos mercados de Cannes, Veneza e Berlim, os maiores festivais do mundo. Um festival interessante de se ver on-line teria curtas, médias e longas esnobados pelas programações das principais mostras brasileiras nos últimos anos.

Sempre há o risco de serem sabotadas as vantagens do on-line em favor de benefícios financeiros que privilegiem as sessões em cinema ou de alguma limitação estética de quem escolhe os filmes. Além disso, a pandemia colocou um obstáculo à realização dos longas que deve ser considerado.

Talvez não tenhamos filmes para garantir ineditismos em todos os festivais. E, com isso, as repetições de alguns títulos se tornem necessárias. Mas podemos ser otimistas. A oportunidade para rompermos esse círculo chegou. Devemos aproveitá-la.

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