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Não sei se o que conhecemos como EUA vai sobreviver à pandemia, diz Sean Penn

Prestes a completar 60 anos, ator e diretor reflete sobre combate ao coronavírus e 'ideologia obscena' de Hollywood

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Ana Maria Bahiana

Jornalista da área cultural e editora-adjunta do site goldenglobes.com, é autora, entre outros livros, de "Nada Será Como Antes - MPB nos Anos 70" (Civilização Brasileira, 1980)

[RESUMO] Sean Penn, que finaliza seu mais recente filme como diretor, comenta em entrevista o trabalho de sua ONG no controle da pandemia nos EUA, chama Trump de figura “horrorosa” e “obscena”, diz que a situação no Brasil diante da Covid é extraordinária “do pior modo possível” e aponta falta de integridade em boa parte dos estúdios de Hollywood.

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Sean Penn é um homem muito ocupado nestes dias. De um lado, o trabalho incessante com sua ONG Core, criada em 2010 para auxiliar as vítimas do terremoto no Haiti e dedicada, desde março, a colaborar no controle da pandemia nos Estados Unidos —neste momento, o país com o maior número de mortes e infectados em todo o mundo.

De outro, a finalização de seu mais recente filme como diretor e ator —”Flag Day”, no qual ele contracena com sua filha de 28 anos, Dylan Penn, e seu filho, Hopper Penn, de 26— mais a realização de um documentário sobre o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi.

E, no meio, o casamento com sua namorada, a atriz Leila George, filha dos atores Greta Scacchi e Vincent D’Onofrio, um ano mais moça que Dylan e, em suas próprias palavras, “uma mulher extraordinária, e eu estou louco de amor por ela”.

Sean Penn com as mãos apoiadas em superfície branca com público atrás
O ator e diretor Sean Penn no Festival de Cannes de 2016 - Alberto Pizzoli - 20.mai.2016/AFP

Talvez por causa disso tudo, Sean passa por uma fase tranquila, repleta de sorrisos. A conversa (remota, como todas são agora) mostrou um ator articulado e sereno, no escritório de sua casa em Los Angeles, vestindo uma camiseta que dizia “estou virtualmente em Havana”.

“E eu comprei em Havana”, diz, rindo. “Eu sei que as pessoas, especialmente no meu meio, me veem como um radical de esquerda, porque vivo visitando países socialistas. E sou mesmo de esquerda, como meu pai e minha mãe. Lamento muito que tantos países socialistas que foram capazes de fazer coisas importantes para seu povo tenham acabado nas mãos de ditadores.”

Em poucos dias, Sean terá mais um projeto para articular em plena pandemia: completará 60 anos no dia 17. “Eu sempre achei que ia ser eu mesmo, em todos os aspectos, quando tivesse 77 anos”, diz, sorridente. “Ainda tenho 17 anos para me sentir bem comigo mesmo.”

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Como você se envolveu na crise da Covid-19? Assim que a crise tomou forma, eu senti que podíamos oferecer uma estrutura capaz de enfrentar um desastre em grande escala. Já tínhamos essa experiência —a coisa mais próxima de uma pandemia era o que já tínhamos enfrentado no Haiti, uma epidemia de cólera. O primeiro passo foi entrar em contato com o governador da Califórnia, Gavin Newsom, e o prefeito de Los Angeles, Eric Garcetti.

Vimos que a questão mais urgente era estabelecer locais de testes gratuitos, e nos unimos ao Corpo de Bombeiros, que já estava mobilizado para isso. Porém, não bastava, por isso mandamos um apelo para voluntários e, felizmente, tivemos a sorte de receber muitos.

Quando os centros de teste estavam estabelecidos, expandimos o projeto para outros locais: Nova York, Washington, Detroit, Atlanta, Nova Orleans, Chicago, Carolina do Norte e a nação navajo.

Foi mais difícil controlar a epidemia na nação navajo? Com toda a sinceridade, posso dizer que tenho mais esperança de sucesso na nação navajo do que em qualquer outro lugar dos Estados Unidos. O diferencial é a força da comunidade, a união entre todos.

O grande desafio era o impacto do vírus nos idosos. A comunidade valoriza imensamente os mais velhos —eles são os guardiões da cultura, da história—, e o vírus estava devastando a população idosa. Outro desafio era o fato de a maioria das pessoas morarem em casas com várias gerações da mesma família, e isso tornava muito difícil o isolamento dos infectados. A solução que criamos foi construir casas especiais apenas para quarentena.

E isso está funcionando, porque a nação navajo tem uma verdadeira liderança e uma imensa participação e apoio da comunidade. O governo navajo, o presidente Nez, é o governo mais bem-sucedido neste país.

Que países você acha que fizeram o melhor trabalho para conter o vírus? O Canadá foi tremendamente atingido pela Covid-19 no começo, mas eles foram capazes de achatar a curva [de contágio] rapidamente, exatamente porque o país não teve que aturar a arrogância da liderança federal no nível que nós, aqui, estamos sofrendo.

Além disso, estamos [nos EUA] neste momento em um clima amargo de divisão. A liderança do Canadá uniu todas as facções e levou a sério os fundamentos da ciência, implementando, de imediato, testes, pesquisa de contágio, isolamento. A Coreia do Sul também está fazendo um trabalho excepcional.

E quais países estão passando por maior perigo? Além dos Estados Unidos? Temos mais perdas em menos de um ano do que todas as mortes na Guerra do Vietnã em uma década! Mas, além de nós, Reino Unido e Brasil. A situação no Brasil é absolutamente extraordinária, do pior modo possível. Vai, com certeza, demorar muitos anos para que o país se recupere dessa quantidade de danos.

Como você vê a situação geral dos Estados Unidos no combate ao vírus neste momento? Uma ONG precisa de parcerias com governos em todos os níveis. E nós sabíamos, desde o começo, que o presidente tinha optado por não estabelecer orientações de âmbito nacional. Ficou bem claro também, imediatamente, que qualquer iniciativa de proteção estava sendo levada na menor escala possível. Por isso, procuramos e estabelecemos ligações com prefeitos e governadores, cidade por cidade, estado por estado.

A responsabilidade deste estado de coisas estaria, então, nos ombros dos governantes? Acho que culpar os líderes é um modo excelente de desabafar e refletir sobre como deve ser a nossa participação. E não é apenas votar, mas também trabalhar muito para inspirar outras pessoas a votarem. Eu me perguntei se tinha feito tudo o que poderia fazer. E minha resposta em 2016 [ano da última eleição presidencial nos Estados Unidos] foi não. Não fiz o bastante.

Estamos novamente em ano de eleição presidencial nos Estados Unidos. Como você vê o quadro político e social agora? Os Estados Unidos são o país mais rico do mundo, apenas para os ricos. Certamente não para os pobres. Não funcionamos desse modo. Não funcionamos assim pela política e não funcionamos assim por nós mesmos, a não ser que isso seja exigido de nós. [...] Estou sempre dividido entre aspiração e pragmatismo otimista.

Pragmaticamente, certamente acho que a humanidade vai sobreviver a isso, mas não sei se aquilo que conhecemos como os Estados Unidos vai conseguir sobreviver a longo prazo. Acho que novembro é uma oportunidade para começar uma retomada, mas há muitos elementos para serem considerados.

Durante quanto tempo os Estados Unidos sofreram os efeitos da Guerra do Vietnã? Olhando apenas pelo lado da pandemia, o impacto sobre a nossa estrutura de saúde vai se arrastar por muito tempo. Eu me lembro de ir a um show do Bruce Springsteen durante o governo Bush, e ele disse para a plateia: “América, nós tivemos um enorme progresso e agora estamos dando a meia-volta”.

E é isso agora, não é? Agora temos essa figura horrorosa, racista, nacionalista, obscena. E não estou falando só da nossa crise com a Covid-19 —estou falando de Black Lives Matter [Vidas Negras Importam] e a necessidade de termos uma vacina contra o racismo. E corrigir todo o resto.

Qual sua visão de Hollywood hoje, com relação a todas essas crises sociais e humanas que estamos vivendo? Acho que existe uma falta de ética, de moral e de integridade em boa parte dos estúdios. Essa é a parte que mais aparece, mas ao mesmo tempo há pessoas excelentes dentro dos estúdios.

Eu me lembro de estar uma vez em um episódio [do talk show] de Charlie Rose, que não existe mais, e Michael Eisner, chefe da Disney na época, estava falando do filme de Martin Scorsese, “Kundun”, sobre o Tibete.

Charlie Rose perguntou sobre algo que muita gente já sabia, que o lançamento do filme ia ser super-restrito, porque na mesma época a Disney estava negociando a abertura de um parque na China e não queria ter confrontos. Michael Eisner respondeu: “Estamos no negócio de cinema, não no negócio de direitos humanos”.

É assim que se estabelece uma ideologia obscena, institucionalizada. Estamos todos no negócio dos direitos. Essa deve ser nossa ideologia básica, nossa prioridade, nossa obrigação básica, a primeira coisa que deve passar pela nossa cabeça de manhã com relação a nossos filhos, nossa família, nossos amigos. Se nós não exigirmos das grandes empresas esse mesmo padrão moral, falhamos como seres humanos. E sem seres humanos, não existe o negócio do cinema.

Algum tempo atrás você parecia ter perdido interesse no cinema, e estava concentrado no seu livro. Como você fez as pazes com o cinema? Nunca perdi o gosto pelo cinema! Continuo amando filmes e estou entre as muitas pessoas entristecidas ao ver que algumas das obras mais interessantes e inteligentes passaram para a televisão. Há coisas extraordinárias na televisão nestes dias.

Não sei se é possível fechar esta caixa de Pandora. Não sei se as redes de cinema serão capazes de funcionar com alguma coisa que não sejam grandes franquias de filmes. Não sei para onde isso vai. Não sei se a atual geração vai, de repente, exigir um cinema de ideias, como aconteceu depois da Guerra do Vietnã —e veja o que aconteceu com o cinema americano. Será que essa geração vai exigir que esses filmes estejam em cinemas? Ou será que sou um dinossauro por pensar assim?

Meu amor por cinema vai nessa direção e, por isso, me associo a pessoas que sentem o mesmo e gostam de todo tipo de filme. Eu gostaria de ver os cinemas abertos e exibindo todo tipo de filme. Quero ver equilíbrio na programação dos cinemas. Fico triste quando vejo que os cinemas foram tomados por um cinema estilo Cirque du Soleil, o que na verdade não é justo de dizer, porque o Cirque du Soleil é extraordinariamente artístico.

Sean Penn e Leila George
Sean Penn e Leila George - Instagram/@leilageorge

Eu consigo aturar um desses grandes filmes de franquias, mas a garota por quem me apaixonei estava indo ao cinema para ter uma experiência em uma sala escura com vários estranhos, e isso ficou para sempre para nós dois.

Assim como aconteceu comigo tantas vezes quando eu era jovem, há uma coisa pessoal, uma coisa geracional, quando você diz o título de um filme e a pessoa sabe o elenco, lembra falas, cenas. Isso é tão raro hoje em dia, tanto conteúdo e estamos tão dispersos, mas também não é um sinal negativo —tudo está evoluindo, e com isso, se democratizando.

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